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A quem cabe provar que o pequeno imóvel rural é trabalhado pela família, para que seja reconhecida a sua impenhorabilidade?

Pequenas propriedades rurais, trabalhadas pela família, são protegidas contra venda forçada, mas a proteção é controversa e varia entre os tribunais. O STJ ainda decide quem deve provar a exploração familiar para garantir a impenhorabilidade.

6/8/2024

As pequenas propriedades rurais – ou seja, todos os imóveis rurais com até quatro módulos fiscais de extensão (lei 8.629/93, art. 3, II e alínea A) e, para fins deste texto, que sejam trabalhados pela família (CPC/15, art. 833, VII) – são protegidas de forma diferenciadíssima, não podendo ser vendidas forçadamente por terceiros, ainda que tenham sido dadas em garantia de algum contrato. De amplo conhecimento geral, essa proteção, porém, é ainda tema muito controverso nos tribunais brasileiros.

Os seus principais fundamentos (e limites) não estão previstos pela legislação, mas se baseiam por inteiro no histórico de julgamentos dominante do Judiciário, que flutua e varia, inúmeras vezes desviando-se até mesmo das orientações pacíficas das mais altas cortes do país. “Cada cabeça, uma sentença”, é o ditado; não faltam novidades diárias sobre a extensão da pequena propriedade rural.

Recentemente, o STJ tem enfrentado um dilema de caráter processual muito interessante quanto a propriedade familiar e suas prerrogativas: sabe-se que o imóvel rural deve ser trabalhado pela família, entretanto, em um processo judicial, a quem cabe provar isso? Àquele que pede pela venda forçada ou ao que alega a impenhorabilidade como defesa? Este é o assunto do Tema Repetitivo 1.234, afetado pelo STJ em fevereiro/24 e ainda não resolvido. Está submetida a julgamento a seguinte questão: “Definir sobre qual das partes recai o ônus de provar que a pequena propriedade rural é explorada pela família para fins de reconhecimento de sua impenhorabilidade”.

Hoje, é temerário afirmar que há algum tribunal nacional onde o assunto esteja absolutamente pacificado. E a verdade é que tal falta de uniformidade é fruto de um embate interno de entendimentos surgido entre as próprias turmas de Direito Privado da colenda Corte Superior, quanto a deixar a antiga roupa e vestir uma nova. Dois entendimentos contrapostos, por seguirem premissas processuais diferentes quanto aos elementos que constituem o direito material. A 4ª turma parte de entendimento já antigo de que, em favor da mera existência de uma pequena propriedade rural, existe a presunção relativa de que ela é destinada ao trabalho rural familiar, cabendo ao exequente provar o contrário (REsp 1.408.152/PR, relator min. Luis Felipe Salomão, 4ª turma, em 10/12/16). A 3ª turma, porém, desde a vigência do CPC/73, orienta-se no sentido de ser impossível admitir que, apenas pelo fato de o imóvel rural ter menos de quatro módulos fiscais, seja possível assumir previamente que os seus proprietários o utilizem para o trabalho rural e a manutenção do sustento de sua família. A consequência foi um impacto em cascata nas formas de decidir de todos os tribunais de justiça do país.

Neste sentido, tem preponderado hoje a 3ª turma, que venceu o debate perante a Segunda Seção, ao consolidar o entendimento de que cabe ao executado o dever de provar a exploração do imóvel rural para o sustento de sua família (STJ - REsp: 1913234 SP 2020/0185042-8, relatora: min. Nancy Andrighi - Segunda Seção, em 8/2/23). Ainda assim, o antigo entendimento pronunciado pelo Informativo 596 do STJ, que dizia que “No que concerne à proteção da pequena propriedade rural, incumbe ao executado comprovar que a área é qualificada como pequena, nos termos legais; e ao exequente demonstrar que não há exploração familiar da terra”, ainda não foi superado pelo novo entendimento publicizado no Informativo 808. A 3ª turma, nos últimos meses, tem aplicado também o entendimento da 2ª Seção (STJ - AREsp: 2458694, Relator: Raul Araújo, Data de Publicação: 12/3/24), por vezes variando e voltando a divergir, aplicando seu entendimento anterior (STJ - REsp: 2111341, relator: min. Raul Araújo, 4ª turma, em 2/5/24).

Enfim, bem se sabe que o caos do dissídio jurisprudencial entre os TJ’s não carece de tanto para convulsionar, mas se tem aí grande material; cada canto do país tem agora, de forma embasada e “precedentizada”, decidido em sentidos diferentes. A enxurrada de recursos ao STJ também não tem solucionado o problema. O Tribunal tem afastado a maior parte desses recursos com base em sua jurisprudência defensiva, sem aplicar qualquer entendimento. Afinal, ou a matéria revolve fato e prova (óbice da súmula 7/STJ), ou precisa ser simultaneamente atacada por REsp e RE para ser apreciada (súmula 126/STJ). Atualmente, todos os REsp’s e AREsp’s sobre a matéria estão suspensos pela afetação do Tema Repetitivo 1.234.

A decisão do STJ, de criação de um precedente vinculativo, é muito bem-vinda, senão indispensável. A matéria é relevante e carece urgentemente de um suspiro de uniformidade, pois o caro direito dos valiosos pequenos produtores rurais, previsto pela própria Constituição Federal, tem sido gravemente lesionado com tamanha insegurança jurídica. Aguarda-se agora a solução final, para saber qual entendimento efetivamente sobressairá – fortes apostas, no entanto, para a atribuição do ônus ao executado.

Ivon Garcez
Acadêmico de direito e analista jurídico no escritório João Domingos Advogados.

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