1. Introdução
Na presente análise, discutiremos a responsabilidade penal dos pais pela recusa de transfusão sanguínea em paciente menor de idade, à luz da decisão da 6ª turma do STJ no Habeas Corpus 268.459/SP1, proferida em 2/9/14, que discutiu a responsabilidade penal dos pais pela recusa de transfusão sanguínea em paciente menor de idade. O caso envolve uma adolescente de 13 anos, filha de membros da religião “Testemunhas de Jeová”, e cujos pais recusaram autorizar a transfusão de sangue necessária para salvar sua vida, resultando em seu óbito. Analisaremos os aspectos jurídicos envolvidos no caso, as responsabilidades penais dos pais e da equipe médica, e suas implicações legais.
2. Contextualização do caso
O HC 268.459/SP refere-se a um caso no qual os pais de uma paciente menor de idade, Testemunhas de Jeová, recusaram autorizar uma transfusão sanguínea necessária para salvar a vida da criança. A recusa dos pais baseou-se em suas convicções religiosas – seguidores dos “Testemunhas de Jeová” defendem que nenhum membro da família pode se submeter à transfusão de sangue2 -, contrariando a recomendação médica e colocando em risco a vida da menor.
A adolescente de 13 anos de idade deu entrada no hospital em virtude de grave estado de saúde provocado por anemia falciforme, exigindo com urgência uma transfusão de sangue para salvaguardar sua vida. No entanto, seus pais, por razão de convicção religiosa provenientes da religião “Testemunhas de Jeová”, assinaram declaração recusando o referido tratamento, o que resultou no óbito da menor impúbere.
O Ministério Público apresentou denúncia contra os pais da adolescente, imputando-lhes o crime de homicídio doloso. A denúncia foi recebida pelo juiz da 3ª vara Criminal de São Vicente, que proferiu sentença de pronúncia, determinando que os réus fossem submetidos a julgamento pelo Tribunal do Júri. Os réus, insatisfeitos, interpuseram recurso em sentido estrito, porém o TJ/SP negou provimento.
O processo arrastou-se por duas décadas, até que alcançou o STJ foi instado a se manifestar no HC 268.459/SP, onde os impetrantes buscaram a desconstituição da pronúncia. A 6ª turma do STJ, em 2/9/14, não conheceu do HC, no entanto expediu ordem de ofício para extinguir a ação penal.
A ministra relatora, Maria Thereza de Assis Moura, em seu voto, fundamentou que não houve fato típico que justificasse a demanda em face dos pais, uma vez que o art. 22 do CEM - Código de Ética Médica estabelecer que "em situação de risco iminente de morte, o consentimento do paciente e/ou dos familiares é prescindível, sobrelevando-se o valor-matriz vida". De acordo com essa previsão, O artigo seria é vedado ao médico “deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte”.
A relatora, portanto, destacou que embora houvesse a manifestação de vontade dos pais baseada em suas convicções religiosas, outros aspectos valorativos, como o dever jurídico do médico de preservar vidas, afastaram a tipicidade penal da conduta dos pais. Sustentou, também, que a falta de um consentimento por parte dos pais jamais ensejaria um óbice à transfusão de sangue, uma vez que os profissionais médicos poderiam ter realizado o procedimento.
3. Análise jurídica
3.1. Conflito entre direito à vida e liberdade de crença dos pais: O caso em análise apresenta uma colisão entre o direito à vida da criança e do adolescente e o direito à liberdade de consciência e de crença dos pais. Enquanto os pais têm o direito constitucional à liberdade religiosa, garantido pelo art. 5º da Constituição Federal, o direito à vida da criança e do adolescente é igualmente protegido pela legislação nacional e pelos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
3.2. Responsabilidade penal dos pais: A decisão da 6ª turma do STJ considerou que, no caso em tela, os pais não poderiam ser responsabilizados penalmente pela morte, uma vez que a equipe médica teria autonomia para realizar todos os procedimentos necessários para salvar a vida da adolescente, independente da existência de uma autorização.
3.3. Precedente estabelecido pelo STJ: A decisão da 6ª turma do STJ estabeleceu um importante precedente, reconhecendo que o médico pode realizar a transfusão de sangue em pacientes menores de idade sempre que houver iminente perigo de morte, independentemente da objeção dos pais com base em suas convicções religiosas. Essa medida visa assegurar a proteção da vida e da saúde da criança, resguardando seus direitos fundamentais.
3.4. Princípio da autonomia religiosa vs. direitos fundamentais da criança: Embora o direito à liberdade religiosa seja garantido constitucionalmente, esse direito encontra limites quando entra em conflito com os direitos fundamentais à vida e à saúde da criança. Em casos de emergência médica, a autonomia religiosa dos pais não pode prevalecer sobre o direito à vida e à saúde do menor, cabendo ao Estado intervir para garantir a proteção desses direitos.
3.5. Direitos do paciente menor de idade: Em situações de emergência médica, a prioridade deveria ser a garantia a preservação da vida e da saúde do paciente, mesmo que isso signifique tomar medidas que possam ir contra suas convicções religiosas ou as de sua família. O ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente assegura o direito à vida e à saúde de crianças e adolescentes, e estes direitos deveriam prevalecer em casos de conflito com crenças religiosas.
3.6. Dever da equipe médica: Especificamente no caso, o STJ entendeu que o erro residiu na falta de ação da equipe médica, e não na falta de uma autorização por parte dos pais. Neste caso, a análise sob o prisma apresentado revela uma perspectiva importante sobre a responsabilidade dos profissionais médicos e a interpretação do art. 22 do CEM. A fundamentação do STJ pontou que o art. 22 do CEM estabelece que, em situações de risco iminente de morte, o consentimento do paciente ou de seus representantes legais é prescindível. Isso implica que, diante de uma emergência médica que coloca a vida do paciente em perigo, os profissionais de saúde têm a obrigação legal e ética de agir para preservar a vida da adolescente, mesmo sem o consentimento dos pais. Assim, a falta de consentimento dos pais não deveria ser um obstáculo à realização da transfusão de sangue, especialmente se essa intervenção era vital para salvar a vida da paciente. Portanto, caso tenha havido uma falha, esta recairia sobre os médicos responsáveis pela internação, que não cumpriram seu dever de salvar a adolescente ao não realizar o procedimento necessário para preservar sua vida.
4. Conclusão
Diante da análise sob esse prisma, é possível concluir que a interpretação do art.22 do CEM pelo STJ ressalta a obrigação legal e ética dos profissionais médicos de preservar vidas em situações de risco iminente de morte. A fundamentação apresentada destaca que a falta de consentimento dos pais não pode ser um obstáculo à realização de procedimentos médicos essenciais para salvar a vida do paciente.
Portanto, se houve alguma falha no caso em questão, esta recairia sobre os médicos responsáveis pela internação, que não cumpriram seu dever de agir para preservar a vida da adolescente. A interpretação do art. 22 do CEM evidencia a prioridade do valor-matriz vida e ressalta a responsabilidade dos profissionais de saúde em agir de acordo com os princípios éticos e legais da medicina, colocando sempre o bem-estar e a vida do paciente como prioridade máxima.
1 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça - STJ. Habeas Corpus n. 268.459. Relator: Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Brasília-DF, 02 de setembro de 2014. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1293470&num_registro=201301061165&data=20141028&formato=PDF. Acesso em: 13 abr. 2024
2 MATTOS, Jadir de; STÜRMER, Kátia Rejane; COSTA, Joselaine da. Responsabilidade penal do médico nos casos de transfusão de sangue, em menor de idade, em iminente risco de vida, cujos pais são adeptos da seita Testemunhas de Jeová. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 6, n. 1/3, p. 131-152, 2005. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rdisan/article/view/80820/84467. Acesso em: 13 abr. 2024.
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Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).
Constituição Federal de 1988.
Código de Ética Médica.