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A essência das contas públicas e sua fiscalização

Lei de Responsabilidade Fiscal exige tempestividade das contas públicas. Programa Nacional da Transparência visa melhorar acesso e gestão da informação pública. Radar concentra dados para identificar cumprimento legal.

5/4/2024

A gestão fiscal transparente das contas públicas tem sido construída a partir da evolução das Leis de Responsabilidade Fiscal e de Acesso à Informação. O escrutínio e eficácia dos recursos públicos depende da forma como as contas públicas são disponibilizadas e percebidas pela sociedade. Nesse sentido, o Programa Nacional da Transparência Pública deu publicidade para os níveis de transparência do país.

As contas públicas correspondem ao registro detalhado e ao gerenciamento das receitas e despesas do setor público, conforme preceitua a sexagenária Lei de Finanças Públicas lei n° 4.320/64, considerada o marco da Contabilidade Pública no país:

Art. 6º Todas as receitas e despesas constarão da Lei de Orçamento pelos seus totais, vedadas quaisquer deduções (BRASIL, 1964).

Nesse sentido, o conceito de conta pública abrange toda e qualquer transação orçamentária, financeira ou patrimonial realizada por uma entidade governamental, com o propósito de arrecadar recursos ou realizar gastos. A responsabilidade nas finanças públicas e o cumprimento das metas e prioridades orçamentárias dependem diretamente da transparência e tempestividade dessas informações (CONTI; MOUTINHO; NASCIMENTO, 2023). A esse respeito, a Lei de Acesso à Informação (lei n° 12.527/11) estabeleceu a obrigatoriedade de divulgação de dados e informações relacionadas às contas públicas, por toda e qualquer entidade que arrecade e/ou destine recursos públicos, de modo a garantir a fiscalização, a responsabilização dos seus gestores e alguma futura “tomada de contas especial”: 

Art. 2º Aplicam-se as disposições desta lei, no que couber, às entidades privadas sem fins lucrativos que recebam, para realização de ações de interesse público, recursos públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão, termo de parceria, convênios, acordo, ajustes ou outros instrumentos congêneres.

Parágrafo único. A publicidade a que estão submetidas as entidades citadas no caput refere-se à parcela dos recursos públicos recebidos e à sua destinação, sem prejuízo das prestações de contas a que estejam legalmente obrigadas.

Sobre o tema, de acordo com os art. 8° e 9° da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, havendo prática de qualquer ato ilegal, ilegítimo ou antieconômico de que resulte dano ao erário, desfalque ou desvio de dinheiros, bens ou valores públicos ou, tão somente, omissão no dever de prestar contas ou não comprovação da aplicação regular dos recursos repassados pela União, a autoridade administrativa competente, sob pena de responsabilidade solidária, deverá adotar providências com vistas à instauração da “tomada de contas especial” para apuração dos fatos, identificação dos responsáveis e quantificação do dano.

Para tanto, integrarão o processo de tomada de contas, inclusive a especial, além de outros elementos estabelecidos, os relatórios de gestão, do tomador de contas, quando couber, e o parecer do dirigente do órgão de controle interno com o certificado de auditoria, que consignará qualquer irregularidade ou ilegalidade constatada, determinadas as medidas adotadas para correção imediata das falhas. Além desses, o respectivo Ministro de Estado supervisor da área ou da autoridade de nível hierárquico equivalente também deverá se pronunciar, de forma expressa e indelegável, e atestar o conhecimento sobre a conclusão das contas e do parecer do controle interno.

Ademais, considerando o que prevê a Instrução Normativa n° 71/12 do TCU, a instauração da “tomada de contas especial” pressupõe a existência de elementos fáticos e jurídicos que indiquem a omissão no dever de prestar contas e/ou o dano ou indício de dano ao erário, sendo necessário indicar:

I) os agentes públicos omissos e/ou os supostos responsáveis (pessoas físicas e jurídicas) pelos atos que teriam dado causa ao dano ou indício de dano identificado;

II) a situação que teria dado origem ao dano ou indício de dano a ser apurado, lastreada em documentos, narrativas e outros elementos probatórios que deem suporte à sua ocorrência;

III) exame da adequação das informações contidas em pareceres de agentes públicos, quanto à identificação e quantificação do dano ou indício de dano;

IV) evidenciação da relação entre a situação que teria dado origem ao dano ou indício de dano a ser apurado e a conduta da pessoa física ou jurídica supostamente responsável pelo dever de ressarcir os cofres públicos.

Dessa forma, ainda que não configure a ocorrência de dano, mas a ocorrência de grave irregularidade ou ilegalidade nas contas, compete à autoridade administrativa ou órgão de controle interno representar os fatos ao respectivo Tribunal de Contas.

No âmbito federal, nos termos do art. 4º da Instrução Normativa n° 71/12 do TCU, quando esgotadas as medidas administrativas e persistindo os pressupostos, deverá providenciar a instauração em até cento e oitenta dias, a contar, de acordo com o seu parágrafo 1°:

I) nos casos de omissão no dever de prestar contas, do primeiro dia subsequente ao vencimento do prazo para apresentação da prestação de contas;

II) nos casos em que os elementos constantes das contas apresentadas não permitirem a conclusão de que a aplicação dos recursos observou as normas pertinentes e/ou atingiu os fins colimados, da data-limite para análise da prestação de contas;

III) nos demais casos, da data do evento ilegítimo ou antieconômico, quando conhecida, ou da data da ciência do fato pela administração.

Por outro lado, a compreensão das características e de como devem ser configuradas as contas públicas garante a qualidade e a utilidade da informação orçamentária, financeira e contábil. Com essa finalidade, considerando a necessidade de consolidação das contas nacionais e de proporcionar maior transparência e uniformização da classificação das receitas e despesas orçamentárias, o MCASP definiu o Plano de Contas Aplicado ao Setor Público a partir da edição das International Public Sector Accounting Standards IPSAS pelo International Public Sector Accounting Standards Board IPSASB e das Normas Brasileiras de Contabilidade Técnicas Aplicadas ao Setor Público NBC TSP pelo Conselho Federal de Contabilidade (CFC. São objetivos do PCASP, portanto:

a. Padronizar os registros contábeis das entidades do setor público;

b. Distinguir os registros de natureza patrimonial, orçamentária e de controle;

c.  Atender à administração direta e à administração indireta das três esferas de governo, inclusive quanto às peculiaridades das empresas estatais dependentes e dos Regimes Próprios de Previdência Social RPPS;

d. Permitir o detalhamento das contas contábeis, a partir do nível mínimo estabelecido pela STN, de modo que possa ser adequado às peculiaridades de cada ente;

e. Permitir a consolidação nacional das contas públicas;

f. Permitir a elaboração das Demonstrações Contábeis Aplicadas ao Setor Público DCASP e dos demonstrativos do Relatório Resumido de Execução Orçamentária RREO e do Relatório de Gestão Fiscal RGF;

g. Permitir a adequada prestação de contas, o levantamento das estatísticas de finanças públicas, a elaboração de relatórios nos padrões adotados por organismos internacionais – a exemplo do Government Finance Statistics Manual GFSM do Fundo Monetário Internacional

h. FMI, bem como o levantamento de outros relatórios úteis à gestão;

i. Contribuir para a adequada tomada de decisão e para a racionalização de custos no setor público; e

j. Contribuir para a transparência da gestão fiscal e para o controle social BRASIL, MCASP, 2023

Dentro desse contexto, o PCASP está organizado a partir de três classificações possíveis de contas públicas: i. as orçamentárias (focadas no planejamento e execução do orçamento público); ii. as patrimoniais (apresentam aspectos financeiros e não financeiros do patrimônio público); e iii. as de controle (registram, processam e evidenciam atos de gestão cujos efeitos possam impactar o patrimônio da entidade). Logo, o conceito de conta envolve “aspectos qualitativos e quantitativos de fatos de mesma natureza, evidenciando a composição, variação e estado do patrimônio, bem como de bens, direitos e obrigações” MCASP, 2023, p. 481, devendo ser agrupadas de acordo com as seguintes funções:

a. Identificar, classificar e efetuar a escrituração contábil, pelo método das partidas dobradas, dos atos e fatos de gestão, de maneira uniforme e sistematizada;

b. Determinar os custos das operações do governo;

c. Acompanhar e controlar a aprovação e a execução do planejamento e do orçamento, evidenciando a receita prevista, lançada, realizada e a realizar, bem como a despesa autorizada, empenhada, realizada, liquidada, paga e as dotações disponíveis;

d. Elaborar os Balanços Orçamentário, Financeiro e Patrimonial, a Demonstração das Variações Patrimoniais, de Fluxo de Caixa, das Mutações do Patrimônio Líquido e do Resultado Econômico;

e. Conhecer a composição e situação do patrimônio analisado, por meio da evidenciação de todos os ativos e passivos;

f. Analisar e interpretar os resultados econômicos e financeiros;

g. Individualizar os devedores e credores, com a especificação necessária ao controle contábil do direito ou obrigação; e

h. Controlar contabilmente os atos potenciais oriundos de contratos, convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres.

Ainda, de acordo com o MCASP, a informação para ser útil precisa ser relevante, representar fidedignamente a sua natureza, ser compreensível, tempestiva, comparável e verificável, em atendimento ao que já está pacificado na Constituição Federal de 1988:

Art. 163-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disponibilizarão suas informações e dados contábeis, orçamentários e fiscais, conforme periodicidade, formato e sistema estabelecidos pelo órgão central de contabilidade da União, de forma a garantir a rastreabilidade, a comparabilidade e a publicidade dos dados coletados, os quais deverão ser divulgados em meio eletrônico de amplo acesso público.

Em específico, sobre as características, o manual esclarece que, para uma informação ser relevante, ela deve ser pertinente e significativa para os seus usuários. Isso implica que os dados fornecidos devem ter caráter confirmatório e preditivo, visando auxiliar na tomada de decisões. Essa característica se relaciona de modo direto com a compreensibilidade, ou seja, quando a informação é apresentada de forma clara, sucinta e acessível, objetivando a compreensão de todos e sem necessidade de conhecimento prévio por quem irá usufruir desses dados.

Dois outros aspectos primordiais são a representação fidedigna e a verificabilidade. Assim sendo, para uma informação ser incluída nas contas públicas, ela deve ser representada de modo adequado e refletir “de forma completa, neutra e livre de erro material” a realidade do ente público, além de ser verificável por meio de auditorias independentes. Ambas as características têm como finalidade assegurar a confiabilidade e credibilidade da informação, sem viés ou distorções.

A divulgação em tempo hábil também é uma propriedade qualitativa das contas públicas apresentada pelo MCASP. Quanto a isso, o manual expressa que a informação deve ser apresentada o mais rápido possível, visando a maior utilidade pelo usuário.
Basta a omissão no dever de prestar contas, como visto, para ensejar a “tomada de contas especial”. Assim, ser tempestivo significa tornar a informação disponível antes que ela perca a sua capacidade de ser útil. O quanto antes estiver acessível, mais rapidamente será capaz de aprimorar processos de conformidade com os orçamentos públicos, de responsabilização accountability dos seus gestores e de avaliação das prestações de contas, mediante, inclusive, comparação das semelhanças e diferenças. Cada informação precisa ser comparável a outras, de modo a permitir a análise de tendências, variações e desempenho. Em resumo, os atributos das contas públicas fomentam a capacidade de arrecadar, gerir, informar e influenciar processos decisórios que executam recursos públicos.

Frente ao exposto, resta claro o motivo pelo qual a Lei de Responsabilidade Fiscal enfatizou, no 1°, inciso II, do art. 48, sobre a necessidade de tempestividade das contas públicas “em tempo real”. A informação para ser útil para uma tomada de decisão e possibilitar o monitoramento contínuo e eficaz dos recursos públicos precisa possuir características definidoras e esclarecedoras.

Nesse intuito, o recente Programa Nacional da Transparência Pública, instituído 2022, é voltado à avaliação coordenada dos níveis de transparência ativa dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, dos próprios Tribunais de Contas, do Ministério Público e das Defensorias Públicas das esferas federal, estadual e municipal de governo. Conforme estabelece a Resolução n° 01/23 da Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil Atricon, que aprovou as diretrizes de controle externo relacionadas à temática “Transparência dos Tribunais de Contas e dos jurisdicionados”, são objetivos "e ganhos" advindos da implementação do PNTP:

19. Estabelecer requisitos mínimos a serem observados pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública e pelos TCs, bem como pelas entidades que compõem a administração indireta, em todas as suas esferas governamentais, para o cumprimento do princípio da transparência pública, por meio da elaboração e alimentação dos respectivos sítios ou portais de transparência em meio eletrônico e adoção de outras medidas que concorram para o seu pleno alcance.

20. Disponibilizar referencial para que os TCs, de modo uniforme, aprimorem seus regulamentos, procedimentos e critérios de avaliação relativos à transparência da gestão pública, contemplando tanto aspectos da gestão fiscal quanto aqueles relativos ao acesso às informações de interesse público geradas ou custodiadas pelos seus jurisdicionados e pelas próprias Cortes de Contas.

21. Incrementar os processos de transparência e de acesso às informações públicas, por meio da melhoria da qualidade das informações disponibilizadas e do estímulo à interoperabilidade de dados e sistemas governamentais.

22. Estimular a participação social na prática de uso, de reuso e de agregação de valor aos dados governamentais, a produção de conhecimento em proveito da sociedade e do poder público, o conhecimento e o acesso às informações de controle externo.

23. Melhorar a gestão e a governança da informação e, sobretudo, enfatizar os princípios da transparência, da accountability e do desempenho no âmbito das próprias Cortes de Contas.

Como resultado, o Radar da Transparência Pública concentra todas as informações coletadas em 2022 e 2023 de todos os entes da federação avaliados e permite filtrar e cruzar dados, identificando quem cumpriu ou não as determinações legais e constitucionais.

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BRASIL. TESOURO NACIONAL. Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público – 10. ed. 2023. Disponível em Tesouro Transparente: https://www.tesouro transparente.gov.br/publicacoes/manual-de-contabilidade-aplicada-ao-setor-publico-mcasp/2024/26. Acesso em: 03 abr. 2024.

CONTI, José Maurício; MOUTINHO, Donato Volkers; NASCIMENTO, Leandro Maciel do. Orçamento público no Brasil. 1ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2023.

TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Instrução Normativa n° 71/2012. Dispõe sobre a instauração, a organização e o encaminhamento ao Tribunal de Contas da União dos processos de tomada de contas especial. Brasília, DF. 28 nov. 2012.

Karine Tomaz Veiga
Doutoranda em Direito Financeiro (USP) e Auditora de Controle Externo (TCE-RJ). Atualmente cedida ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro para assessoramento na área de Tutela Coletiva.

João Cardoso Batista
Graduando em Economia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador na área de Finanças Públicas.

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