1. Introdução
Juros e atualização monetária são elementos fundamentais nas relações econômicas.
Os juros são a remuneração do capital pelo tempo de mora na sua devolução ao credor (juros moratórios) ou pelo tempo de uso dele pelo devedor (juros remuneratórios).1 A atualização monetária é a recomposição do poder de compra da moeda.
O Brasil é um país de crédito escasso e historicamente inflacionário, no qual a moeda se desvaloriza frente a inflação – perde seu poder aquisitivo frente a alta generalizada e periódica de preços de produtos e serviços.
O CC/1916 – conhecido como Código Beviláqua, foi o primeiro diploma legal a dispor sobre a taxa dos juros legais, no percentual de 6% ao ano, se outra não fosse convencionada (art. 1.062). O mesmo Código não estipulada um índice de correção monetária, apenas dispunha que as partes deveriam adotar índices oficiais regularmente estabelecidos.
Em 1933, foi publicado o decreto 22.626, que ficou conhecido como lei da usura, que proibia estipular, em quaisquer contratos, taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal (art. 1º).
A CF/88 também dispôs sobre a taxa de juros, limitando-a a 12% ao ano (art. 192, §3º). Contudo, o dispositivo nunca foi considerado autoaplicável.
O CC/02, na redação original do art. 406, dispôs que, quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional. Veja que o CC/02 não estipulou uma taxa de forma expressa, mas, remeteu o intérprete à taxa em vigor para os créditos da Fazenda Nacional.
Desde sua entrada em vigor, havia uma discussão sobre a taxa legal de juros, se seria a SELIC ou a taxa de 1% ao mês. O STJ pacificou o entendimento de que a taxa legal de juros sempre foi a taxa básica SELIC - vide Tema 112 da jurisprudência do STJ. Contudo, os Tribunais Estaduais preferiam aplica a taxa de 1% ao mês prevista no art. 161 do CTN - Código Tributário Nacional. Essa divergência ainda estava em discussão no início deste ano de 2024, no julgamento do REsp 1.795.982, quando sobreveio a Lei no 14.905, de 28 de junho de 2024.
Este artigo visa expor as mudanças introduzidas por essa nova lei e o seu alcance.
2. Alterações introduzidas pela lei no 14.905/24
A lei no 14.905/24 trouxe as seguintes alterações ao nosso direito:
- a taxa legal de juros, moratórios e/ou remuneratórios, corresponderá à taxa SELIC, deduzido o índice de atualização monetária;
- o índice legal de atualização monetária corresponderá à variação positiva do IPCA;
- o decreto 22.626, de 7/4/33, conhecido como lei da usura, não se aplicará às obrigações:
- contratadas entre pessoas jurídicas;
- representadas por títulos de crédito ou valores mobiliários; III - contraídas perante:
- instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil;
- fundos ou clubes de investimento;
- sociedades de arrendamento mercantil e empresas simples de crédito;
- organizações da sociedade civil de interesse público de que trata a Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999, que se dedicam à concessão de crédito; ou
IV. realizadas nos mercados financeiro, de capitais ou de valores mobiliários.
O afastamento da lei da usura das relações descritas no art. 3º da lei traz um conforto ao nosso mercado de recebíveis. Primeiro porque resolve um grande volume de ações revisionais em trâmite perante o Judiciário. Segundo, porque traz mais segurança jurídica para os títulos de crédito e valores mobiliários mais recentes, como, por exemplo, a Nota Comercial, criada pelo art. 45 da lei 14.195/21, que não dispõe com clareza sobre os juros, diferentemente da CCB - Cédula de Crédito Bancário, que já possui duas décadas de discussões judiciais e uma jurisprudência sedimentada com relação aos juros.
3. Implicações práticas
As alterações promovidas pela lei 14.905/24 provocam diversas implicações práticas notáveis para nosso mercado de recebíveis.
De início, vale frisar o perfil de norma dispositiva da referida lei, ou seja, ela permite que as Partes convencionem livremente uma taxa de juros e outro índice de atualização, diferentes daqueles previstos como referência legal. Quando não forem convencionados, serão aplicados a taxa SELIC e o índice IPCA.
Na medida em que o Código Civil prevê uma taxa e um índice legais, os litígios tendem a não envolver essa matéria, o que gera segurança jurídica. Nesse sentido, haverá uma resolução de um sem número de ações revisionais de contratos Brasil afora.
O afastamento da lei da usura (decreto 22.626, de 7/4/33) beneficiará a liberdade econômica, na medida em que permitirá às partes estipularem livremente a taxa de juros e o índice de correção, sem o receio de desaguarem no Judiciário, desde que seja preservado o bom senso entre as partes e, em especial, a taxa eleita não seja arbitrária e fora do princípio da boa-fé, quando poderá ser objeto de intervenção do Judiciário, conforme leciona o des. Carlos Alberto Garbi em obra intitulada “A Intervenção Judicial no Contrato em face do Princípio da Integridade da Prestação e da Cláusula Geral da Boa-fé”2.
No entanto, ao contrário do que alguns possam conjecturar, a não aplicação da lei da usura não implica em revogação das estruturas típicas do mercado financeiro e de crédito.
O advento da lei 14.905/24 não permite que o empréstimo de dinheiro a juros seja praticado como atividade econômica por qualquer pessoa.
A maior liberdade conferida às relações entre pessoas jurídicas, ou nos negócios representados por títulos de crédito ou valores mobiliários, não revoga as normas em vigor, como a lei 4.595/64 e a Resolução CMN 5.050/22, que regulam as instituições financeiras e as SCD - sociedades de crédito direto e as SEP - sociedades de empréstimo entre pessoas, ou a lei complementar no 167/19, que disciplina as Empresas Simples de Crédito, a lei 14.430, que disciplina a securitização, a Resolução CVM 175/21, que regula os FIDCs no Anexo II, ou mesmo as normas tributárias que regulam o fomento mercantil.
Portanto, se uma pessoa pretende emprestar dinheiro a juros, como atividade econômica, deverá adotar uma das estruturas previstas na legislação brasileira, como instituição financeira ou empresa simples de crédito. Da mesma forma, se pretender adquirir títulos de crédito ou valores mobiliários, como atividade econômica, também deverá adotar uma estrutura que permita essa prática empresarial, como a Factoring, a Securitizadora ou o FIDC.
Do contrário, a atividade econômica não será contributiva dos tributos incidentes sobre as operações de crédito, o que desagua, em última análise, em ilícito fiscal e criminal.
Aqui vale pontuar que nossas estruturas de Factoring, Securitizadora, e FIDC, não cobram juros sobre a cessão e antecipação de recebíveis, mas, deságio, preço de aquisição de livre pactuação entre as partes.
4. Conclusão
A lei 14.905/24 trouxe mudanças significativas ao Código Civil Brasileiro, fixando uma taxa legal de juros (SELIC), e um índice legal de atualização monetária (IPCA), bem como afastou a Lei da Usura daquelas relações jurídicas nela dispostas de forma expressa.
Não obstante, tais alterações não revogam as estruturas econômicas previstas em nossa legislação, notadamente as instituições financeiras, como Bancos, SCDs e SEPs, as Securitizadoras, Fundos de investimento, Empresas simples de crédito, e Factorings.
1 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Parte Especial. Tomo XXIV. Direito das Obrigações Efeitos Adimplemento. São Paulo: RT, 2012. p. 77.
2 Disponível e consultada em 18/07/2024 no link: https://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Escola_Superior/Biblioteca/Biblioteca_Virtual/Livros_Digitai s/EPM%202816_A_interven%C3%A7%C3%A3o_judicial.pdf