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O PL 3.985/23 e a sociedade de advogados no Brasil

O PL 3985/23 propõe mudanças no Estatuto da Advocacia, permitindo a inclusão de profissionais não advogados em sociedades de advogados, mas levanta preocupações legais e éticas quanto à natureza da advocacia e suas prerrogativas.

2/3/2024

Está em tramitação na Câmara dos Deputados o PL 3.985/23. Esse projeto legislativo de autoria do deputado Luis Tibé, de 17 de agosto de 2023, tem, por ementa, a alteração da lei 8.906/94, Estatuto da Advocacia e Ordem dos Advogados do Brasil - EOAB.

O objetivo do PL 3.985/231 é alterar a forma, o conteúdo, das sociedades de advogados, que hoje consiste na reunião de sócios e advogados2 devidamente inscritos na OAB que se conectam, se ligam, pelo conhecimento, intelecto, valores, para desenvolverem a atividade profissional da advocacia, de forma a proporcionar a organização, a divisão de tarefas, de expedientes, estudos, conhecimentos de várias áreas do direito, facilitando o exercício da atividade, para o melhor atendimento ao cliente, com esforços mútuos, com o pagamento de tributos, rateio de despesas, divisão de honorários, na forma prevista no estatuto social, registrado no Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil, na base territorial em que estiver sediada.

O que chama a atenção no projeto legislativo é a possibilidade de outros profissionais, que não são advogados e não possuem o conhecimento inerente à advocacia, a intelectualidade intrínseca ao desenvolvimento da atividade, reúna-se nas sociedades de advogados.

O argumento apresentado decorre da natureza das sociedades de advogados, que não realizam, exercem, diretamente a atividade profissional e, por consequência, não possuem plena autonomia justamente por não poderem praticar atos profissionais em nome próprio3.

Entendo que a proposta legislativa contraria a Constituição Federal, a mencionar o artigo 1º, inciso IV4, artigo 5º, inciso XIII5, artigos 1336, 1707, artigo 1748, a lei 13.874/19 em seus artigos 1º9, § 1º, 2º e demais, lei 8.906, artigos 1º10, 2º11, 1612, os precedentes da Corte Suprema, RE 236.604-PR, 220.323-MG.

No entanto, apesar de contrariar os dispositivos constitucionais, legais e precedentes citados, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, em um primeiro momento, o projeto de lei pelo parecer do relator deputado Federal, Waldemar Oliveira, foi, açodadamente, considerado como um projeto constitucional e legal.

Da leitura do parecer do deputado relator13, consta a justificativa de que outros profissionais, bacharéis, que exerçam atividades correlatas e contribuam para os serviços prestados pela respectiva sociedade, podem integrar a sociedade de advogados, sendo vedada a mercantilização das atividades exercidas pelos sócios, e, entre outras, a sociedade simples de advogado deverá ser constituída por, no mínimo, dois sócios inscritos regularmente nos quadros da OAB.

No projeto ainda há a arguição de que:

“(...) no tocante ao mérito, somos favoráveis à iniciativa, que tem como escopo atualizar a norma legal de forma a acompanhar as evoluções sociais, que modificaram ao logo do tempo a advocacia e, por conseguinte, as sociedades de advogados. Concordamos com as justificações do projeto, de que com o passar dos anos as relações sociais alcançaram contornos e proporções diversas que exigem, cada vez mais, que as sociedades de advogados assumam a forma de uma sociedade civil com infraestrutura multidisciplinar, prestando uma assistência jurídica global, necessitando de conhecimentos técnicos de outras áreas estranhas ao campo do direito, mas que estão umbilicalmente relacionadas ao exercício da advocacia.” 

Diz ainda na fundamentação do voto do PL 3985/23 que:

“a legislação atual tornou-se, pois, um empecilho para que a sociedade de advogado tenha em seus quadros profissionais capacitados de outras áreas técnicas, inviabilizando a prestação de uma assistência jurídica global e multidisciplinar integrada. A sua admissão permitiria garantir melhor eficiência e qualidade na atividade de advocacia, otimizando a prestação de serviços das sociedades de advogados para atender a demandas complexas. Aliás, deve-se ressaltar que o projeto proíbe expressamente serviços estranhos à advocacia pelas sociedades de advogados e, principalmente, que pessoa não inscrita na OAB exerça atividades privativas da advocacia, ou seja, o administrador da sociedade. Assim, finalmente, consideramos o projeto meritório, pois acreditamos que a sua aprovação abrirá novas perspectivas para a modernização das sociedades de advogados.”

Pois bem.

Deve ser relembrado que o termo “advogar” advém do latim advocare constituído pelo prefixo “ad” (junto, para) e pelo verbo “vocare” (chamar, convocar, escolher). Advogado, pois, é aquele profissional que é chamado para atuar em defesa ou em favor dos interesses de pessoas ou entidades, para resguardar seus direitos perante a sociedade e as autoridades constituídas, na conformidade das leis estabelecidas.14

Vamos um pouco mais adiante. 

Em artigo intitulado Munus público da advocacia é respeito ao cidadão e interesse da sociedade15, Antonio Oneildo Ferreira, ensina que ao postular em nome do cidadão, o advogado não exerce apenas uma atividade profissional. A atuação de forma independente e desvinculada dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário tem o nobre papel de contribuir com a manutenção e fortalecimento do Estado Democrático de Direito. 

O autor cita José Afonso da Silva16 na qual diz que a advocacia não é apenas uma profissão, é também um múnus, é a única habilitação profissional que constitui pressuposto essencial à formação de um dos Poderes do Estado: o Poder Judiciário.

Desta forma, para que haja o exercício fundamental para a prestação jurisdicional, mantendo e fortalecendo um Estado Democrático de Direito, há a necessidade da prestação da atividade do advogado, bem como também, as prerrogativas que este tem para bem desenvolver a prestação jurisdicional, pelo que luta tanto a classe. Decorre daí, com clareza, que esta atividade não poderá ser exercida por mais ninguém na sociedade de advogados, a não ser pelo próprio advogado.

Na continuidade deste tirocínio, chamam a atenção no PL 3.985, além da contrariedade aos artigos apontados da Constituição Federal, na Declaração dos Direitos à Livre Iniciativa (mesmo de profissionais de profissão regulamentada), ao Estatuto da Advocacia e da OAB, é a desconsideração à pessoalidade característica primeva, no desenvolvimento da atividade, isto porque quem represente o cliente é o advogado, quem desenvolve a atividade é o advogado. Por essas razões, a sociedade de advogados é sui generis, especial, simples ou unipessoal.

O EAOB, em seu art. 16, devido à natureza sui generis, das sociedades de advogados, prevê expressamente a proibição de inclusão como sócio ou titular de sociedade unipessoal de advocacia de pessoa não inscrita como advogado17

Ademais, a sociedade de advogados, pelo desenvolvimento de sua atividade, inclusive de múnus público, só se constitui depois da união dos sócios advogados devidamente inscritos, cujo registro do estatuto social, deve ocorrer na secção do Conselho da Seccional competente. 

O depósito do estatuto da sociedade de advogados no órgão de classe para registro e arquivamento é outro requisito que não pode ser ultrapassado, é exigência condicionante para a existência e reconhecimento dessa no território nacional. 

Pelo EOAB, a sociedade de advogados também não pode ser registrada na Junta Comercial, no Registro Civil de Pessoas Jurídicas e também, a sociedade de advogados não se reveste de nenhum tipo previsto no Código Civil/02 (art. 983 e demais).

Por isso, as sociedades de advogados, é considerada, pela Corte Suprema, pela classificação da atividade econômica, pela Fazenda Municipal, como uma sociedade sui generis, especial, pela qual a tributação da sociedade e de seus integrantes, pela natureza da atividade, leia-se aqui, hipótese de incidência, fato gerador, alíquota do ISS é fixa.

Outro ponto que chama atenção, também com base no EOAB, é a responsabilidade, sigilo e confidencialidade que deve existir entre advogado e cliente. E o que se dirá então da responsabilidade civil, penal, pelos atos praticados pelos advogados, estendendo-se à sociedade se esta possuir outros profissionais e bacharéis não inscritos no órgão de classe. 

Há que se dizer também que profissionais e bacharéis não inscritos na OAB, também não possuem o múnus publico e nem as prerrogativas necessárias ao desempenho desse múnus. 

Quando os advogados se unem para constituírem uma sociedade, o que se faz, o que se busca, é fortificar o que tem cada um de melhor, ou seja, o conhecimento nas mais variadas áreas de direito. Assim, há a reunião de colegas com níveis de conhecimento jurídico, que comungam de valores éticos, morais, profissionais. E é essa reunião intelectual, de conhecimento, de valores, que permitirá o melhor atendimento em qualidade, eficiência, otimização dos serviços no atendimento de demandas, complexas ou não.

Pode-se assim dizer, que a capacitação dos pares, nas várias áreas que compõem o direito, na defesa dos interesses dos clientes, é o que proporcionará o melhor desenvolvimento da atividade, e o mais perfeito atendimento ao cliente, e não, ao meu ver, profissionais ou bacharéis de diferentes profissões.

O PL 3.985/23 prevê a possibilidade de serem integrantes da sociedade de advogados, bacharéis sem dizer sequer que esses sejam de direito. Desta forma qualquer bacharel pode integrar a sociedade, pois o termo bacharel formado significa18 aquele que recebe o grau de bacharel após aprovação em todas as disciplinas de curso superior, em ato solene a que se dá o nome de formatura. 

Significa assim dizer, que aprovado em todas as disciplinas em curso superior, bacharel é. 

Desta forma, como se admitir como bacharel na sociedade, aqueles que nos órgãos de classe respectivos não lograram ainda a conclusão para trabalhar na atividade? Não seria uma burla ao que está posto na lei? 

A constitucionalidade da prova da OAB para o exercício da atividade de advogar foi estabelecida pelo julgamento do RE 603.583, isto porque o exercício da profissão repercute no campo de interesse de terceiros, conforme assentado no julgamento respaldado em doutrina.

As sociedades, assim como posta, deixariam de ser, sui generis, especial, e intuitu personae. A capacidade de cada sócio em exercer as atividade jurídicas seria questionada, porque não poderão, os que não estejam aptos a desenvolverem a atividade jurídica, estar em juízo, representar as partes em qualquer controvérsia, não poderão ser responsáveis pelos atos que são próprios dos profissionais de Direito. 

Assim se pergunta a quem interessa diminuir a profissão do advogado, profissão mestra que argumenta e protege a todos, que independente da própria opinião, tem o poder-dever de fazer respeitar a opinião contrária? 

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1 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 3985. Altera a Lei n° 8.906, de 4 de julho de 1994, para dispor sobre a possibilidade de bacharéis e outros profissionais, com formação em curso superior, passem a integrar as espécies de sociedade de advogados, desde que exerçam atividade correlata com a prestação de serviços de advocacia prestados pela respectiva sociedade. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2314473. Acesso em: 21 fev. 2023.

2 GIONÉDIS, Louise Rainer Pereira. A Sociedade de Advogados no Brasil e-Social. In: PÉREZ, David Vallespín (Org). CONSINTER – Conselho Internacional De Estudos Contemporâneos Em Pós-Graduação - DIREITO E JUSTIÇA, NÚMERO XVII, Ano IX. Organizador: David Vallespín Pérez. Juruá Europa: Curitiba.

3 Eduardo Gleber, na discussão do projeto, que resultou no Provimento nº 112/2006, do Conselho Federal da OAB, o relator na Comissão extraído dos autos Proc. 013/2002/CSAD-GOC, datado de 10.02.2003 e EOAB Lei Federal 8.906/1994 alterada pela Lei 14.365, de 02 de junho de 2022, artigo 15, §3º.

4 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;    

5 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

6 Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.

7 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

8 Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. 

9 Art. 1º  Fica instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador, nos termos do inciso IV do caput do art. 1º, do parágrafo único do art. 170 e do caput do art. 174 da Constituição Federal.

§ 1º  O disposto nesta Lei será observado na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente.

§ 2º  Interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas.

10 Art. 1º São atividades privativas de advocacia: (...)

11 Art. 2º O advogado é indispensável à administração da justiça.

12 Art. 16.  Não são admitidas a registro nem podem funcionar todas as espécies de sociedades de advogados que apresentem forma ou características de sociedade empresária, que adotem denominação de fantasia, que realizem atividades estranhas à advocacia, que incluam como sócio ou titular de sociedade unipessoal de advocacia pessoa não inscrita como advogado ou totalmente proibida de advogar

13 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 3985. Altera a Lei n° 8.906, de 4 de julho de 1994, para dispor sobre a possibilidade de bacharéis e outros profissionais, com formação em curso superior, passem a integrar as espécies de sociedade de advogados, desde que exerçam atividade correlata com a prestação de serviços de advocacia prestados pela respectiva sociedade. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2314473. Acesso em: 21 fev. 2023.

14 FEDERICI, Reinaldo. Advocacia, a mais antiga e uma das mais belas profissões da Humanidade!, Aho Adv, 11 de agosto de 2023. Disponível em: https://aho.adv.br/blog/artigos/advocacia-a-mais-antiga-e-uma-das-mais-belas-profissoes-da-humanidade/. Acesso em: 21 fev. 2023.  Neste sentido: Na Roma antiga havia muitos moradores de fora (“gentios”), que eram defendidos pelos “patronos”, homens de saber jurídico. Lá se instituiu a representação judicial através dos “advocati”, e os litígios se resolviam até na presença de senadores e do imperador , com os advogados exercendo uma virtude: a oratória! Assim, o Direito Romano veio posteriormente a ser básico para o mundo moderno, especialmente para as nações ocidentais.

15 FERREIRA, Antonio Oneildo. Munus público da advocacia é respeito ao cidadão e interesses da sociedade, Conjur, 18 de set. 2014. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-set-18/antonio-ferreira-munus-publico-advocacia-respeito-cidadao/. Acesso em: 21 fev. 2024.

16 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. [indicar].

17 Art. 16.  Não são admitidas a registro nem podem funcionar todas as espécies de sociedades de advogados que apresentem forma ou características de sociedade empresária, que adotem denominação de fantasia, que realizem atividades estranhas à advocacia, que incluam como sócio ou titular de sociedade unipessoal de advocacia pessoa não inscrita como advogado ou totalmente proibida de advogar.

18 DE PLACIDO E SILVA, Oscar Joseph. Vocabulário Jurídico. 28. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 185.  

Louise Rainer Pereira Gionédis
Sócia fundadora do Pereira Gionédis Advogados, certificada na nova Lei Geral de Proteção de Dados, especialista em Direito Societário, Mestre em Direito Econômico e Empresarial e em Cooperação Internacional.

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