Agora, 3/6, completam cem anos da morte do escritor Franz Kafka. A distância de um século que nos separa de sua partida tão precoce parece não ter diluído sua presença em nosso cotidiano, ainda mais no meio jurídico, onde, dia sim e outro também, vemos o emprego da expressão kafkiana, a retratar os embustes e nós da burocracia estatal.
A caricatura, muitas vezes assustadoramente próxima do real, com que retratou os labirintos processuais e as contradições de sistemas inquisitórios não surge sem motivo. Kafka se formou em direito, em 1906, e foi trabalhar na área de seguros, primeiro numa companhia privada italiana e, depois, numa repartição oficial, no Departamento de Seguros de Acidentes dos Trabalhadores, em Praga. Foi conciliando trabalho e vocação literária, realidade e fantasia, que o escritor pôde nos deixar uma obra tão rica em reflexões, especialmente ao direito.
Deixou, aliás, a contragosto. Afinal, várias de suas obras, como ‘O Processo’, ‘O Castelo’ e parte de seus contos foram publicados postumamente por seu testamenteiro e amigo, Max Brod, contrariando recomendação expressa do próprio Kafka que havia disposto que todos seus escritos deveriam ser destruídos. A traição do testamenteiro ao desatender a melancolia do testador, que delegou o suicídio literário, merece pleno perdão, pois, como defende Ênio Silveira, é como se alguém chamasse uma pessoa de sua mais total confiança e lhe dissesse: “Meu caro, pensei bem e quero acabar com minha vida. Apanhe o revólver que está na primeira gaveta da cômoda e me dê um tiro no coração” (SILVEIRA, 1993).
Seja como for, sua obra sobreviveu metamorfoseada em jargão jurídico. Entre presunções absolutas de culpabilidade, advogados equinos (dr. Bucéfalo), tribunais inalcançáveis e colônias penais implacáveis, fica a (sempre presente) lição sobre como que o sistema jurídico edifica seus próprios absurdos processuais. Invariavelmente, a incompreensão do processo se dá por uma Justiça fugidiça, em que a lei é um segredo dos juízes (POSNER, 2009), protegido por camadas de personagens, estruturalmente separados uns dos outros, cujo dever de ofício é apenas cumprir ordens expedidas sempre por outro alguém, desconhecido e, por sua vez, ainda mais distante. Nisso, pelos ritos e organogramas, perde-se o principal: a delimitação objetiva do que se está a julgar; a fundamentação clara e precisa, pela qual se defere ou indefere os pedidos que batem às portas dos tribunais.
Como narra Kafka, diante da lei está um guarda e, quando o homem do campo lhe pergunta se pode autorizar a entrada, tem sempre como resposta: é possível, mas agora não (KAFKA, 1925).
Um viva à memória do cavaleiro do balde, seus escritos e ao seu infiel testamenteiro.
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POSNER, Richard A. Law & literature. Cambridge. Editora Havard University Press, 2009. P. 245.
KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo. Editora Circulo do Livro S.A., 1925. P. 121.
SILVEIRA, Ênio. Kafka, singular e plural. In. KAFKA, Franz. Contos, Fábulas e Aforismos. Editora Civilização Brasileira, 1993. P. 15.