Quanto mais me aventuro no universo de Pontes de Miranda, mais me certifico de que suas lições permanecem úteis, em que pese a passagem do tempo. Por decerto, pelo simples fato de não se render a um discurso voluntarista, subjetivista e tratar dos assuntos, ou melhor, dos conceitos, objetivamente, isso já sinalizava que por mais tempo seus ensinamentos perpetuariam-se.
Pontes é, em síntese, cientista social. Nessa definição está o jurista, o cientista político, o historiador, o sociólogo, o antropólogo, o filósofo, o literato e vários outros. O teor do que traz aos seus é, por consequência, fonte de enriquecedora cultura. Compartimenta as searas do conhecimento apenas para fins didáticos, mas sustenta todas as ciências oriundas de um mesmo ponto em comum.
A tônica do presente artigo é um tema por vezes falado e, verdadeiramente, com mais frequência nos últimos tempos da República brasileira. Os poderes da União (de que trata o art. 2º da Constituição Federal de 1988), Legislativo, Executivo e Judiciário (independentes e harmônicos entre si – na redação do artigo citado) coexistem não em separação de poderes do Estado, mas sim em distribuição de poderes do Estado. É sutil mas ao mesmo tempo profunda essa diferenciação, afinal, o poder do Estado é um só, recordando Montesquieu.
Logicamente, a independência e harmonia de que trata a CF/88 tem o seu próprio contexto. Pontes de Miranda, falecido em 1979, não poderia, ao escrever sobre o tema, referir-se a ela. Desta feita, como em outrora, o que procurará o presente artigo é fazer uma pesquisa histórica, a fim de trazer uma panorama constitucional.
Em um primeiro momento, um basilar será o ano de 1972, quando o autor dedicou um artigo em especial para tratar do tema independência e harmonia dos poderes.
No referido ano, estava o Brasil sob a égide da Constituição Federal de 1967, àquele tempo acrescida da emenda constitucional 1, de 1969. Considerando-se que a conjuntura político-administrativa era a mesma no seu intento de ciência política, na visão deste subscritor não se trata a referida emenda de nova Constituição, mas de um desdobramento do texto originalmente promulgado em janeiro de 1967.
Como em outras oportunidades, Pontes de Miranda nos brindava também com seu viés historiador, situando o leitor no tempo-espaço da República brasileira, cuja ordem institucional inaugurara-se com a Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil – na grafia original, em 1891.
Na temática específica de hoje, a tríade dos poderes veio antes, a bem da verdade. Assenta o jurisconsulto que partiu dos decretos 510, de 22/6/1890 (redação expressa "harmônicos e independentes entre si" no art. 15) e 914-A, de 23/10/1890 (que substituiu a publicação da Constituição feita pelo decreto anterior).
Na Constituição de 1967, lê-se no art. 6º a mesma "ratio legis" de outrora: "Art 6º - São Poderes da União, independentes e harmônicos, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário." Diante daquele contexto histórico, e a fim trazer uma análise coerente com os fatos históricos, é mister citar a emenda constitucional 1, de 1969.
Na redação da mencionada, lê-se: "(...) continuam inalterados os seguintes dispositivos: (...) artigo 6º e seu parágrafo único; (...)". Ocorre que, a partir do AI-5, de 13/12/68, é realmente difícil – para não escrever impossível – imaginar o Legislativo, o Congresso Nacional, harmônico com o Executivo, do qual partiram várias cassações por decreto presidencial (em que pese a cassação do ex-presidente Juscelino tenha ocorrido em junho de 1964). A lição - para todos - que fica é que nem sempre a redação de uma norma manifesta o mundo dos fatos.
Nesse contexto perene de republicanismo, Pontes em linhas gerais em 1972 escreve sobre o sustentáculo dessa ciência política: "(...) A organização republicana, em que jamais poderia figurar uma tal excrescência, tem, para resguardo e limites dos poderes, um sistema de freios e contrapesos, que se reduz ao seguinte: I- os excessos do governo federal são refreados pelos Estados; II- os da Câmara dos Deputados pelo Senado e reciprocamente; III- os do Poder Legislativo pelo veto do Executivo; IV- os deste pelo Legislativo, por meio do processo de responsabilidade (“impeachment”); V- os do Judiciário pelo Legislativo, que tem o poder de estabelecer regras para o procedimento dos tribunais e restringir-lhes a autoridade (respeitados os limites constitucionais); VI- os do Poder Legislativo ainda pelo Judiciário, que tem a faculdade de declarar inconstitucionais, e por isso inaplicáveis, as leis que forem contra à suprema lei da nação; VII- os do presidente da República pelo Senado, quanto à nomeação dos funcionários sujeita à sua aprovação; VIII- os dos deputados pelo povo, mediante eleições periódicas; IX- os dos senadores pela renovação trienal do terço deles; X- finalmente, os eleitores refreiam o povo por meio da escolha do presidente e vice-presidente."
A citação "retro", extraída do artigo de Pontes de Miranda "independência e harmonia dos poderes" advém, como o próprio autor menciona, da pena de João Barbalho, o "mais autorizado dos seus comentadores" nas palavras do jurisconsulto alagoano, referindo-se ao título "Constituição federal brazileira: commentarios" publicado em 1902, cujo teor na íntegra se encontra disponível na plataforma da biblioteca do STF (Os interessados em lê-la do original poderão encontrar a citação na página 49 do mencionado título).
Pontes de Miranda no mencionado artigo tece longas linhas acerca da chamada delegação de poderes. Em se tratando da Constituição Federal de 1891, afirma não haver texto expresso proibindo-a, mas traz a pena de João Barbalho (obra citada): "É pertinente também observar que a Constituição não permite a nenhum dos poderes o arbítrio de delegar a outro o exercício de qualquer das suas atribuições. (...)". No olhar deste subscritor, é um dos primórdios da norma no âmbito do direito público: O que não está proibido não está permitido. Só é permitido o que a lei/ato normativo o permite.
Na linha temporal, no que se refere às delegações de poder, a Constituição Federal de 1934, vedava-a expressamente (art. 3º, parágrafo 1º), a Constituição de 1937 permitia-a em várias ocasiões (citem-se os artigos 17; 22; 67 “c”; 101, “h”; 114; 138; 140, em redação original), a Constituição Federal de 1946 vedava-a expressamente (art. 36, parágrafo 2º), bem como a Constituição Federal de 1967 ( no anteriormente citado art. 6º, parágrafo único).
Já para o fim, nessa temática de distribuição de poderes, de autonomia e harmonia entre eles, que não se olvide: A democracia é um eterno fazer-se, nas palavras de Pontes de Miranda (no título Democracia, Liberdade, Igualdade: os três caminhos, publicado originalmente em 1945). Isso é, a serenidade plena social é por deveras uma utopia, a cidadania nos exige a cada dia, é exercício diário. Sustenta-se, pois, atenção ao termômetro republicano. Neologismo que se inaugura no presente artigo.
Para a atualidade, leiamo-lo: "Os poderes são, teoricamente, independentes e harmônicos. Não há, em princípio, predominância de qualquer deles. O exercício de cada um dos três é que pode fazer um deles preponderar, ou porque tal exercício seja demasiado, de modo que um dos poderes passe a superar os outros, ou porque os outros não dão ao exercício a intensidade que seria normal", na lição trazida em 1972.
Mais além, segue: "Temos de distinguir o mundo jurídico e o mundo fático. No mundo jurídico, todos os poderes públicos são independentes e harmônicos: não se pode pensar em supremacia. No mundo fático, sim: ou porque um se eleve, por baixarem os outros, ou porque todos se elevem e um se eleve mais do que os outros pode haver supremacia".
Nessa linha, mais uma vez: "No mundo jurídico, os três poderes têm a mesma altura: no mundo fático, é mais alto o que mais merece, ou o que se conservou onde devia estar. Há, ainda, a terceira hipótese: a da deturpação da democracia em oligocracia, sem preponderância, propriamente, de qualquer Poder, comprometendo-se a evolução histórica do país." Ao depararmo-nos com os trechos acima, enquanto cidadãos, reflitamos para onde hoje a República caminha, diante da constatação de fatos, afastando-nos de subjetivismos.
A preocupação deste subscritor é, tão somente, com o desgaste causado pelo às vezes nem tão sutil atrito entre os três poderes e com ele, o achatamento ao qual é submetida a República. É, dessa forma, uma preocupação institucional, despersonificada. Sustenta-se, é isso que cidadania brasileira deve fomentar. O desgaste é latente, perdemos todos enquanto civilização em marcha progressiva.
Lembremo-nos nesse contexto de meditações do que falava Pontes de Miranda ao tratar do "quantum" despótico, cuja carga que traz a política, dentre os demais processos sociais de adaptação social, é alta (7, em um universo que vai até 7).
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"Independência e harmonia dos poderes", Revista de Direito Público, volume 5, número 20, ano 1972.