Há quase uma década se iniciou o julgamento perante o STF de recurso extraordinário (RE 635.659) visando o reconhecimento da “inconstitucionalidade” do artigo 28 da lei 11.343, de 2006 (Lei Antidrogas). Entre um pedido de vista e outro, tudo indica que o julgamento está chegando ao fim.
Embora, entendemos que o STF deveria reconhecer a inconstitucionalidade do art. 28 da lei 11.343, de 2006 – descriminalizando a posse para consumo de todas as drogas ilícitas e não apenas da “maconha” - conforme já nos pronunciamos alhures, necessário ressaltar a importância da fixação de critérios objetivos para distinguir o chamado usuário do traficante.
No Brasil o número de presos condenados por tráfico vem crescendo a cada ano, um em cada três presos do país respondem por tráfico de drogas contribuindo, inegavelmente, para o encarceramento em massa dos mais vulneraveis (negros e pobres).
Se por um lado a atual lei 11.343, de 2006 despenalizou o consumo de drogas (art. 28), uma vez que não há mais a possibilidade de se aplicar a pena privativa de liberdade, por outro lado, endureceu a pena para o crime de tráfico, que por ausência de critérios objetivos tem levado milhares de pessoas para prisão.
Em 2006 quando a lei 11.343 entrou em vigor, eram cerca de 31 mil presos por tráfico nos presídios brasileiros. Em junho de 2022 (há quase dois anos), segundo o Depen, hávia 197 mil pessoas presas por conta da Lei de Drogas, sendo 164 mil detidas por associação ao tráfico.
Para os autores e pesquisadores do Atlas da Violência 2024, publicado no último dia 18/6, é preciso reconhecer que a atual política de proibicionismo e de guerra às drogas é um instrumento de opressão e violência estrutural1, tendo em vista que há uma deturpação no objetivo declarado da política - retirar drogas de circulação - e no objetivo de fato perseguido - retirar pessoas “indesejáveis” de circulação.
Os achados da pesquisa indicaram que existe um viés social e racial na criminalização de pessoas por tráfico, que são processadas por pequenas quantidades de drogas apreendidas, em sua maioria, em abordagens de policiamento ostensivo em via pública ou com entrada em residências sem prévio mandado judicial de busca e apreensão (Ipea, 2023a; Ipea, 2023b). Perfil dos réus e circunstâncias das investigações. Os sujeitos criminalizados como traficantes são, em sua maioria, homens (86%), jovens (72% com idade até 30 anos), de baixa escolaridade (67% não concluíram o ciclo de educação básica) e negros (68%) (Ipea, 2023a). O cruzamento da variável idade e cor/raça indica que 53,9% dos réus processados são jovens de até 30 anos e negros, simultaneamente.2
É forçoso destacar que o que é considerado tráfico para alguns, no caso os mais vulneráveis e etiquetados pelo sistema penal, para outros é considerado porte de drogas.
O sistema penal é seletivo. Como bem já destacou em pesquisa (Mapa do Encarceramento) Jacqueline Sinhoretto, “há uma aplicação desigual das regras e procedimentos judiciais”. Assim, por exemplo, no momento em que o policial escolhe quem deve ou não revistar. Ou a maneira de tratar uma pessoa flagrada portando uma determinada quantidade de entorpecentes. "A quantia pode ser a mesma. Determinadas pessoas podem ser acusadas por porte e outras, por tráfico", disse a pesquisadora.
Somente aqueles que não querem enxergar a seletividade do sistema penal na criminalização (primária e secundária) é que negam o evidente viés racial como execrável critério para enquadrar negros (pretos e partos) como traficantes. Estudo realizado e divulgado pelo Núcleo de Estudos Raciais do Insper revelou que, em um período de 10 anos, entre 2010 e 2020, a polícia de São Paulo enquadrou 31 mil negros como traficantes em situações similares àquelas em que brancos foram considerados usuários.
Em substancioso voto, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, trouxe inúmeros dados sobre essa abominável forma de discriminação em relação aos negros, pobres, com baixa escolaridade e residentes nas periferias.
Importante observar que a grande maioria destes condenados por “tráfico” são na verdade usuários ou que fazem do comércio um meio para manter seu vício. O problema se agrava pelo fato da lei ser genérica o que fere inclusive o princípio da taxatividade dos tipos penais e, ainda, não diferenciar claramente o traficande do usuário ou de tratar com o mesmo rigor, pena mínima de 5 anos, pessoas que se encontram em escalas e situações distintas.
No referido julgamento, até o momento – faltam votar a ministra Cármem Lúcia e o ministro Luiz Fux – 5 ministros votaram pela descriminalização, Luís Roberto Barroso (presidente do STF), Aexandre de Moraes, Edson Fachin, Gilmar Mendes e Rosa Weber (aposentada). O ministro Dias Toffoli, abriu um terceiro entendimento, segundo o qual a lei atual é constitucional e já não criminaliza o usuário, ou seja, não tem natureza penal, mas administrativa. De acordo com Toffoli cabe a ANVISA fixar a quantidade que diferencia o usuário do traficante. Votaram contra a descriminalização os ministros Cristiano Zanin, André Mendonça e Kassio Nunes Marques. Contudo, todos os nove ministro já concordaram em estabelecer uma quantidade de droga que diferencia o usuário do traficante, embora haja divergência em relação a quantidade.
Por tudo, notadamente para evitar injustiças e distorções, necessário que o STF fixe critérios objetivos que distinga o usuário do traficante para que não fique a diferenciação sujeita a critérios arbitrários, discriminatórios e racistas que tem levado, como já dito e reiterado, os mais vulneráveis (jovens, negros, pobres, periféricos) ao odioso encarceramento.
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1 Violência estrutural é aquela que ocorre sem implicar ofensa às leis do país. Ela está no cerne da organização social, econômica e política, sendo por ela normalizada (Galtung, 1969).
2 SOARES, M.; MACIEL, N. C. A. A Questão racial nos processos criminais por tráfico de drogas dos tribunais estaduais de justiça comum: uma análise exploratória. Nota Técnica nº 61. Brasília: Ipea, 2023. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/12439.