Migalhas de Peso

A perturbadora modulação tardia do tema 69 da repercussão geral e o impacto nas coisas julgadas

A modulação, mecanismo para preservar a segurança jurídica, exige amplo debate entre os julgadores e análise de riscos, com preferência na ordem de julgamentos.

20/3/2024

A modulação, hoje amplamente utilizada pelas Cortes de Precedentes não apenas em matéria constitucional, foi positivada no CPC como mecanismo para preservar a segurança jurídica, evitando-se mudanças jurisprudenciais que podem comprometer a uniformidade e higidez das decisões judiciais. A modulação é instrumento poderoso e que, portanto, a sua utilização depende de um amplo debate entre os julgadores e de uma necessária e completa análise de riscos e desdobramentos (inclusive, sob a ótica de gerenciamento de processos). Como etapa do julgamento de mérito, a necessidade ou não de restringir os efeitos de uma decisão judicial, especialmente no que se referem aos precedentes vinculantes, deve ser pautada imediatamente, ainda que se admita embargos de declaração sobre esta matéria, quando, preenchidos os requisitos autorizadores e a Corte tenha se omitido a respeito. Em regra, a modulação deve exigir preferência na ordem de julgamentos, pois ela pode impactar o jurisdicionado de forma abrupta e até injusta, inclusive, com aqueles que tiveram, em seus processos individuais, o direito reconhecido com formação de coisa julgada e que também o tiveram na definição da tese vinculante. Pode parecer mirabolante esse risco. Mas não. 

Exemplo dessa perturbadora realidade é o caso do tema 69 da Repercussão Geral em que o STF decidiu em julgamento de mérito que “O ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins”. A tese foi assentada em 2.10.17, e apelidada de “Tese do Século” pelo seu impacto financeiro e orçamentário. Mas, na ocasião do julgamento de mérito, a Corte Suprema se omitiu sobre a necessidade de modulação dos efeitos, o que só veio a ocorrer, lamentavelmente, anos depois, em julgamento de embargos de declaração, com acórdão publicado em 12.8.21. Para piorar, a forma adotada na modulação foi no sentido de que a tese vinculante (definida em 2017), produzisse efeitos somente a partir de 15.03.2017, ressalvadas as ações judiciais e os procedimentos administrativos protocolados antes dessa data. A modulação assim redigida pôde diminuir o impacto econômico para a União, limitando-se temporalmente a condenação. 

Mas a verdade é que agora colhem-se os desastres jurídicos, decorrente de uma fixação tardia de modulação e de ausência, quando elaborada, de uma análise de desdobramentos processuais. Como noticiado no Portal Migalhas, em 11.3.24, chegou novamente ao Supremo, uma questão que, a própria Corte acabou gestando. Trata-se de uma ação rescisória movida pela União em decorrência de uma ação que teve o pedido julgado procedente para exclusão de ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins, tal qual inclusive foi definido pelo tema 69 da Repercussão Geral. (RE 1.468.946/RS) Qual seria então o problema? O simples fato desta ação ter sido ajuizada após a data de 15.3.17 (marco temporal da modulação feita pelo Supremo) e ter transitado em julgado também antes do julgamento dos embargos de declaração no processo paradigma que acabou resultando na modulação.

 No caso concreto, o trânsito em julgado havia ocorrido em 25/2/21, antes, portanto, da definição da modulação no caso paradigma. O CPC permite o ajuizamento da ação rescisória para desconstituir condenação imposta com base em lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo, quando a decisão for posterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda (art. 525 § 15º). No próprio Supremo já há questão afetada para julgamento – ainda sem data – sobre o prazo para o ajuizamento desta rescisória, que, na forma que redigido pelo CPC, seria contado somente a partir do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo. Alguns ministros já se manifestaram em sessões presenciais ser inviável a interpretação literal do dispositivo que geraria nítida insegurança jurídica a ponto de permitir a quebra da coisa julgada muito tempo depois, na prática, dos dois anos de decadência. 

Voltando ao caso, aproveitando-se da decisão que modulou os efeitos do Tema 69 da Repercussão Geral, a União vem intentando, por meio de rescisórias, a quebra da coisa julgada formada em processos judiciais iniciados após a data de corte e que tiveram o seu término definitivo antes do julgamento da modulação. O retardo de anos para decidir a modulação – que deveria ter sido feito ainda quando do julgamento de mérito, como etapa do próprio julgamento - contribuiu para esse tipo de litigio, e, agora, em virtude de o caso ter chegado por Recurso Extraordinário, no Supremo, a Corte terá que retornar a discutir a aplicabilidade dos efeitos da modulação e a quebra da coisa julgada.

Em decisão monocrática, o ministro relator, Luiz Fux, deu provimento ao recurso do contribuinte para não conhecer a ação rescisória ajuizada pela União, utilizando-se de um velho argumento, sedimentado na Corte, do Tema 136 da Repercussão Geral de que “não cabe ação rescisória quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente”.

A tese utilizada na fundamentação tem um objetivo nobre, no resguardo da coisa julgada formada para o contribuinte, mas que, de fato, não resolve, de vez a problemática.  Pelo fundamento, não caberia rescisória quando o julgado “estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo, à época da formalização do acórdão rescindendo”. Pois bem. De fato, no caso concreto, o entendimento, de mérito no Supremo já era o de exclusão do ICMS do PIS/Cofins. Porém, com os embargos de declaração o julgamento foi completado com a modulação. Portanto, a modulação é parte integrante do julgamento e não pode ser tratada como se fosse outro precedente. Com o acolhimento dos embargos de declaração houve a integração do acórdão de 2017, reconhecendo a Corte uma omissão, justamente no fato de não ter modulado a questão. Resultado: há um único precedente com o seu capítulo de mérito julgado, integrado com o capítulo da modulação. O problema: o transcurso de aproximadamente quatro anos para essa integração. 

Na verdade, ao modular, a Corte não alterou o seu posicionamento sobre a impossibilidade de inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins. O que fez foi apenas restringir a sua eficácia, o que é função do instituto da modulação. Função esta, repisa-se, que apenas encontra guarida como necessidade de preservação da segurança jurídica. Na questão do ICMS do PIS/Cofins controvérsia existe ainda acerca da necessidade dessa modulação tendo em vista posicionamentos da Corte indicativos já da tese que se sagrou vencedora. Porém, diante da modulação tal qual feita apenas em 2021, a pergunta que fica é: o que a modulação, na prática, efetivamente preservou?!

O que se vê hoje, com rescisórias pretendendo a quebra da coisa julgada justamente para restringir o direito do contribuinte de acordo com a modulação feita em 2021, é a comprovação de que a segurança jurídica não restou preservada. Ao contrário, a modulação tal qual feita desdobrou em outra insegurança que podia (e ainda pode) ser evitada.

No âmbito do cabimento da ação rescisória é possível entender, diante do que dispõe hoje os art. 525 § 15º e 535 § 8º, ambos do CPC, que já trazem, pela própria existência enquanto norma, uma grande insegurança jurídica, hipótese de rescindibilidade por evento posterior. O vicio de inconstitucionalidade do dispositivo legal, prende-se mais ao alargamento na prática, do prazo decadencial, pois a flexibilização dos efeitos da coisa julgada já é excepcionada pelo ordenamento jurídico em algumas situações e decorre de uma escolha legislativa. No caso, pretendeu o legislador conferir um tratamento uniforme tendo em vista a criação de um precedente, ainda que posterior ao caso julgado. Interessante a preocupação pois sempre se entendeu que a coisa julgada não tem compromisso com a justiça, mas sim em por termo ao litigio. Porém, ao capitular como hipótese de rescindibilidade o surgimento de um precedente posterior, se retorna a um ideário de justiça ainda que travestido de garantir a uniformidade das decisões (como sendo possível reescrever o passado) A uniformidade deve ser buscada e inegavelmente hoje advém de comando expresso no CPC (art. 926); porém será que seria necessário possibilitar a reversão daquele caso definitivamente julgado? Será que a insegurança jurídica não proveria justamente da justificativa que, acaba por permitir uma rescisória, nestes termos?! 

Este cenário pode ainda ser melhorado justamente quando do julgamento dos precedentes vinculantes pelas Cortes de Precedentes (STJ e STF), de modo a já esclarecer o ponto sobre as coisas julgadas formadas até então no ato em que decidir a maneira da modulação.  Na situação concreta, por exemplo, o melhor cenário – e que não foi feito - seria a Corte, quando modulou, ter resolvido, de imediato, a questão da quebra da coisa julgada, impedindo a rescisória em razão da modulação. E evidentemente fazer a modulação logo após a definição do seu mérito. Se tivesse, em 2017, fixada a modulação a partir do dia 15.3.17, ressalvando as ações em trâmite e as coisas julgadas produzidas com o mesmo entendimento não estaríamos rediscutindo o alcance do precedente. 

Na verdade, a Corte ainda pode chegar a esse raciocínio, através da sua própria modulação. Seria um fundamento pela garantia constitucional de preservação da coisa julgada. Como a Corte não decidiu a esse respeito, ainda poderia ser encontrada a forma de compatibilizar a tese do julgamento, o retardo inegável da sua modulação (que não pode ser desconsiderado, pois passaram-se aproximadamente quatro anos para decidir pela modulação) e a segurança jurídica, esta última não só esperada quando se define uma tese vinculante (e para isso a sistemática dos precedentes vinculantes), mas também do convívio do precedente criado com as coisas julgadas já formadas, que, por sua vez, também representam a segurança jurídica.  O raciocínio lógico aplicado no texto da modulação feito pelo STF também configura como apto para a preservação da coisa julgada. Vejamos. Na modulação feita, ressalvaram-se expressamente do corte temporal, as ações em trâmite, justamente para gerar uma segurança jurídica naqueles pedidos que foram feitos no decorrer do julgamento. Com muito mais razão, deve ser resguardada a segurança jurídica para quem teve, no interregno entre o julgamento de mérito e o acolhimento dos embargos de declaração com o objetivo de modulação, uma coisa julgada favorável. Até mesmo porque a tese vencedora está em alinho com a decisão transitada em julgada favorável ao contribuinte. 

Não se pode conceber, impor ao contribuinte que, ao ajuizar sua ação na pendência de embargos de declaração pela União no processo paradigma, assumiu o risco da modulação, simplesmente porque esse risco não tem parâmetros de ser calculado. Ora, sequer se sabia se tais embargos seriam admitidos para essa discussão, até porque, como dito, a modulação é etapa do julgamento de mérito, se ela não ocorre é possível que o jurisdicionado confie que o entendimento da Corte era não modular. A gravidade do caso ainda aumenta se considerado o grande lapso de tempo que a Corte levou para se manifestar sobre esses embargos (sem que isso representasse certeza do acolhimento de um requerimento de modulação). Como se não bastasse, é notoriamente impossível se prever a forma que a Corte haveria por modular, já que não se tem um parâmetro objetivo e muito menos expresso em lei. A própria Corte em outros casos envolvendo relação tributária, modulou de formas diferentes, até com efeitos puramente prospectivos. 

Dar procedência a esse intento Fazendário é simplesmente dizer ao contribuinte para não confiar nos precedentes emanados pela Corte Suprema. E tudo, em virtude de uma modulação que não ocorreu no tempo próprio, e que não pode, por isso, prejudicar aquele que tem razão (na mesma linha do decidido no mérito, pelo STF).

Talvez esse caso, até pela grande repercussão que impõe, seja um alerta de como fazer a modulação em outros casos, atentando-se para a segurança jurídica que também advém da coisa julgada. A modulação é solução para insegurança e não pode ser a causadora de pesadelos para quem obteve, na confiança do mesmo entendimento da Corte, uma coisa julgada. Se for assim, para quê a coisa julgada?

Scilio Faver
Advogado e sócio do escritório Vieira de Castro, Mansur & Faver Advogados. Pós-graduação em Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes e em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas.

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