A Inteligência Artificial como mecanismo de uma aproximação da racionalidade decisional aos algoritmos têm gerado inúmeras consequências na vida das pessoas. Mídias sociais, comportamentos, marketing, cultura, política, economia, enfim, toda a sociedade passa a ser controlada e direcionada por meio de obtenção de dados íntimos e privados, sem que tenhamos em contrapartida uma educação digital acoplada ao conhecimento sobre tais temas, o que gera enormes desafios.
O Direito, como querem alguns que acreditam no seu controle abstrato, formal, normativo e coercitivo, vira a panaceia para a busca desenfreada de um controle incontrolável assolapado pela modernidade líquida.
O que parecia ser ficção no famoso desenho animado dos Jetsons lançado há 60 anos, passsa a fazer parte do nosso dia a dia como projetos para carros voadores, teletrabalho, reuniões por videoconferência, robôs, relógios inteligentes, impressoras, turismo espacial, dentre outras tecnologias.
Nem mesmo os mais otimistas do estúdio Hanna-Barbera (criadores do desenho) imaginavam que tudo chegaria tão rápido ao nosso quotidiano.
Todavia, invocar Durkheim é preciso: os períodos de grande mudanças sociais geram aumento da criminalidade, tanto nos momentos de depressão social e econômica, quanto nos de grande expansão.
E nas ondas criminológicas influenciadas pela tecnologia, os crimes cibernéticos ocupam papel de protagonismo, não só pela quantidade anômica de seus números estarrecedores, como também por serem meio e instrumento para garantir a segurança jurídica dos dados automatizados.
O processo penal, com efeito, não pode ficar desconectado desta realidade. Há poucos anos se discutia se ele seria compatível com o processo eletrônico em virtude da (im)possibilidade de respeito às garantias jurídico-penais. A pandemia do COVID-19 acelerou bastante essa tendência (recorde-se o debate sobre a possibilidade de realização de audiência eletrônica de custódia).
Imaginemos então, como os Jetsons, o que acontecerá com o processo penal no futuro, já tendo por base o que vem acontecendo no presente.
A quebra do domicílio virtual1 se torna a “rainha das provas”, ou seja, a paridade de armas vira ficção jurídica, pois cai por terra o direito de mentir e o outrora famoso álibi. Se a acusação, por meio de quebra de sigilio telemático e de softwares meticulosos com recursos de IA já sabe tudo (localizações, gostos, compras, fotos íntimas, conversas, etc), o interrogatório vira um ato vinculado de confirmação de dados pré-selecionados.
E o ônus da prova, como ficaria? Todas as presunções do processo penal se tornam jure et de jure? Como ficaria o artigo 156 do nosso CPP? E a análise dos elementos subjetivos que não seriam possíveis aferir com dados automatizados? Ou vamos também presumí-los com a extração algorítmica?
A sentença penal seria um silogismo algorítmico capenga, pois teria tese e a síntese, já que a antítese já se foi há tempos, pois o ato de decidir seria vinculado por dados tabulados. Clique # para legítima defesa ou * para estrito cumprimento do dever legal.
Ficaria “fácil”aplicar o artigo 59 do CP, pois não? Simplesmente seria um formulário a la Google para definir personalidade, consequências, motivos em caixinhas de marcar X. Chamaríamos de análise subjetiva do tipo formular. Facilita bem a vida do juiz, haja vista os inúmeros conceitos de personalidade advindos da psicologia, correto? A simplificação tecnológica do não simplificável. Quem sabe a neurociência algorítmica resolve a equação, para acabar com os chavões como “personalidade voltada para o crime” e cria a certeza almejada: “personalidade criminosa formular comprovada”.
E as reavaliações automáticas da prisão preventiva, previstas no artigo 316, parágrafo único do CPP? Bingo, teremos um software com AI que já tem todo o perfil do preso, seu comportamento enquadrado nas tipologias neurocientíficas e alimentado por conceitos advindos de Chatbox que analisaram previamente as notícias farejadas da imprensa e de outros pontos na nossa rede mundial de computadores. Basta ver a bandeirinha verde ou vermelha no canto esquerdo da tela, com a sugestão do modelo “revogo a prisão preventiva” ou “mantenho a prisão preventiva”.
Seria o retorno da Escola Positiva de Lombroso? Algorítimos deterministas com pitadas de análise de periculosidade extraída de dados antropológicos e comportamentais?
Não se assustem se em algum tempo, uma mera leitura da íris trace um perfil completo de um suposto criminoso. Ora, a prova científica fica irrefutável. Embora, Karl Popper diria o contrário, isto é, o que caracteriza a ciência é justamente a refutabilidade.
Então fica o alerta, a IA, como toda tecnologia, pode melhorar e muito nossa vida e o processo penal, todavia, quanto ao processo penal não podemos nos descurar do seu caráter instrumental e jurídico-científico, pois passamos por momentos de endeusamento de inovações tecnológicas que viram questão de fé. E fé não combina com provas!
Há teorias que dizem que a internet estará morta em breve, já que será pautada por interações cada vez mais algorítmicas que humanas. Se isso vai acontecer não sabemos, mas uma coisa é certa, nossas garantias constitucionais não podem ser algorítmicas e desumanas, pois ainda que o processo seja eletrônico ele representa vidas.
Do contrário, invoquemos Carl Sagan quando dizia: “O universo não foi feito à medida do ser humano, mas tampouco lhe é adverso: é-lhe indiferente”.
Não sejamos indiferentes!
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1 Ver https://www.conjur.com.br/2020-nov-21/moura-stf-reconhecer-importancia-domicilio-virtual/.