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60 anos do golpe: O habeas corpus nos tempos da ditadura militar

Habeas corpus garante liberdade e devido processo legal. Durante a ditadura militar no Brasil, suprimido pelo AI-5, violando direitos democráticos.

27/3/2024

Para que se possa entender a importância do habeas corpus como instituto de garantia da liberdade e do devido processo legal1, vale relembrar a frase do saudoso José Joaquim Calmon de Passos2, ao dizer que “a liberdade só é pensável pensando-se a não liberdade”.

Durante a vigência do golpe militar de 1964, em que pese a previsão do habeas corpus no art. 150, § 20 da Constituição da República de 1967, a imposição do (AI-5) em 13/12/683 marcou a fase mais repressiva do regime militar brasileiro. No período, o uso do habeas corpus foi violentamente suprimido do direito brasileiro para casos enquadrados como “crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e no caso de crimes contra a economia popular” (art. 10, AI-5). 

Na verdade, a supressão dessa ação autônoma de impugnação em matéria penal se mostrou muito bem pensada pela ditadura militar. Inspirada na doutrina de segurança nacional que buscava identificar toda a oposição ao regime como inimiga interna (contrarrevolucionária) tirar o habeas corpus do cenário jurídico significou, sem meias palavras, violar os direitos mais fundamentais de uma democracia e de seus cidadãos.

Sem direito ao pedido de habeas corpus, sem comunicação oficial da prisão e sem prazo para conclusão do inquérito por parte dos órgãos da repressão, a pessoa presa ilegalmente, muitas das vezes sem qualquer indiciamento ou qualquer acusação formal ficava indefesa e incomunicável (inclusive com seu advogado) até que fosse feita a remessa dos autos à justiça militar que, desde o AI-2, de 27/10/65, obteve enorme alcance sobre atividades civis, visto que se tornou competente para processar e julgar crimes supostamente praticados contra a segurança nacional esvaziando, por exemplo, a competência do STF na defesa das garantias fundamentais.

Quando a ordem de liberdade era concedida (em sessões normalmente secretas na justiça militar), havia, ainda, a possibilidade da decisão não ser cumprida pelas autoridades militares e, quando a ordem não era concedida, era sob a falsa alegação de a pessoa não se encontrar presa. Na prática, a pessoa sequestrada pelos órgãos de repressão poderia acabar por ter seu “paradeiro desconhecido” [ver caso Gomes Lund e outros ("Guerrilha do Araguaia") vs. Brasil e caso Rubens Paiva, morto no DOI do 1º Exército no Rio de Janeiro em 1971, apenas para citar dois de tantos outros].

Assim colocadas as coisas, o AI-5 deu poder ao presidente da República para: legislar como se poder Legislativo fosse; cassar mandatos parlamentares; suspender direitos políticos, cassar e afastar servidores públicos; fechar o Congresso Nacional; proibir manifestações e atos políticos contrários ao regime4 etc. Tudo sem qualquer possibilidade de revisão pelo poder Judiciário, enfraquecendo-o demasiada e propositadamente. Aqui é bom notar, no art. 11 do AI-5 constava: “São insuscetíveis de apreciação pelo Judiciário os atos decorrentes deste ato”.

A repressão e a intervenção autoritária nas garantias individuais romperam absolutamente com o diálogo das fontes da teoria do direito, já que todos os Atos Institucionais impostos no período da ditadura militar brasileira tinham força normativa superior à Constituição Federal vigente, fato que por si só denuncia a síncope que o período ditatorial produziu no sistema jurídico do país.

O que se pode extrair é que a retórica jurídica da ditadura fingia para os olhos do direito internacional a existência de um Estado de direito no ambiente de governos de fato, visto que imperava um sistema normativo paralelo de caráter secreto e clandestino de tortura e desparecimento forçado de pessoas para a manutenção do poder. Isto é, apesar de teoricamente o habeas corpus ter sido relativamente mantido em vigor para crimes não políticos, significou que o instituto perdia praticamente toda a sua efetividade prática justamente para os casos graves de violações de direitos humanos com a tortura e execução sumária de pessoas mantidas em centros clandestinos pelas organizações repressivas do Estado brasileiro.

Segundo levantamento da organização internacional Human Right Watch, pelo menos 20 mil pessoas foram torturadas e 434 foram mortas ou desapareceram durante a vigência do regime militar (1964-1985)5

Afora esse capítulo dos mais tristes da história do Brasil, deve-se destacar que em sua essência, o habeas corpus é instrumento de dignidade humana, de salvaguarda das liberdades individuais e do controle do devido processo legal6.

O habeas corpus é uma ação dotada de dignidade constitucional, sendo um verdadeiro remédio heroico contra ilegalidades e abusos. Guarda, portanto, estreita relação com a democracia.

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1. Com mais profundidade, em nosso livro: OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. Ações autônomas de impugnação em matéria penal. 3ª ed. Rio de Janeiro. Lumen juris, 2023, Capítulo I.

2. CALMON DE PASSOS, J. J. Tutela constitucional da liberdade. In: CRUZ, Alexandre (org.). Ações constitucionais: mandado de segurança, habeas data, mandado de injunção, habeas corpus e outros instrumentos de garantia. Campinas, São Paulo. Millennium Editora, 2007, p. 4.

3. O AI-5 vigorou até dezembro de 1978.

4. Neste passo ver: SANTOS JR., Belisário. A advocacia nos anos de chumbo. In: GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira (orgs.). Crimes da ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de direitos humanos: Argentina, Brasil, Chile, Uruguai. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 244 e ss.

5. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/news/2014/12/10/265291

6. Com mais profundidade: OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. Ações autônomasde impugnação em matéria penal, ob. cit. , p. 24-27.

Diego Renoldi Quaresma de Oliveira
Advogado criminal, professor, palestrante e autor de livros e artigos sobre Direito Penal, Direito Processual Penal e liberdade de expressão.

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