No dia 17/5, foi sancionado o projeto de lei complementar 233/23 que instituiu a volta do seguro obrigatório por DPVAT - Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores Terrestres. Agora, passa à denominação SPVAT - Seguro Obrigatório para Proteção de Vítimas de Acidentes de Trânsito e marca uma reformulação significativa na maneira como o Brasil lida com as indenizações para vítimas de acidentes de trânsito. O SPVAT surge com um novo nome e com modificações que afetam diretamente a população brasileira e a administração do seguro.
Historicamente, o DPVAT foi uma ferramenta de inclusão social e um instrumento de política pública importante, em vigor por quase 50 anos. Tinha como objetivo fornecer cobertura a todos os brasileiros em caso de acidentes de trânsito, sem necessidade de apuração de culpa, cobrindo casos de morte, invalidez permanente e reembolso de despesas médicas.
No entanto, sua suspensão em 2020 pelo antigo governo, sob a justificativa de problemas operacionais e de gestão, encerrou abruptamente quase cinco décadas de avanços e bons serviços prestados à população, especialmente a mais carente. O Governo, ao invés de tomar medidas para o aperfeiçoamento do instituto, por exemplo, utilizando os recursos da reserva técnica para aumentar os valores das coberturas para morte, invalidez permanente e despesas de assistência médica suplementares, optou pelo pior dos cenários: deixar de cobrar o prêmio (preço) do seguro DPVAT e continuar pagando as indenizações. Esta interrupção levou à gestão temporária das indenizações pela Caixa Econômica Federal, mas os recursos rapidamente se esgotaram.
A extinção do DPVAT e sua substituição pelo novo SPVAT não resolveu uma das maiores críticas ao sistema anterior: o monopólio da gestão do seguro. A inexistência de concorrência impede o aperfeiçoamento natural que as exigências dos consumidores trariam ao instituto. A nosso ver perdeu-se a oportunidade de estimular a concorrência, melhorar a qualidade dos serviços e aumentar os valores das indenizações.
Outro ponto importante sobre a nova regulação foi a modificação de algumas regras. Na antiga lei, alterada pela lei 8.441/92, os valores de indenização eram calculados com base em parâmetros fixos, proporcionando certa previsibilidade aos beneficiários, ainda que o montante estivesse defasado.
A nova legislação retirou a fixação de valores da lei, passando a responsabilidade, pela fixação dos valores das indenizações, para a Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), órgão governamental. Esse ponto é particularmente preocupante, pois submete a definição à discricionariedade governamental, que pode variar conforme as mudanças políticas, sem uma política de Estado clara e consistente. Se esta mudança é boa ou ruim, apenas o tempo dirá.
Acaso o Governo tivesse optado por aumentar os valores das coberturas para os parâmetros inicialmente previstos pela lei 6.194/74, os valores para morte e invalidez permanente seriam hoje da ordem de R$ 56.480,00, enquanto o valor para reembolso de despesas de assistência médica suplementares seria de R$ 11.296,00).
Estes valores são, ainda hoje, substanciais e, pessoalmente, assistimos tantas e tantas vezes, nos mutirões de conciliação em vários Estados, cônjuges que receberiam o valor da indenização pela morte de seu ente querido e comprariam seu sonhado imóvel para aconchego de sua família.
Outro caminho para o aperfeiçoamento do seguro DPVAT seria a alteração para se tornar um seguro obrigatório de responsabilidade civil com ampliação das coberturas. O seguro SPVAT, pela nova Lei, cobre despesas funerárias e de reabilitação profissional de pessoas com invalidez, desde que não estejam disponíveis no SUS. A título de exemplos, o SUS disponibiliza atendimento para o acidentado, mas caso a vítima prefira consultar com médico particular, não poderá pedir reembolso; a regra se aplica também à fisioterapia e demais tratamentos. Quanto aos medicamentos, serão reembolsados mediante apresentação de NF e respeitando o teto de valores.
Nesse aspecto, a nosso sentir, a nova regulamentação marcou uma perda substancial para a população brasileira. Enquanto anteriormente as despesas de assistência médica suplementar eram reembolsadas independentemente de o atendimento ser realizado pelo SUS ou por meio de seguros ou planos de saúde privados, agora, se o atendimento tiver sido realizado por esses sistemas, o reembolso pelo SPVAT é excluído.
É evidente que o beneficiário não poderia pedir o reembolso de despesas as quais não tenha feito o pagamento, mas existem muitas outras despesas além de medicamentos, tais como consultas médicas, fisioterapia, equipamentos ortopédicos, órteses, próteses etc., que serão pagas pelo beneficiário e que necessitariam reembolso pelo SPVAT. Essa mudança diminui significativamente a abrangência do seguro.
Enfim, o mercado poderia ter sido chamado para discutir as melhores alternativas, mas isto não ocorreu, pondo fim a um instituto que perdurou por quase meio século e jogando por terra todo um arcabouço jurídico que foi construindo ao longo dos anos.
Importante que este aprendizado não se perca, dado que foi construído a partir do estudo aprofundado de profissionais do Direito das mais diversas áreas, advogados, Membros do Ministério Público, juízes de 1º grau, desembargadores e ministros de Tribunais Superiores. No início de 2023, o STJ atualizou duas edições de sua ferramenta "Jurisprudência em Teses", publicando as edições 6 e 8, as quais reproduzo a seguir:
- A ação de cobrança do seguro obrigatório (DPVAT) prescreve em três anos (Súmula n. 405/STJ).
- A ação de cobrança da complementação do seguro obrigatório (DPVAT) prescreve em três anos a contar do pagamento feito a menor.
- Nos casos de invalidez permanente, o termo inicial do prazo prescricional da ação de cobrança do seguro obrigatório (DPVAT) é a data em que o segurado teve ciência inequívoca da incapacidade laboral.
- A verificação da data em que o segurado teve ciência inequívoca da incapacidade laboral, para fins de contagem do prazo prescricional da ação de cobrança do seguro obrigatório (DPVAT), demanda reexame fático-probatório, vedado em Recurso Especial.
- O pedido do pagamento de indenização à seguradora suspende o prazo prescricional da ação de cobrança do seguro obrigatório (DPVAT) até que o segurado tenha ciência da decisão.
- Na ação de cobrança do seguro DPVAT, constitui faculdade do autor escolher entre os foros do seu domicílio, do local do acidente ou ainda do domicílio do réu (súmula 540/STJ).
- A Segunda Seção, na sessão de 27/5/15, ao julgar o REsp 858.056/GO, determinou o cancelamento da súmula 470/STJ.
- As seguradoras integrantes do consórcio do seguro obrigatório (DPVAT) são solidariamente responsáveis pelo pagamento das indenizações securitárias.
- O fato gerador da cobertura do seguro obrigatório (DPVAT) é o acidente causador de dano pessoal provocado por veículo automotor terrestre ou por sua carga, em movimento ou não.
- Os juros de mora na indenização do seguro DPVAT fluem a partir da citação (súmula 426/STJ) (Tese julgada sob o rito do art. 543-C do CPC/1973 - TEMA 197).
- Na vigência da redação original do art. 3º da lei 6.194/74, a indenização decorrente do seguro obrigatório (DPVAT) deve ser apurada com base no valor do salário-mínimo vigente na data do evento danoso, observada a atualização monetária até o dia do pagamento.
- A indenização do seguro DPVAT, em caso de invalidez parcial do beneficiário, será paga de forma proporcional ao grau da invalidez (Súmula n. 474/STJ) (Tese julgada sob o rito do art. 543-C do CPC/1973 - TEMA 542).
- É válida a utilização de tabela do Conselho Nacional de Seguros Privados para estabelecer a proporcionalidade da indenização do seguro DPVAT ao grau de invalidez também na hipótese de sinistro anterior a 16/12/08, data da entrada em vigor da Medida Provisória 451/08 (súmula 544/STJ).
- No caso de reembolso de DAMS - despesas de assistência médica e suplementares, não há como ser adotada a tabela do CNSP - Conselho Nacional dos Seguros Privados que limita o teto indenizatório a valor inferior ao máximo previsto em lei para o seguro obrigatório (DPVAT).
- No caso de reembolso de DAMS, enquanto não houver permissão legal para adoção de uma tabela de referência que delimite as indenizações a serem pagas pelas seguradoras, o valor máximo previsto em lei não pode ser reduzido por resoluções.
- A falta de pagamento do prêmio do seguro obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT) não é motivo para a recusa do pagamento da indenização (súmula 257/STJ).
Observe que o disposto acima reflete a consolidação jurisprudencial de um instituto, que, por tanto tempo, foi instrumento de proteção de milhões de pessoas no Brasil, que tiveram no seguro DPVAT o único amparo no momento em que perderam seus progenitores e, por consequência, o sustento de suas famílias, especialmente considerando que grande parte das vítimas vivia na informalidade.
Portanto, acredito que a ausência de valores fixados em lei, o monopólio e a restrição das hipóteses de reembolsos podem ser considerados retrocessos, que poderiam ter sido evitados através de amplos debates na sociedade. Inobstante, aprovado o texto da nova Lei que cria o SPVAT, cabe à sociedade acompanhar a fixação dos valores das indenizações pela Superintendência de Seguros Privados e a evolução da jurisprudência para o aperfeiçoamento deste instituto, tão importante para milhões de cidadãos brasileiros.