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Para regular a IA, TSE revoga o Marco Civil por resolução

A resolução do TSE revoga partes do Marco Civil da Internet, buscando regular o uso da IA nas eleições, enquanto o STF debate mudanças legislativas relacionadas à regulação das plataformas digitais.

16/3/2024

Com o propósito de regular o uso da IA no processo eleitoral, agora em 27/2/24, por meio da resolução 23.732, o TSE acabou por revogar vários artigos e a espinha dorsal do Marco Civil da Internet, que é uma das leis de maior relevância no ambiente digital brasileiro, elaborado a partir de ampla discussão da sociedade e visto internacionalmente como um ícone mundial da regulação de aplicações na internet.

O Marco Civil foi aprovado em 2014, após ampla discussão no Congresso, com o intuito de assegurar a todos os cidadãos o direito de se manifestarem livremente na internet, com responsabilidade é claro, pois somos responsáveis por toda a nossa manifestação de pensamento. Esta lei regulamentou as aplicações de internet (incluindo as plataformas de redes sociais) que ficaram sujeitas a moderarem os conteúdos circulados em suas redes, com base em seus termos de uso, e serem obrigadas a retirar conteúdo ilegal mediante ordem judicial (excetuados os casos de violação à intimidade, que operam por simples notificação).

Todavia, o STF vem há algum tempo buscando modificar as amarras legislativas aplicadas pelo Marco Civil, por exemplo, em 2023 o STF emitiu várias opiniões públicas em relação ao processo de aprovação do chamado "PL das Fake News", que é um projeto de lei, ainda em trâmite no Congresso, para regulamentar as plataformas de serviços digitais.

Também está pendente no STF o julgamento da possível inconstitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet, cuja declaração de inconstitucionalidade implicaria na responsabilidade dos provedores de aplicação pela análise da legalidade ou não dos conteúdos disseminados na internet. Assim, a consequência imediata, caso se decida pela inconstitucionalidade será ocasionar um maior rigor das plataformas na moderação dos conteúdos para evitar futuras indenizações, ou seja, com receio de serem responsabilizadas, as plataformas provavelmente tornarão a sua moderação mais rigorosa, colocando em risco o direito à liberdade de expressão de todos os cidadãos.

Nenhuma dessas duas medidas alcançou êxito até o momento para redefinir os novos limites para o papel das plataformas, o que entendemos acertado, pois caberia ao legislativo realizar essa discussão para aprimorar o "PL das Fake News", não dispondo o Judiciário dos mecanismos de ajustes da regulação aos múltiplos interesses sociais.

Entretanto, a resolução 23.732 do TSE acabou por desconstruir todo esse modelo criado pelo Marco Civil, criando os conceitos de fatos ‘notoriamente inverídicos’ e ‘gravemente descontextualizados’, cuja vigilância nas redes sociais para retirar do ar cabe às plataformas digitais, independente da emissão de ordens judiciais.

O que são fatos notoriamente inverídicos? O que são fatos gravemente descontextualizados? Trata-se de conceitos jurídicos inexistentes e altamente subjetivos, sendo um grande risco querer impor uma visão única do mundo. Ao Judiciário caberia interpretar as leis para garantir a correta aplicação, jamais atribuir aos provedores de aplicação essa obrigação de vigilância e controle com base em conceitos tão subjetivos, o que é altamente temerário.

Apesar desta elevada subjetividade do novo conceito, segundo a resolução do TSE, cabe ao provedor de aplicação, que detectar o conteúdo ilícito (i.é. fatos notoriamente inverídicos e gravemente descontextualizados), adotar providências imediatas e eficazes para fazer cessar o impulsionamento, a monetização e o acesso ao conteúdo, diga-se retirar do ar. A Resolução não faz qualquer menção à necessidade de ordem judicial, como preconizado pelo Marco Civil, ficando sob responsabilidade exclusiva da plataforma essa decisão subjetiva, nos termos do art. 9-D, § 2º da resolução.

A Resolução do TSE vai além, no art. 9º-E, ao responsabilizar solidariamente, civil e administrativamente, os provedores de aplicação que não promoverem a indisponibilização imediata de conteúdos e contas, durante o período eleitoral, assim que identificados por eles próprios ou notificados pelos supostamente ofendidos. Então se um político acusa outro de ilicitudes, que eventualmente ensejam posteriormente multas eleitorais ou reparações cíveis, a plataforma seria responsável solidariamente com o acusador? Não nos parece razoável atribuir ao particular essa responsabilidade.

Tais previsões ferem frontalmente o art. 19 do Marco Civil, um dos elementos chaves para garantia da liberdade de expressão brasileira, justamente pois a sociedade é plural e exigiu ordem judicial para remoção de conteúdo na internet, devido ao risco de censura prévia de conteúdos na internet, colocando em risco o grande benefício do Marco Civil para nossa sociedade, que assegurou voz a todos.

A Resolução confronta ainda as próprias decisões do STJ, que tem jurisprudência firmada com diversos precedentes, no sentido de que não se pode impor aos provedores de aplicação a responsabilidade de realizar a prévia fiscalização sobre a origem de todos os produtos e serviços, por não se tratar de atividade intrínseca ao serviço prestado. 

O Marco Civil foi construído dessa maneira, pois seria temeroso atribuir aos provedores das redes sociais a responsabilidade de controlar o conteúdo postado por seus usuários. Tal controle, além de subjetivo, poderia ensejar censura prévia, pois tais provedores teriam, para evitar punições futuras, que decidir, previamente, se certo conteúdo deveria ou não permanecer online. 

Os provedores de redes sociais sendo obrigados a monitorar constantemente os conteúdos postados em suas páginas na Internet e a retirar automaticamente os conteúdos que julgarem impróprios, segundo esses critérios altamente subjetivos do TSE, certamente colocará sob perigo a livre manifestação do pensamento. É fato, que essas plataformas já realizam a moderação e exclusão de conteúdos violadores de seus termos de uso, sendo retirados milhares de conteúdos impróprios, mas a Resolução impõe uma vigilância além do razoável.

Mas não é só, a resolução 23.732 do TSE ainda determina que o provedor de aplicação, que for notificado da circulação de conteúdo ilícito (i.é. fatos notoriamente inverídicos e gravemente descontextualizados) pelas pessoas usuárias, também deverá adotar providências imediatas e eficazes para fazer retirar o conteúdo do ar. Trata-se da ressuscitação pelo TSE do mecanismo do notice and takedown, afastado pelo legislador na época da aprovação do Marco Civil, após ampla discussão.

O notice and takedown é uma técnica muito utilizada na defesa de direitos de propriedade intelectual, segundo a qual o detentor da propriedade intelectual pode notificar a plataforma que está divulgando um conteúdo violador de direitos autorais para que seja retirado imediatamente do ar, mas que não prevaleceu na aprovação do Marco Civil.

A única exceção aprovada no Marco Civil para uso do notice and takedown foi no caso de violações de ordem sexual, com grave exposição de imagens de pessoas, com elevado potencial de dano, que devem ser retiradas do ar imediatamente pelas plataformas, agora estendida por resolução do TSE para o âmbito eleitoral.

Assim, conceder aos supostamente ofendidos pelo conteúdo postado na Internet o direito de notificar a prestadora de serviço da rede social, visando imediata exclusão do conteúdo que o usuário julgar ofensivo, inclui em nosso ordenamento por resolução a dinâmica da doutrina americana do notice and takedown, afastada pelo Marco Civil da Internet.

Não bastasse, a resolução ainda atribuiu aos provedores de aplicação a função social de adotar as providências de exclusão de conteúdo eleitoral que mencionem fatos “notoriamente inverídicos” e “gravemente descontextualizados”, seja lá o que isso represente, no § 4º do art. 9-D. Função social da terra, por exemplo, como previsto na Constituição Federal é um atributo de um bem ou serviço que o eleva a uma categoria especial de obrigações perante o Estado e a sociedade, devendo em muitos casos os interesses privados ficarem subjugados pelo interesse público daquele serviço que enseja uma determinada função social.

Nesse sentido, ao atribuir uma função social por resolução, o TSE naturalmente restringe a liberdade da atividade dos provedores de aplicação confrontando a essência da recente lei da liberdade econômica, que consagrou no Brasil o regime de intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas. Talvez tenhamos que atribuir função social aos provedores de aplicações, dada a magnitude da sua interferência na sociedade moderna, é verdade, mas essa atribuição de função social é uma questão muito séria, que precisa ser submetida a todo o rigor da ampla discussão pela sociedade no Congresso.

Em verdade, precisamos sensibilizar as vozes que defenderam a forma atual do Marco Civil para defenderem os interesses de liberdade de manifestação de opinião, evitando a instituição de uma verdade oficial pelas autoridades. Espero que tenhamos as eleições transcorrendo dentro da legalidade, mas a legalidade de todos os atores envolvidos no grande palco da democracia.

Helio Ferreira Moraes
Coordenador da Comissão de Tecnologia do CCBC. Sócio do PK - Pinhão & Koiffman Advogados.

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