A partir da supressão do ideal da vingança privada, com a assunção da titularidade do poder de punir por parte do Estado, este ente jurídico e político também avocou para si o direito (e o dever) de proteger a comunidade e, inclusive, o próprio delinquente como meio de cumprir sua função de procurar o bem comum, que se veria afetado pela transgressão da ordem jurídico-penal, por causa de uma conduta delitiva (ARAGONESES ALONSO, 1984, p. 7)1.
Em regra, diante da violação de um bem juridicamente protegido, não cabe outra atividade2 que não a invocação da devida tutela jurisdicional, através da necessária utilização da estrutura preestabelecida pelo Estado – o processo judicial – em que, mediante a atuação de um terceiro imparcial, cuja designação não corresponde à vontade das partes e resulta da imposição da estrutura institucional, será solucionado o conflito e sancionado o autor (LOPES JR. e GLOECKNER, 2014, p. 32)3.
Trata-se da efetiva aplicação no campo penal do adágio latino nulla poena et nulla culpa sine judicio, expressando o monopólio da jurisdição penal por parte do Estado (LOPES JR. e GLOECKNER, 2014, p. 36).
Nessa linha, o monopólio estatal do poder punitivo, aliado à não auto-aplicabilidade do direito penal, dependente, em princípio, do processo para se materializar, exigem, de maneira quase sempre imprescindível, outra atividade pública vocacionada a possibilitar a aplicação da pena: a persecução penal (SANTOS, 2022, p. 25)4.
Sem embargo de suas caraterísticas de procedimento dispensável, de caráter informativo, inquisitivo e sem o condão de vincular a atuação do titular da ação penal, não se desconhece a relevância que a investigação criminal possui na persecução penal.
No Brasil, o processo tem início com a propositura da ação penal pelo órgão acusador, o qual normalmente se baseia em investigação prévia. Essa investigação tem como função primária e quase que genética, embora não exclusivamente, a descoberta de elementos mínimos que possibilitem a propositura da ação penal respectiva, devendo ser o substrato natural para a formação da justa causa capaz de desencadear, de maneira legítima, a ação penal (SANTOS, 2022, p. 25).
No entanto, não há, ainda, no Brasil, regulamentação de um procedimento investigativo nos casos em que os investigados são detentores de foro por prerrogativa de função, a exemplo do prefeito municipal, verificando-se, atualmente, um quadro lacunoso e deficiente, inexistindo qualquer procedimento previsto ou mesmo delimitação do responsável por tal investigação, sobrando margem para o Judiciário delimitar os contornos dessa importante atividade (NOGUEIRA, 2020, p. RB-2.1)5.
Como se sabe, o prefeito é o líder do Poder Executivo municipal, detentor de mandato eletivo em que o exercício do cargo deriva de fundamentação constitucional, lastreado na livre manifestação do sufrágio universal e da soberania do voto popular, nos termos dos arts. 14 e 29 da CF.
Devido ao relevo da função, o Poder Constituinte, ao criar a prerrogativa prevista no art. 29, inciso X, da CF, previu que o julgamento dos prefeitos, em razão do cometimento de crimes, ocorre perante o Tribunal de Justiça6.
Em suma, o prefeito possui autonomia para administrar e governar em prol da comunidade local, mas no exercício do mandato também se encontra passível de sofrer sanções caso incorra em infrações político-administrativas e criminais, sujeitando-se ao controle do Poder Judiciário.
Por tais razões, imputações pela prática de crimes no exercício e em razão da função pública e, sobretudo, a utilização de medidas investigativas em face desses agentes políticos detentores de foro por prerrogativa de função, como cautelares reais, probatórias e pessoais previstas no ordenamento jurídico, fazem parte do cotidiano da Justiça brasileira.
Nesse cenário, o poder judicial de cautela é uma das mais relevantes características da jurisdição brasileira, tanto cível, como penal, e pode ter incidência em processo de qualquer natureza que se submeta à apreciação do Juiz. A cautelaridade possui hoje, no Brasil, base constitucional explícita (art. 5, inc. XXXV, da CF) e disciplina infraconstitucional penal autônoma no art. 319 do CPP, cujo inciso VI contempla a suspensão do exercício de função pública7.
Trata-se de cautelar gravíssima, tanto da perspectiva do imputado, quanto da sociedade que elegeu pela soberania do voto popular o mandatário como líder do Poder Executivo municipal, em que o exercício do cargo deriva de fundamentação constitucional, e, mais, vem lastreado na soberania popular (PACELLI, 2021)8.
Para Aury Lopes Jr. (2020)9, a suspensão do exercício da função pública “é medida extremamente gravosa e que deverá ser utilizada com suma prudência.”
Por óbvio, e como facilmente se deduz da natureza restritiva de direitos dessa cautelar, é preciso, de fato, que a regra seja o cumprimento da finalidade legal especificada no art. 319, VI, do CPP, destinada, portanto, ao risco de prática de novas infrações penais. Excepcionalmente, porém, é possível o manejo de tal medida sob outra fundamentação cautelar (art. 282, I e II, CPP)10.
A cláusula, quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais, não está na lei como adorno ou bravata, mas como garantia do mandatário como líder do Poder Executivo municipal de que a sua suspensão do exercício de sua função pública não se dará por mera veneta da autoridade. Requer-se efetiva demonstração da necessidade da medida.
Com efeito, como toda e qualquer medida cautelar, a ordem de afastamento do exercício da função pública deve ser fundamentada, e na motivação o juiz deverá indicar concretamente a existência de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida, conforme preconizam os arts. 93, inc. IX, da CF e 315, § 1º, do CPP.
Por isso, não calha a mera plausibilidade e nem presunções de que o prefeito esteja se utilizando da função para prática de crimes e/ou para dificultar o bom andamento da persecução penal, pois o substrato fático do afastamento cautelar do prefeito do exercício da função pública há de considerar, na concretude, fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação dessa medida extremamente gravosa aos direitos fundamentais, especialmente quando o mandato eletivo tem como legítimo titular a soberania do voto popular (315, § 1º, do CPP).
Nas palavras de Nereu José Giacomolli (2024, p. 111)11, a existência do crime e de indícios suficientes de autoria (fumus commissi delicti), bem como o perigo ou o risco de dano ao bem jurídico (periculum libertatis), exigem um suporte em motivos de fato, em circunstâncias atuais e concretas, capazes de atender aos requisitos autorizadores. Meras possibilidades afastam os requisitos legais, na medida em que são os fatos concretos que motivam as medidas cautelares.
Nos termos da jurisprudência do STJ12, o periculum libertatis não se presume, tampouco pode ser fruto de circunstâncias e fatos pretéritos ou futuros e incertos, sendo remansoso o entendimento de que, para a aplicação das medidas cautelares diversas da prisão, exige-se fundamentação específica que demonstre a necessidade e adequação de cada medida imposta no caso concreto.
Na mesma linha, segundo a jurisprudência consolidada no STF13, a decisão que aplica a medida cautelar precisa se fundamentar em elementos específicos e concretos, pois a mera suposição, fundada em simples conjecturas, não pode autorizar a prisão preventiva ou qualquer outra medida cautelar de natureza processual penal. Para que seja idôneo, é necessário que o ato judicial constritivo traga fundamentadamente, para justificá-lo, dados concretos, baseados em elementos empíricos contemporâneos.
Quando o juiz opera a jurisdição em sede de poder de cautela, avulta o requisito da moderação do magistrado, que deve ponderar, antes de aplicar a medida cautelar, se a restrição que ela viabiliza se mostra necessária, idônea e equitativa, ou seja, se é revestida de razoabilidade e de proporcionalidade (GIACOMOLLI, 2024, p. 116).
Nessa senda, gera perplexidade casos de afastamento do prefeito do exercício da função pública sob o fundamento de que a medida é adequada para garantir a efetividade da persecução penal e preservação das provas (art. 282, I e II, CPP), quando, no caso concreto, também foram aplicadas outras medidas cautelares, a exemplo da quebra de sigilos telefônicos, bancários e fiscais, bem como a realização de inúmeras buscas e apreensões, justamente com o intuito de viabilizar a garantia da efetividade da persecução penal e preservação das provas.
Nestes casos, o STJ já assentou a exigência de se analisar a necessidade, a adequação, a razoabilidade e a estrita legalidade da medida cautelar de afastamento da função pública com base nos fatos e nas circunstâncias concretas do caso. Para o STJ, o deferimento de outras medidas cautelares, como quebra de sigilo bancário, busca e apreensão, sequestro de bens e bloqueio de valores, contribuem para afastar um eventual risco à ordem pública, somente sendo possível a manutenção do afastamento do prefeito da função pública no caso de demonstração, com base em fatos novos, concretos e contemporâneos, do prejuízo decorrente do retorno do prefeito ao exercício do cargo público14.
Nessa linha de raciocínio, o afastamento do prefeito, decretado sem a devida observância aos requisitos impostos pelos princípios constitucionais e pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, equivale a verdadeira cassação branca do mandato15, revelando a arbitrariedade e, por consequência, temerária e autêntica utilização do afastamento do cargo como antecipação de eventual pena ou punição16 imposta ao imputado, causando sérios prejuízos ao imputado e à própria soberania popular, gerando transtornos na gerência do município e no andamento regular da atividade que envolve a administração municipal.
Há de se observar também que o Plenário do STF, ao julgar a ADI 644-MC/AP17, assentou que “a subtração do titular, ainda que parcial, do conteúdo do exercício de um mandato político é, por si mesma, um dano irreparável”. Na ocasião, o Rel. Min. Sepúlveda Pertence, entendeu que “os mandatos republicanos são essencialmente limitados no tempo e improrrogáveis: por isso, a indevida privação, embora temporária, do seu exercício é irremediável, por definição”.
Destaca-se, por fim, que a min. Daniela Teixeira, ao julgar o HC 873151-PB18, entendeu que o prazo excessivo de afastamento cautelar do prefeito viola preceitos fundamentais como a soberania popular, o pluralismo político, o princípio democrático, a liberdade de voto e de a autonomia do direito ao voto dos cidadãos, a qual é exercida quando da escolha do prefeito como líder do poder executivo do ente municipal.
Registrou, ainda sobre o tema, a eminente ministra, que é o eleitor, não o Judiciário, o centro em torno do qual gravita a vontade que a Constituição Federal afirma ser constitutiva de todo Poder. A vontade popular estabelecida pelo voto em pleito eleitoral é soberana, e só pode ser subordinada a jurisdição que a anule quando traído o eleitor, traída a maioria que decidiu por aquele candidato.
Diante desse cenário, parece evidente o risco que o afastamento cautelar do prefeito municipal do exercício da função representa para a ordem pública e administrativa do respectivo ente municipal, notadamente em ano de eleições municipais, no qual a população deverá escolher seu mandatário máximo pelos próximos quatro anos, exigindo do magistrado suma prudência na aplicação da referida medida cautelar no caso concreto.
1 ARAGONESES ALONSO, Pedro. Instituciones de Derecho Procesal Penal. 5. ed. Madrid: Rubí, 1984.
2 Salvo hipóteses de exclusão de ilicitude (art. 23, CP), por exemplo.
3 LOPES JR. Aury. Investigação preliminar no processo penal / Aury Lopes Jr., Ricardo Jacobsen Gloeckner. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
4 SANTOS, Cleopas Isaías. Justa causa para a investigação criminal: fundamentos e limites constitucionais da investigação policial no Brasil. 1. ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2022.
5 NOGUEIRA, Rafael Fecury. Foro por prerrogativa de função no processo penal [livro eletrônico]:investigação, processo e duplo grau de jurisdição. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.
6 Nos termos da Súmula n.º 702 do Supremo Tribunal Federal, “A competência do tribunal de justiça para julgar prefeitos restringe-se aos crimes de competência da justiça comum estadual; nos demais casos, a competência originária caberá ao respectivo tribunal de segundo grau”
7 Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão: [...] VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais.
8 PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 25. Ed. São Paulo: Atlas, 2021.
9 LOPES JR. Aury. Direito processual penal. 17. Ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
10 Nesse sentido vide: RHC n. 36.443/SP, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 16/9/2014, DJe de 27/11/2014; RESP 993.065/ES, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, DJe 12/03/2008; REsp. 604.832/ES, Rel. Ministra Denise Arruda, DJ 21/11/05, p. 128.
11 CALLEGARI, Andre; TURBAY; AL. Temas Atuais de Direito Penal Econômico. São Paulo: SRV Editora LTDA, 2024
12 Nesse sentido vide: AgRg no RHC 159.592/RS, Rel. Min. Messod Azulay Neto, Quinta Turma, j. 18/9/2023, DJe 27/9/2023; HC 480.001/SC, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 12/02/2019, DJe 07/03/2019; HC n. 419.660/PR, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 2/8/2018, DJe de 13/8/2018; HC n. 312.016/SC, Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 16/4/2015, DJe de 5/5/2015; HC n. 245.466/CE, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 27/11/2012, DJe de 18/12/2012.
13 Nesse sentido vide: HC nº 115.613/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 13/8/14; HC nº 132.520/MT, 2ª Turma, de minha relatoria, DJe de 21/10/16; HC nº 98.673/SP, Segunda Turma, Rel. Ministra Ellen Gracie, DJe de 29/10/09; HC nº 99.043/PE, Segunda Turma, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe de 9/9/10; e HC nº 100.184/MG, Primeira Turma, Rel. Ministro Ayres Britto, DJe de 01/10/10.
14 Nesse sentido vide: HC n. 742.699/SP, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 14/6/2022, DJe de 20/6/2022.
15 Nesse sentido vide: STF - AgR SL: 1241 CE - CEARÁ 0027418 57.2019.1.00.0000, Rel. Min. Dias Toffoli (Presidente), Data de Julgamento: 20/04/2020, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-119 14-05-2020.
16 Nesse sentido vide: RHC n. 37.377/SP, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 9/12/2014, DJe de 19/12/2014.
17 ADI 644 MC, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 04-12-1991, DJ 21-02-1992 PP-01692 EMENT VOL-01650-01 PP-00031 RTJ VOL-00139-01 PP-00078
18 HC n. 873.151, Rel. Ministra Daniela Teixeira, DJe de 04/12/2023.