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O credor é ou não é responsável por boletos falsos pagos pelos devedores?

Até onde vai a responsabilidade dos credores e dos devedores. Uma questão complexa.

9/3/2024

A crescente incidência de boletos falsos tem levantado questionamentos sobre a responsabilidade dos credores em situações onde devedores são vítimas de fraudes. Neste contexto, surge a indagação: se um devedor paga um boleto falso, pode ele exigir ressarcimento do credor da dívida verdadeira? A resposta a esta questão está no cerne do embate entre os interesses dos devedores e as responsabilidades dos credores.

A situação prática é a seguinte: algum produto ou serviço foi adquirido para pagamento via boleto. O boleto é emitido, porém, no caso da fraude, é emitido outro boleto pelo fraudador, como cópia fiel do boleto correto, porém com o código de barras adulterado. Essa falsificação faz com que o devedor, que não conferiu o código de barras, pague o valor do boleto, mas o pagamento não seja enviado para o credor verdadeiro e, sim, para o fraudador. Dessa forma, o devedor pagou, mas sua dívida não é quitada porque o credor não recebeu o pagamento. O credor ficará sem o pagamento? O devedor deverá pagar novamente e , dessa vez, para o credor correto, sob pena de ser incluído , até mesmo, nos cadastros de inadimplentes e serem tomadas as medidas judiciais de cobrança?

O ordenamento jurídico brasileiro opera com o princípio de que “quem paga mal, paga duas vezes”, baseado nos art. 308 e 310 do Código Civil. Nos termos da lei, o pagamento deve ser feito ao credor ou para quem ele indicar , sob pena de somente valer efetivamente como pagamento, quando o credor se manifestar dando a quitação ou quando houver prova de que o valor chegou ao credor.

Não há como se falar que o credor causou danos ao devedor, com a emissão de título fraudulento, afinal, não foi ele quem emitiu o título, mas sim, um terceiro, o autor do ato criminoso. Portanto, o credor não é responsável por danos causados. Nem mesmo o CDC socorreria um devedor nessa situação e que se enquadrasse na qualificação de consumidor (e sabe-se que nem todos devedores são consumidores, ou seja, nem todos são protegidos pelo referido Código). Afinal, o prejuízo decorreu de ato do próprio devedor (pagar título fraudulento) em concorrência de ato de terceiro (o fraudador).

Importante adicionar que o credor não teria sequer como evitar a imitação de um boleto  e adulteração de um código de barras.

Jurisprudência

A jurisprudência brasileira tem demonstrado certa oscilação nas decisões sobre a responsabilidade dos credores em casos de boletos falsos. Alguns tribunais entendem que o credor deve arcar com os prejuízos, considerando sua responsabilidade pela segurança das transações. A maioria, no entanto, argumentam que a negligência do devedor ao verificar a autenticidade do boleto pode eximir o credor de responsabilidade.

Súmulas e decisões judiciais recentes têm abordado essas nuances, destacando a necessidade de análise caso a caso. A falta de uniformidade nas decisões reflete a complexidade do tema e a busca por equilíbrio entre os interesses das partes envolvidas.

A análise cuidadosa dos casos é imperativa para determinar a responsabilidade efetiva. A diligência do devedor na verificação da autenticidade do boleto e a atuação do credor na prevenção de fraudes são fatores que influenciam nas decisões judiciais.

É fundamental destacar que a segurança nas transações financeiras é uma responsabilidade compartilhada entre as partes. Os credores têm investido , cada vez mais, em sistemas robustos para prevenir fraudes, enquanto os devedores precisam adotar práticas seguras ao realizar pagamentos.

A questão dos boletos falsos envolve uma complexidade jurídica que exige análise criteriosa.

A construção de uma jurisprudência consistente e aprimoramento legislativo podem ser passos cruciais para lidar com os desafios apresentados pelos boletos falsos na era digital.

Izabela Rücker Curi
Advogada e sócia fundadora do escritório Rücker Curi Advocacia e Consultoria Jurídica e da Smart Law, uma startup focada em soluções jurídicas personalizadas para o cliente corporativo, que mesclam inteligência humana e artificial. É board member certificada pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa IBGC-São Paulo, mediadora ad hoc e consultora da Global Chambers na região Sul. É mestre em Direito pela PUC-SP e negociadora especializada pela Harvard Law School.

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