Foi publicada na última semana, 4.6.24, a lei 14.879/24, que alterou o art. 63 do CPC, que trata dos critérios relativos à Modificação de Competência. Em resumo, a aludida alteração legislativa limitou a autonomia das partes ao escolherem o foro competente para eventual disputa relacionada a determinado negócio jurídico.
A nova lei alterou substancialmente o §1º e acrescentou o §5º no art. 63, conforme se depreende do quadro abaixo:
A alteração, na prática, significa reconhecer que as partes de um contrato não poderão, mais, escolher livremente o foro em razão do valor e do território, situações essas em que, até então, observado requisitos específicos, vinculavam-se exclusivamente à esfera de vontade dos contratantes.
A respeito dos requisitos até a alteração legislativa, exigia-se, tão somente, para escolha do foro, que o negócio tivesse como base instrumento escrito e que fizesse alusão a negócio jurídico determinado.
A partir de agora, contudo, além dos requisitos citados anteriormente, a lei exige que o foro eleito pelas partes guarde relação com (a) domicílio ou residência de uma das partes; ou (b) local onde a obrigação contratual deve ser cumprida, ressalvada relações jurídicas regidas pelo Código de Defesa do Consumidor.
Os motivos para a alteração, conforme se depreende da justificativa do seu projeto de lei (PL 1.803/23), são que :
- a cláusula de eleição de foro deve ser usada com lealdade processual;
- a escolha aleatória e injustificada de foro pode resultar em prejuízo à sociedade daquela área territorial, sobrecarregando tribunais que não guardam qualquer pertinência com o caso em deslinde;
- o direito constitucional de propor ação deve necessariamente firmar-se em razoável fundamentação jurídica para sua distribuição territorial, mostrando-se necessária, como consectário lógico, a devida intervenção do magistrado para declinar de sua competência com o fim de coibir abusos ou desvirtuamentos, inclusive para não prejudicar a sociedade local, mormente em tempos de processo judicial eletrônico;
- essa lei visa coibir a prática abusiva desse direito, buscando sempre resguardar a pertinência com o domicílio das partes ou com o local da obrigação, sob pena de se torna um mero instrumento para escolha dos tribunais que apresentam melhor desempenho no País e, consequentemente, em detrimento da jurisdição em que atuam.
Apesar de a lei ser baseada em premissas subjetivas1 e equivocadas,2 pretendemos neste curto artigo elencar alguns dos possíveis impactos imediatos que essa lei terá nos contratos empresariais.
IMPEDIMENTO DE ESCOLHER VARAS ESPECIALIZADAS
Um dos principais motivos que levam as empresas a escolherem o foro para o trâmite dos seus processos é a isenção do foro3 e especialização de determinado foro para alguns tipos de temas.4
Um exemplo é o caso de contratos de fornecimento de equipamentos agrícolas entre partes de dois estados diferentes (p. ex. fornecedor no Amapá e o contratante no Mato Grosso do Sul), mas que optaram por escolher o foro na capital de São Paulo para solução de eventual controvérsia.
Outro exemplo possível é quando as partes – desses mesmos estados, para fins didáticos – realizam contrato de M&A e surge discussão quanto à cláusula de Ajuste de Preço.
Em uma pesquisa realizada pelo CNJ em 2020 apontou-se que “95% dos juízes, 89% dos servidores e 76% dos advogados acreditam que as unidades dedicadas de áreas específicas” tendem a dar mais qualidade aos serviços prestados.5
Essa pesquisa comprovou situação que os advogados, em sua maioria, já percebem há um bom tempo:6
Nas vantagens identificadas especificamente no dia a dia da advocacia, a maioria dos advogados que participaram da pesquisa creditou à especialização de algumas unidades judiciárias melhoras em relação ao atendimento que recebem tanto pelos magistrados, de acordo com 59,6% dos respondentes, servidores de cartórios (52,4%) e de gabinetes (53,3%).
Os principais motivos que justificariam a criação de uma vara especializada, de acordo com as opiniões colhidas no estudo, foram a demanda processual distribuída às demais unidades da mesma comarca e a sensibilidade de algumas matérias que mereceriam atenção exclusiva.
No caso do exemplo da discussão envolvendo ajuste de preço, as partes poderiam escolher um foro que, além da especialidade na matéria empresarial, teria certa recorrência nesse tipo de discussão, tendo maior segurança jurídica quanto ao cenário decisório.
Com a mudança realizada no art. 63 do CPC, se porventura as partes não estiverem domiciliadas em locais que tenham varas especializadas, terão seus casos julgados por varas comuns com perfil residual (julgam matérias de direito criminal, família, cível, empresarial, tributário e administrativo), o que, consequentemente, poderá impactar a qualidade dos julgamentos e, mais do que isso, promover maior insegurança jurídica.
TUMULTO E DEMORA PARA RESOLUÇÃO DOS PROCESSOS
O assoberbamento do judiciário já é um assunto bem conhecido entre os jurisdicionados, advogados e os próprios juízes. Suprimir o direito de as partes elegerem o foro pode, em princípio, piorar ainda mais o cenário. Isso porque, demandas complexas costumam ser solucionadas com menor dispêndio de energia em determinados foros mais especializados.
Nesse sentido, o CNJ, por meio do relatório anual, já se manifestou no sentido de que a falta de varas especializadas e segregação das matérias é um dos fatores (se não o principal) para o congestionamento do trâmite das ações judiciais.7
Um estudo realizado pela Ana Paula Ribeiro Nani, no seu trabalho apresentado ao programa de mestrado de direito da FGV São Paulo, o tempo médio de um processo em trâmite perante as varas cíveis é de 415 dias, quanto que nas varas empresariais é de 217,8 dias.8
A impossibilidade de as Partes elegerem foro diferente de onde elas estão estabelecidas e/ou a obrigação do contrato tenha que ser realizada irá promover uma maior demora, especialmente em locais em que que há apenas uma vara, pois nela serão concentradas ações de diversas naturezas e matérias.9
Para o empresariado isso significa que, disputas que merecem celeridade e especialidade, poderão se tornar mais demorados e com menor previsibilidade.
POSSÍVEIS ALTERNATIVAS
Diante desse cenário, uma alternativa possível, é que os contratos empresariais passem a prever cláusulas compromissórias prevendo a arbitragem como método adequado de solução de conflitos, pois, nessa hipótese, haverá um campo maior de liberdade na busca por maior especialidade/celeridade.
Mas, o outro lado dessa moeda (escolha da arbitragem), é que as partes incorrerão, provavelmente, em maiores custos (pelo menos de imediato), o que pode fomentar a criação para um novo mercado de novas câmaras arbitrais, com custos e procedimentos mais acessíveis.
Alternativa viável pode ser a busca por soluções consensuais para eventuais resoluções de conflitos, haja vista que a arbitragem tem o fator “custo imediato”.10
Com esse cenário, a mediação empresarial também pode acabar sendo privilegiada, sendo uma opção mais barata e que pode ser tão célere quanto a arbitragem, sendo mais “adaptável” a litígios comerciais de menores monta.
Neste caso, cláusulas escalonadas também poderão ser exploradas, tanto aquelas que preveem a mediação primeiro e depois a arbitragem quanto aquelas que estabelecem a instituição do procedimento arbitral primeiro e depois a tentativa de mediação. Ou ainda, poderá se pensar em cláusulas que estabelecem a mediação como uma etapa obrigatória antes de ser ajuizada a ação judicial.
CONCLUSÕES PRELIMINARES
A despeito de a lei 14.879/24 ser de constitucionalidade duvidosa - pois interfere na liberdade das partes ao firmarem determinado negócio jurídico – o fato é que, pelo menos, a princípio, produz seus regulares efeitos.
Nesse sentido, se as partes de um contrato tiverem com objetivo buscar mais especialidade e celeridade no julgamento de eventuais litígios, uma saída possível é a renúncia à jurisdição estatal, a fim de que os conflitos sejam resolvidos por meio de procedimento arbitral. Nesse cenário, que potencializa a vontade das partes, seria possível, ao menos em tese, ter um julgamento com maior qualidade e em menor tempo.
Ou ainda, terem a oportunidade de investirem na autocomposição, como é o caso da mediação.
1 O fato de as partes poderem escolher o foro para resolver eventuais impasses é uma prática abusiva, especialmente quando “se torna um mero instrumento para escolha dos tribunais que apresentam melhor desempenho no País e, consequentemente, em detrimento da jurisdição em que atuam.”
2 A título de exemplo, quando diz que a cláusula de eleição de foro deve ser usada com lealdade processual, quando que esse princípio diz respeito a conduta das partes no processo em si (BONÍCIO, Marcelo José M. p 64)
3 Especialmente quando uma das partes tem domínio generalizado em determinado local.
4 Disputas societárias, contratos de fornecimento de energia, contrato de compra e venda de participação societária e reorganizações societárias (M&A), contratos comerciais de fornecimento de bens e produtos, contratos de franquias, contratos de financiamento e investimento (operações de Mercado de Capitais) e afins.
5 Disponível em: https://www.cnj.jus.br/juizes-servidores-e-advogados-aprovam-especializacao-de-varas-para-melhoria-do-servico/. Último acesso em 11.06.2024
6 Disponível em: https://www.cnj.jus.br/juizes-servidores-e-advogados-aprovam-especializacao-de-varas-para-melhoria-do-servico/. Último acesso em 11.06.2024
7 Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Justiça em Números 2023. – Brasília: CNJ, 2023, p. 167
8 NANI, Ana Paula Ribeiro. As varas empresariais do Tribunal de Justiça de São Paulo: os impactos no tempo médio processual, na qualidade das decisões e na previsibilidade dos
julgamentos em matéria empresarial. 2023. Dissertação (mestrado) - Fundação Getulio Vargas, Escola de Direito de São Paulo, São Paulo, 2023. Acesso em: 11.06.2024. pp. 164-165
9 Vale apontar que, conforme o relatório CNJ de 2023, as ações de execução são as mais demoradas, portanto, varas que congregam discussões ainda de conhecimento e execução, serão as mais demoradas. Nesse sentido ver Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Justiça em Números 2023. – Brasília: CNJ, 2023, p. 219
10 Custas do procedimento e honorários dos árbitros, que cabe, via de regra, a quem dá início a arbitragem