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Relativização da impenhorabilidade do bem de família

STJ tem admitido relativização a impenhorabilidade do bem de família em situações não delimitadas pela lei 8.009/90.

24/5/2024

A regra da impenhorabilidade do bem de família é consagrada no ordenamento jurídico brasileiro como uma forma de proteger o direito à moradia, caracterizado como direito fundamental pelo art. 6º da Constituição Federal, e à dignidade das famílias.

A impenhorabilidade do bem de família está prevista no art. 1º da lei 8.009/90, que estabelece que o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam.

Em atenção aos possíveis desfechos negativos que a referida regra poderia causar, o art. 3º da lei 8.009/90 estabelece algumas exceções à impenhorabilidade, como nos casos de dívidas decorrentes de pensão alimentícia, impostos prediais e taxas condominiais. Nessas situações, o próprio texto legal prevê a possibilidade de penhora do bem de família para garantir o pagamento dessas obrigações

Ocorre que, atualmente, em certos casos, a jurisprudência do STJ tem admitido a relativização desta regra, permitindo a penhora do bem em outras situações específicas, não delimitadas na lei 8.009/90. Uma das hipóteses mais comuns é a vedação ao comportamento contraditório. Nesses casos, o STJ, a partir do julgado REsp 1.782.227/PR, tem entendido que a proteção do bem de família não pode prevalecer sobre a própria ética e a boa-fé, ao passo que, por exemplo, não se pode admitir que o devedor oferte bem em garantia que é sabidamente residência familiar para, posteriormente, vir a informar que tal garantia não encontra respaldo legal, pugnando pela sua exclusão.

Em suma, os julgados do STJ que relativizaram a regra de impenhorabilidade, basicamente, dizem respeito a utilização indevida (ou má-fé) da proteção legal dada ao bem família pela lei 8.009/90. Seria o caso, por exemplo, da (i) transferência de imóvel residencial da família no trâmite de execução em face do casal, para a cunhada e irmã dos devedores (REsp 1.575.243/DF); e, da (ii) doação ao filho, menor impúbere, que sequer tinha interesse na realização do negócio, sendo manifestado, na verdade, a vontade dos pais, com a realização de anterior promessa de compra e venda "de gaveta" com terceiros, de modo ocultar o patrimônio dos patriarcas no registro de imóveis (REsp 1.364.509/RS).

No entanto, há casos em que, mesmo havendo discussão acerca da caracterização da má-fé ou não, o entendimento do STJ é firme no sentido de que a cláusula de impenhorabilidade deve ser mantida nos casos em que o devedor aliene imóvel residencial de sua família, “porque o imóvel em questão seria imune aos efeitos da execução, não havendo falar em fraude à execução na espécie” (AREsp 2.174.427).

Por fim, ressalta-se que, em um dos julgados mais recentes do STJ (REsp 2082860/RS), foi admitida a possibilidade de penhora do bem de família em casos de dívidas contraídas para a reforma do próprio imóvel, a fim de impedir a deturpação da prerrogativa legal, que visa utilizá-la como artifício para possibilitar a aquisição, melhoramento, uso, gozo e/ou disposição do bem de família sem qualquer compensação, à custa de terceiros.

Segundo a ministra Nancy Andrighi, a partir da leitura do art. 3º, II, da lei 8.009/90, resta claro que a intenção do legislador aqui foi “coibir que o devedor se escude na impenhorabilidade do bem de família para obstar a cobrança de dívida contraída para aquisição, construção ou reforma do próprio imóvel, ou seja, de débito derivado de negócio jurídico envolvendo o próprio bem” (REsp 2082860/RS).

Diante desse contexto, percebe-se que a relativização da impenhorabilidade do bem de família legal é uma medida necessária para conciliar interesses conflitantes, como o direito à moradia e a proteção dos credores. No entanto, é fundamental que essa relativização seja aplicada de forma criteriosa, observando-se os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Sérgio Ferrari
Professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.

Vitória de Souza Torres
Advogada no Terra Tavares Elias Rosa. Pós-graduanda em Processo Civil pela PUC-SP. Bacharel em Direito pela PUC-SP.

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