A um passo da perda da identidade da moeda, na corrosiva inflação no início dos anos 90, nos chegou, no ano de 1994, o Plano Real, o passaporte, vindo da engenharia financeira, que nos garantiu o básico de organização institucional.
Retirada a laje da estabilidade econômica, a aventura empresarial passa a ser mais objeto do que sujeito, mais acaso do que racionalidade.
Vamos nos deparar, posteriormente, frente a duas crises, quase simultâneas. Crises infernais.
Uma delas, nos anos 2015-2016, anos de desacerto da economia, afetou o conjunto das empresas brasileiras, colocando em risco as pequenas e médias, o nosso extenso tecido capilar.
As disputas judiciárias desses dois mencionados anos subsistem, prontuários sem vida, centenas e centenas, as mais diversas, predominando as questões concernentes ao fechamento de empresas.
A outra crise nasce de alucinada perseguição aos grandes grupos empresariais, aqueles de presença internacional. Perseguição que andou de mãos dadas com a imprensa.
Bem, nossa história, nossa inserção internacional, estampada em nossa Constituição, confiou à empresa privada a responsabilidade da produção de bens materiais.
Evidente que essa essencial atividade encontra respaldo e comunicação com o Estado. Nessa interação funciona o sistema.
Vivemos em busca da equação certa, do ponto certo, do momento certo, a quântica do equilíbrio dinâmico na relação entre Estado e Mercado. Os frutos garantidores da vida coletiva decorrem dessa relação.
O negativo, entre nós, encarnou-se nessa perseguição às maiores empresas, vulneráveis, à falta de um modelo claro, à falta de um modelo à altura do nosso desenvolvimento.
Se conseguirmos dirigir a atenção ao estado das coisas do mais avançado sistema, constataremos que, os EUA, quando querem impulsionar suas empresas, produzem regras claras, facilitadoras das relações públicosprivadas, para o bem das empresas, que logram eficiência a nível nacional e internacional.
Essa é a pedra de toque.
As empresas americanas - e seus empresários - assim assegurados, são dispensadas de trilhar os corredores da exposição.
O propósito político do sistema: salvar suas empresas, velar pela sua continuidade.
O propósito político do sistema vai além: investir vetores de força, conquistar hegemonias empresariais na arena internacional. Buscar vitórias. Ser o técnico desse time.
Entretanto, o que se fez aqui, no Brasil, foi destruir. E depois ver empresa de outras bandeiras ocupando posições antes ocupadas por empresas nossas, que nos trariam divisas e presenças, nos trariam identidade.
O único compromisso dos perseguidores era com a destruição. Destruição das pessoas jurídicas e das pessoas físicas.
Bem, vamos voltar 150 anos na linha do tempo e perguntar a razão da falta de empatia entre Barão de Mauá e Pedro 2.
E perguntar as razões de não termos entre nós, no Brasil, a mesma compreensão, às empresas, do que em países de altivo PIB, como nos EUA e seu místico fordismo, da tipologia ideal do self made man, das liberdades, dos amplos espaços.
Ou no indisfarçável orgulho alemão às suas empresas, apesar de nódoas históricas. Ou a identidade asiática exibindo seus tigres.
Poderíamos acreditar na vigência do gênio de Max Weber, quando surpreendeu a conexão entre a ética protestante e o espírito capitalista, quando constatou que as empresas crescem mais naturalmente dentro do solo protestante? Seria então nossa alma tolhida pela catequese?
Poderíamos acreditar na influência de setores da cansada esquerda ossificada, na aceitação naturalizada a tudo que vem oriundo da burocracia? E genericamente lançando o véu mofado da desconfiança em tudo de origem privada? E acreditar na sombra do Leste falido?
Poderíamos acreditar em nossa herança ibérica, onde a onipresença do Estado adernava essa balança?
Poderíamos acreditar em nossa retórica beletrista antes praticada em Coimbra, de onde chegaram nossos primeiros bacharéis, em contraste com a Universidade científica-pragmática, em sua origem na Alemanha e logo importada pelos EUA?
Aí temos Caetano, inspirado em Max Weber: “será que nada faremos senão confirmar a incompetência da América Católica?”.
Ou acreditaremos na Psicanálise quando o Estado é a continuidade da função paterna, sombra à qual não nos tornarmos vigorosos.
Ou seria a opção de “o medo à liberdade”, a saber, nossa busca de uma instituição no papel de nosso necessário complemento existencial, quando esse papel pertence a nós mesmo e à convivência com o outro, nosso único caminho, na magistral lição de Erich Fromm?
Vejamos uma sintomática comparação de todos conhecida, entre os EUA e o Brasil: como explicar a existência de lei, do recuado ano de 1946, disciplinando o lobby nos EUA, quando os interesses de grupos são levados em consideração, contrastando com o estigma que essa palavra carrega no Brasil? Assim sendo, sem maiores dificuldades, nesse embalo, o direito penal vai adentrando espaço - e assustando - dentro do direito empresarial.
Essa mentalidade venceu a primeira camada de nossa imunidade e jogou todas as suas cartas no espetáculo das crucificações.
No nosso sistema de precedentes vinculativos, experiência institucional recente e, portanto, de vivência a ser adequadamente efetivada, a força do STF e do STJ é decisiva ao determinar o norte das decisões, quer na esfera administrativa, quer na esfera judicial.
Em outras palavras: quem irá modular a mentalidade, dando-lhe sua versão jurídica, no plano das decisões, serão, hoje mais do que ontem, os tribunais superiores.
Quando o assunto é “Direito-Economia” nos chegam, de pronto, as tão primorosas falas sobre “Forma-Conteúdo”. O Estado da Arte reside nessa cópula.
Sem desmerecer as estupendas lições sobre o tema, queria lembrar um exemplo prosaico: a água, enquanto conteúdo, encontrou, para ser bebida, a forma da arte: o copo. Ausente o copo, a água nos seria hoje dificultosa, escorreria pelas mãos.
Daí a metáfora: ausente a forma das sociedades anônimas, a economia nos seria dificultosa.
A forma “Sociedade Anônima” foi o grande divisor de águas do direito empresarial.
E a incidência de forma atrasada ou desatenta, na legislação ou na jurisprudência, leva a malogros: o capitalismo precisa do pertinente e seguro marco jurídico.
Vejamos um exemplo nosso, na perspectiva que somente o tempo nos tempo nos posiciona: Mauá estendeu sua empresa para fora do Brasil, pioneiramente: Londres, Paris, Nova York, Buenos Aires.
Derrotado em lida institucional, viu-se compelido a confinar sua empresa na forma de “Sociedade de Comandita Simples”, deixando de ser “Sociedade de Comandita por Ações”.
Essa mudança estagnou seus negócios e foi por ele sentida como a causa à quebra de seu banco.
Vejam as senhoras e os senhores: se Barão de Mauá, o Patrono dos Empresários, quebrou apontando o Direito como causa, imaginem os fantasmas que visitam os pequenos e médios empresários.
Pergunto: se Mauá, americano fosse, sua empresa não estaria viva, até hoje?
Vamos a um outro assunto, na verdade, o assunto, o paradigma dos nossos dias: a questão ambiental.
“Somos hóspedes mal educados da Terra”. A ameaça que se vislumbra é a da existência humana na Terra.
A Terra continuará.
Hoje, mais do que nunca, os humanos temos um objetivo comum, o que une a todos.
A força dessa convicção nos levou ao Acordo de Paris, quando metas claras, a neutralidade do carbono, para cada Estado signatário, foram estabelecidas.
Temos que “lançar uma ponte sobre esse abismo”.
Esse assunto, evidentemente, irá refletir em toda atividade empresarial, mais ou menos, conforme a sua natureza; todos estaremos atados, universalmente, ao paradigma ambiental.
Entrelaçado com a questão ambiental, temos os nossos espantosos avanços tecnológicos: o gênio saiu da garrafa.
Vou registrar a simples constatação da presença do comércio via internet, alterando vertiginosamente sua dinâmica.
Vou registrar o acesso aos bancos de categorias que durante décadas e décadas eram invisíveis ao sistema financeiro e hoje foram incluídas.
Mudando um pouco a perspectiva: qual a extensão de benefícios que a fantástica biologia sintética vai nos presentear?
E mais: quem sabe para onde a IA, em suas múltiplas e mutantes faces, vai nos empurrar?
Estaríamos, nós outros, ao entrar na era da IA, acionando o Angelus Novus, captado na pintura por Paul Klee e nas palavras de Walter Benjamin, o anjo do progresso que, impelido por feroz tempestade, não mais consegue fechar as asas, e desabala, arrastando tudo em seu descontrolado vôo?
Bem, vetustas e respeitáveis mentalidades serão logo varridas do mapa: a tecnologia transcende-os.
Outras formas de se relacionar a partir do carrossel tecnológico vão avançando, freneticamente, deixando os rastros para trás.
Sempre lembro o gosto de Darcy Ribeiro ao repetir em suas palestras, e quarenta anos se passaram, a última antevisão do velho Marx: “a tecnologia, e não a luta de classes, vai trazer nossas acalentadas revoluções”.
Camarada Marx, saudoso Darcy, vista as coisas de hoje, sabemos que a tecnologia vai nos trazer mais do que revoluções: é nossa terra prometida, nossa exclusiva esperança de um passaporte para o futuro. Precisamente essa é a nossa esperança.
O espírito humano, unicamente o espírito humano, apto a abraçar a esperança. E em sua ausência fenecer. Assim, vamos cultivar essa flor. A esperança é a última que morre? Não: nós morremos, a esperança fica, cumprimos nosso dever de passarmos o bastão às gerações nossas herdeiras. “A esperança está ao norte do futuro”. A força da convicção.
Deixando de se fixar nas atrocidades do século XIX no interior das indústrias, nos anos da chamada acumulação primitiva do capital, anos de humilhação, quando acertadamente cunhou-se a expressão “luta de classes”, hoje, com os avanços, com o desafio ambiental, a bordo da magia da tecnologia, e com as conquistas já alcançadas, temos mais unidade do que contradição nas relações entre trabalho e capital.
Não que a luta ambiental e a luta pelo direcionamento da tecnologia não nos cheguem com as cicatrizes desses históricos dramáticos embates (de luta de classes), traduzidos hoje menos no embate direto e mais na disputa pelos modelos a serem construídos.
Entretanto, no ciclo temporal de maior latitude, repito, temos hoje mais unidade do que contradição, na medida em que estamos todos frente ao desconhecido, quer no plano ambiental, quer no plano tecnológico.
Para finalizar, falando na condição de juíz federal, quero registrar as palavras dos doutos: “instituição é energia”, então cumpre ao Judiciário ter consciência de onde empregar essa energia.
A força da convicção.