A neurotecnologia é o ramo da ciência que engloba as tecnologias desenvolvidas para entender o cérebro, visualizar seus processos e controlar, reparar ou melhorar suas funções. Embora exista há muito tempo (a eletroencefalografia faz um século este ano), foi apenas recentemente que a neurotecnologia alcançou outras esferas, como o desenvolvimento de medicamentos para tratar alterações mentais (depressão, insônia ou déficit de atenção), até tecnologias dedicadas à reabilitação neurológica. E este é apenas o começo.
Com o desenvolvimento da neurociência e da neurotecnologia, surge a possibilidade de compreender mais profundamente o cérebro humano, através de métodos conhecidos como mapeamento cerebral, técnicas de estimulação cerebral, estudo dos neurotransmissores, entre diversos outros avanços alcançados pela neurociência.
Com a maior utilização das neurotecnologias, especialmente em conjunto com o uso da inteligência artificial, surge também a necessidade de proteger o cérebro e as informações obtidas a partir do uso das referidas tecnologias. Isso deu origem ao que chamamos de neurodireitos, os quais serão devidamente regulamentados em um futuro muito próximo.
Globalmente, o assunto já se encontra em discussões mais avançadas, havendo inclusive uma fundação, a Neurorights Foundation, cujo objetivo é aumentar a conscientização sobre os direitos humanos e as implicações éticas da neurotecnologia. Essa fundação estabelece a existência de cinco neurodireitos, quais sejam:
- Privacidade mental: qualquer dado obtido a partir da atividade neural deverá ser considerado como privado e protegido pelo direito de proteção de dados, sendo que o titular dos dados deverá escolher se e como tais dados poderão ser tratados.
- Identidade pessoal: refere-se ao limite para proibir que a tecnologia interrompa o senso de identidade.
- Livre arbítrio: trata-se da garantia de que cada indivíduo tenha o poder final de decisão, sem interferência de neurotecnologias externas.
- Acesso justo ao aumento mental: envolve o estabelecimento de diretrizes, no âmbito nacional e internacional, para o uso de neurotecnologias que melhorem a capacidade cerebral. Ademais, essas diretrizes deverão garantir que todos que necessitem possam ter o devido acesso a tais melhorias.
- Proteção contra preconceitos: visa estabelecer medidas que combatam e evitem o viés nos algoritmos usados no desenvolvimento de neurotecnologias, de modo a prevenir qualquer tipo de discriminação, bem como evitar que qualquer individuo seja discriminado a partir dos dados obtidos pela neurotecnologia.
A Neurorights Foundation deseja ainda viabilizar uma estrutura ética chamada de Juramento Tecnocrático, para que todos os que desenvolvem e administram a neurotecnologia comprometam-se a empregar os conhecimentos e as técnicas a seu dispor para ajudar as outras pessoas, de modo a prevenir e reduzir o risco de uso indevido ou abuso da neurotecnologia.
Não há dúvidas que, assim como as demais tecnologias avançam e se desenvolvem em uma velocidade surpreendente, a neurotecnologia irá trazer melhorias inimagináveis em muito menos tempo do que imaginamos. Com isso, vislumbra-se cada vez mais necessária a regulamentação e proteção dos neurodireitos, como forma de impedir, ou ao menos mitigar, o mau uso da neurotecnologia.
BCIs - Brain-Computer Interfaces
Ao falar de avanço na neurotecnologia, há que se falar também nas BCIs, que são dispositivos que utilizam técnicas de Interface Cérebro-Computador para alcançar avanços jamais imaginados, proporcionando a possibilidade de capturar, interpretar e traduzir comandos e sinais cerebrais.
Com o avanço dessas tecnologias, essa comunicação entre o cérebro humano e o dispositivo BCI vem se tornando cada vez mais real e significativa, trazendo benefícios extraordinários a quem realmente precisa, tendo em vista que esta tecnologia poderá ajudar pessoas em diversas áreas da saúde, como por exemplo, em casos de reabilitação para pessoas que possuam deficiências físicas severas ou até mesmo quando há necessidade de aprimoramento cognitivo.
Grandes empresas já possuem avanços significativos neste campo, como por exemplo a Apple, que patenteou uma linha de airpods capazes de ler ondas cerebrais, ou até mesmo a empresa Neuralink, do bilionário Elon Musk, que busca oferecer soluções para pessoas com deficiências físicas e neurológicas, através do estudo no campo das Interfaces Cérebro-Computador.
Legislação e neurotecnologias
A OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico trouxe a primeira norma internacional a tratar das neurotecnologias ao adotar, em 11/12/19, a “OECD Recommendation on Responsible Innovation in Neurotechnology” (Recomendação da OCDE sobre Inovação Responsável em Neurotecnologia em tradução livre)1, que busca “orientar os governos e os inovadores a antecipar e enfrentar os desafios éticos, legais e sociais levantados pelas novas neurotecnologias, ao mesmo tempo que promove a inovação neste campo”.
Já a Organização dos Estados Americanos (OEA) também tratou sobre este tema, através da publicação da “Declaración de Principios Interamericanos en Materia de Neurociencias, Neurotecnologías y Derechos Humanos” (CJI/RES. 281 (CII-O/23) corr.1)2, aprovada pelo Comitê Jurídico Interamericano em março de 2023, com um conjunto de propostas que buscam vincular os avanços da neurociência e o desenvolvimento das neurotecnologias às medidas de proteção no campo dos direitos humanos.
Diante deste cenário, a ONU também se atentou a estes avanços e em 2022 o Comitê Internacional de Bioética da UNESCO publicou o “Ethical issues of neurotechnology: report” (Relatório de Questões Éticas em Neurotecnologia em tradução livre)3, e mais recentemente, o Diretor-Geral da UNESCO, em linha com o quanto decidido na 42ª sessão da Conferência Geral da UNESCO (42C/Resolução 29)4, constituiu um Grupo Ad Hoc de Peritos (AHEG na sigla em inglês) para a preparação de um projeto de texto de uma Recomendação sobre a ética da Neurotecnologia. Em 9/5/24 o AHEG publicou a primeira versão do projeto de recomendação sobre ética da neurotecnologia.
Além dos mencionados órgão internacionais e supranacionais, diversos países já tomaram medidas regulatórias visando a proteção destes direitos, sendo que a primeira iniciativa para incorporar os neurodireitos em sua legislação foi do Chile, através da lei 21.383/21, que estabelece a proteção dos direitos neurais e acerca da integridade mental.
A Espanha, também em 2021, promulgou a “Carta de Derechos Digitales”5, que “formula com linguagem atual os direitos dos cidadãos e das empresas no mundo digital” e, desta forma, “elimina incertezas sobre a interpretação de determinados princípios e garante a disponibilidade dos recursos necessários para que todas as pessoas possam desenvolver-se plenamente num mundo digital”.
Por sua vez, a França, em 17/11/22, publicou a “Charte de développement responsable des neurotechnologies” (Carta para o Desenvolvimento Responsável das Neurotecnologias, em tradução livre)6, com o declarado objetivo de “promover o desenvolvimento responsável de neurotecnologias para aplicações médicas e não médicas” assim como “proteger os pacientes e os consumidores contra utilizações potencialmente abusivas e maliciosas que conduzam à perda da liberdade cognitiva ou ao desrespeito da confidencialidade dos dados cerebrais pessoais recolhidos”.
Neurodireitos no Brasil
Além das diversas legislações e normas, nacionais e internacionais, que podem ser utilizadas para o entendimento e a proteção dos neurodireitos, dos avanços das neurotecnologias e daqueles que são afetados por tais tecnologias, tais como a LGPD, a Constituição Federal e até mesmo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Brasil deu recentemente um importante passo no sentido da codificação desses direitos.
Em uma cerimônia solene em 17/4/24, foi realizada a entrega oficial do Anteprojeto de lei para revisão e atualização do Código Civil Brasileiro ao presidente do Senado Federal, senador Rodrigo Pacheco. Elaborado por uma Comissão de Juristas presidida pelos ministros do STJ Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Belizze, o anteprojeto, tem como objetivo principal atualizar os dispositivos legais em consonância com as questões contemporâneas ainda não contempladas quando da promulgação do CC/02.
Dentro desta atualização, o anteprojeto traz um novo Livro VI ao Código Civil, denominado “Direito Civil Digital”, no qual um dos artigos detalha a proteção dos direitos humanos na era digital com a seguinte redação: “Os neurodireitos são parte indissociável da personalidade e recebem a mesma proteção desta, não podendo ser transmitidos, renunciados ou limitados.”
O anteprojeto também busca colocar o Brasil na vanguarda dos neurodireitos ao incluir os cinco neurodireitos descritos pela Neurorights Foundation, textualmente em sua redação.
É certo que o Anteprojeto não se aprofunda na seara dos neurodireitos, uma vez ser um tema extremamente complexo e novo, mas o documento faz o principal: estabelece os princípios e bases para a compreensão e proteção do tema.
Há ainda o PL 522/22, de autoria do deputado Carlos Gaguim (Republicanos), que se encontra em tramitação na Câmara dos Deputados, e cujo teor é a modificação da lei 13.709/18 (LGPD), a fim de conceituar dado neural, interface cérebro-computador e neurotecnologia, além de trazer regras para o tratamento de dados neurais.
Além do Anteprojeto e do PL, existe uma proposta de emenda constitucional (PEC 29/23)7 de iniciativa do senador Randolfe Rodrigues (REDE) para incluir, entre os direitos e garantias fundamentais, a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica. Na justificativa da PEC, explana o senador: "O Brasil (...) reafirmando seu conhecido protagonismo na defesa dos direitos humanos (...) [precisa internalizar] em seu conjunto normativo a tutela constitucional a esse novo direito humano: o neurodireito."
Conclusão
É importante ressaltar que o respaldo na legislação é fundamental para garantir a segurança aos indivíduos, levando em consideração não só os benefícios como também os riscos destas tecnologias, tais como a manipulação, uso indevido ou violação da privacidade dos dados neurais, questões relacionadas à autonomia individual, livre arbítrio e o próprio conceito de identidade, desigualdades sociais e econômicas relacionadas à utilização das neurotecnologias, dentre outras.
Não obstante, as ameaças sempre irão existir, mas os benefícios trazidos por estes avanços podem ser consideravelmente maiores.
O mundo em que vivemos hoje, da era digital e da inteligência artificial, é um mundo onde tudo acontece de forma muito rápida, onde atualmente já existem tecnologias capazes de fazer com que indivíduos possam se movimentar com pensamentos, no qual eletrodos podem acessar pensamentos e sentimentos e até mesmo alterá-los. Por esse motivo a regulamentação dos neuroditeitos é uma necessidade premente e faz parte do nosso futuro imediato.
1 Disponível em: https://www.oecd.org/science/recommendation-on-responsible-innovation-in-neurotechnology.htm
2 Disponível em: https://www.oas.org/es/sla/cji/docs/CJI-RES_281_CII-O-23_corr1_ESP.pdf
3 Disponível em inglês em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000383559/PDF/383559eng.pdf.multi
4 Disponível em inglês em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000389768?posInSet=7&queryId=6f32d67f-d6c9-4e06-a1af-a432760d7b74
5 Disponível em espanhol em: https://www.lamoncloa.gob.es/presidente/actividades/Documents/2021/140721-Carta_Derechos_Digitales_RedEs.pdf
6 Disponível em francês e inglês em: https://www.enseignementsup-recherche.gouv.fr/fr/charte-de-developpement-responsable-des-neurotechnologies-87964
7 Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pec-29-2023