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STF sinaliza a inconstitucionalidade do comitê gestor do IBS

A EC 132/23 instituiu o IBS dual, unindo ICMS estadual e ISS municipal. Isso fere a autonomia financeira e política dos entes federados, protegida por cláusula pétrea e prevista na CF. A discriminação constitucional dos impostos é essencial para manter essa autonomia. A adaptação do IVA europeu à Federação Brasileira foi inadequada.

4/6/2024

Como se sabe a EC 132/23 instituiu o IBS dual (partilhado entre estados e municípios) fundindo em seu torno o ICMS estadual e o ISS municipal.

Qualquer estudante de direito sabe que não se pode unificar impostos pertencentes a entes federados diferentes e ao mesmo tempo manter o princípio federativo protegido por cláusula pétrea (art. 60 § 4º, I da CF), que proíbe a deliberação de emenda tendente à abolição do pacto federativo.

A EC 132/23, ao retirar do estado o seu imposto de maior arrecadação, e do município, igualmente, o seu imposto de maior expressão financeira, acaba com a independência financeira dos entes regionais e locais, suprimindo a sua autonomia política administrativa prevista no art. 18 da CF.

Somente a discriminação constitucional de impostos privativos de cada ente político prevista nos arts. 153, 155 e 156 da CF, respectivamente, para a União, estados e municípios será capaz de assegurar a referida autonomia dos entes federados.

Entretanto, os importadores do IVA de países unitários que compõem a União Europeia foram incapazes de adaptar o IVA europeu à peculiaridade da Federação Brasileira que abriga a União, os estados e os municípios independentes e autônomos entre si, extraindo cada um desses entes federados seus poderes diretamente do texto constitucional (arts. 21, 22 e 30 da CF).

Esse poder abarca o poder de legislar, o poder de administrar e o poder de tributar. A competência do estado é extraída por exclusão. Tudo que não for da competência expressa da União e dos municípios, é de competência dos estados.

Pois bem, a EC 132/23, por meio de copiagem muito mal feita, aniquila o poder tributário dos estados e dos municípios destruindo o princípio discriminador de rendas tributárias que dá sustentação à autonomia dos entes políticos regionais e locais.

O IBS dual é instituído pela União, por via de lei complementar que, contudo, não tem o poder para fixar as alíquotas, nem para fiscalizar e arrecadar como seria o normal.

A sua fiscalização cabe aos estados e municípios que, por sua vez, não têm competência para arrecadar, nem competência para dirimir os conflitos administrativo-tributários resultantes dos autos de infração lavrados pelos fiscos, estadual e municipal.

A arrecadação e a partilha do produto da arrecadação do IBS ficam a cargo exclusivo do Comitê Gestor, um órgão autônomo dotado de recursos financeiros próprios, que não tem o poder de fiscalizar.

Outrossim, cabe a esse Comitê Gestor decidir o processo administrativo que surgir dos autos de infração lavrados por órgãos administrativos tributários dos estados e dos municípios. Temos um imposto ímpar no mundo: a União institui o imposto; estados e municípios, instituem as alíquotas e fiscalizam o imposto; e o Comitê Gestor promove a arrecadação, a partilha do imposto e julga os processos administrativos tributários oriundos de autos de infração lavrados por estados e municípios.

Os inteligentes burocratas que importaram o IVA europeu ao prescrever atribuições sucessivas a vários entes políticos e a um órgão autônomo em relação ao IBS devem ter se inspirado no revezamento da tocha olímpica. É a única explicação plausível!

O Comitê Gestor tem, ainda, competência normativa e interpretativa das normas que vier a instituir. É espantoso: interpreta as normas que ele mesmo  instituiu. É como se o Congresso Nacional fosse o intérprete das leis que elabora, e não o Judiciário.

Na verdade, esse Comitê Gestor usurpa a competência constitucional dos entes federados, atuando como se fosse um quarto poder da República, sem a menor base constitucional.

Mas, toda essa confusão que resulta da cisão do incindível –, porque o poder de tributar pressupõe o poder de criar o tributo, fiscalizar, arrecadar o tributo e dirimir litígios tributários na esfera administrativa, por meio de seus órgãos administrativos julgadores de primeira e segunda instância –, é absolutamente inconstitucional. É como pretender separar do corpo humano o coração, o fígado, os pulmões etc. e ao mesmo tempo querer manter vivo o corpo humano.

 Esse Comitê Gestor metamorfoseada decreta a morte do Sistema Tributário vigente em um país de estrutura federativa. Os jesunos em direito que conduziram a reforma não foram capazes de enxergar o óbvio. E nem tiveram a humildade de ouvir os especialistas em direito tributário.  Copiar, por si só, não é um mal. O absurdo está na cegueira, na incapacidade de adaptar o modelo copiado à nossa realidade, um país federado, que difere de um país unitário da Europa, onde não há problema de repartição de competência como acontecia no período do Brasil-Império.  A Carta Outorgada de 1824 continha um único artigo sobre impostos e era suficiente porque todo o poder estava concentrado em mãos do Imperador.

O STF em recente julgamento sinalizou a inconstitucionalidade desse Comitê Gestor amorfo como se verifica da ementa abaixo:

“Ementa: Direito constitucional e administrativo. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 12.638/07, do Estado de São Paulo. Criação do Conselho de Política de Administração de Pessoal. Interferência nas atribuições do Chefe do Executivo para organização da administração pública.

  1. Ação direta de inconstitucionalidade contra a lei estadual 12.638/07, que “dispõe sobre a regulamentação do artigo 39 da Constituição Federal, instituindo Conselho de Política de Administração de Pessoal, no âmbito do Estado de São Paulo”.
  2. Na ADI 2.135-MC, esta Corte suspendeu a eficácia do art. 39, caput, na redação dada pela EC 19/98, ressalvando, em decorrência dos efeitos ex nunc da decisão, a subsistência, até o julgamento definitivo da ação, da validade dos atos praticados durante o período em que a nova redação produziu efeitos.
  3. A suspensão, com efeitos ex nunc, da eficácia do art. 39, caput, da Constituição Federal, na redação da EC 19/98, não é fundamento suficiente para a declaração de inconstitucionalidade da norma impugnada, editada em momento anterior à decisão do STF. A presente ação direta não é a via própria para analisar eventual inconstitucionalidade por arrastamento, tendo em vista que não impugna o art. 39, caput, da Constituição Federal, objeto da ADI 2.135. 4. A lei estadual, oriunda de projeto de lei de iniciativa parlamentar, usurpa a competência privativa do chefe do Poder Executivo para dispor sobre a organização da administração pública (art. 61, § 1º, II, e, c/c o art. 84, IV, CF), uma vez que cria atribuições administrativas, alterando o rol de atividades a serem desempenhadas pelos órgãos públicos daquele ente federativo. 5. Pedido julgado procedente.

Decisão

"O Tribunal, por unanimidade, julgou procedente o pedido formulado na ação direta, para declarar a inconstitucionalidade da lei 12.638/07, do Estado de São Paulo, nos termos do voto do relator. Falou, pelo requerente, o dr. André Brawerman, procurador do Estado de São Paulo. Plenário, Sessão Virtual de 14.4.23 a 24.4.23.” (ADI 4.316).

O STF vislumbrou na criação do Conselho de Política de Administração de Pessoal uma ilegítima interferência nas atribuições do chefe do Poder Executivo para a organização da administração pública usurpando a competência privativa do chefe de governo para dispor sobre organização da administração pública, conforme dispositivos constitucionais citados.

O caso julgado pelo STF era bem menos grave porque limitada à usurpação de competência do chefe do Poder Executivo para a organização da administração pública, ao passo que o Comitê Gestor, previsto na EC 132/23, usurpa o poder tributário, inerente aos entes políticos, que assegura a independência e autonomia dos estados e dos municípios, ferindo de morte da Federação Brasileira ao fatiar essa competência entre vários entes políticos (União, estados e municípios) e um mero órgão federal autônomo, que faz as vezes de um Poder do Estado, transformando-se em um quarto poder da República.

Por tais razões, a criação desse Comitê Gestor, como prevista no PLP 68/24, agrava a inconstitucionalidade da EC 132/23 que põe terra abaixo o pacto federativo.

O Comitê Gestor é erigido sobre as ruínas da Federação Brasileira, que passa a ser o seu alicerce.

Kiyoshi Harada
Sócio do escritório Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário pela USP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário - IBEDAFT.

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