Na constituição de uma sociedade, geralmente do tipo limitada, os sócios não se preocupam em estabelecer, no contrato social, regras a serem observadas quando surgir uma eventual dissolução parcial da sociedade.
O Código Civil, em seu art. 1.031, é claro ao estabelecer que o critério para a apuração de haveres do sócio retirante deve ser aquele previsto no contrato social, uma vez que seria o que representa a vontade das partes.
Ocorre, porém, que muitas das vezes o contrato social quando foi elaborado não deu a devida atenção a essa importante matéria, resultando em omisso quanto ao critério para a apuração dos haveres ou, por vezes, estabelece uma regra, mas não enfrenta detalhes para sua execução.
É justamente nesses casos, que são a maioria, urgem dúvidas durante a apuração de haveres, especialmente quando envolve a avaliação de bens, geralmente imóveis, pertencentes à sociedade.
A determinação legal é no sentido que não havendo consenso entre o sócio retirante e a sociedade, deverá ser procedida uma perícia para apurar os haveres do sócio. Essa perícia deverá observar, em caso de omissão do contrato social, o art. 1.031 do CC e art. 606 do CPC, sendo que os bens serão avaliados a preço de saída.
Esclarece-se que o termo “preço de saída” não é sinônimo jurídico ou contábil de valor justo, mas sim o valor atribuído ao bem no momento da sua venda. Inclusive, nota-se que, no aspecto contábil, preço de saída é definido como “preço que seria recebido para vender um ativo ou pago para transferir um passivo” (Comitê de Pronunciamento Contábeis - CPC 46).
Quando se trata de bens imóveis a avaliação terá que observar a avaliação como se venda se tratasse, porém no caso sub exame com uma preocupação a mais.
O objetivo de avaliar o imóvel da sociedade é, justamente, lançar no balanço de determinação esse valor que irá compor os haveres devidos ao sócio observado, por óbvio, sua participação na sociedade.
Porém, a questão ora apresentada é que esse valor avaliado deve observar, ao final, o desconto para fins de avaliação de venda forçada, E por que disso?! A resposta parece clara: o referido imóvel está sendo avaliado para efeitos de entregar o valor correspondente de sua participação ao sócio retirante, dentro de um prazo curto, sob pena do não pagando caracterizar a mora da sociedade sujeita a incidência dos juros de 1% ao mês.
Sabe-se que, do ponto de vista contábil, o valor justo tem como definição “o preço que seria recebido pela venda de um ativo ou que seria pago pela transferência de um passivo em uma transação não forçada entre participantes do mercado na data de mensuração” (CPC 46). Em outras palavras, o valor justo representa o preço pelo qual o bem seria vendido considerando todas as condições usais de mercado, tais como divulgação, tempo de exposição e período habitual para a venda.
Por sua vez, uma transação forçada ocorre quando não são observadas as condições usuais do mercado para aquele tipo de transação. O CPC 46 define como uma das hipóteses de transação forçada quando “não houve exposição adequada ao mercado por um período antes da data de mensuração para permitir atividades de marketing que são usuais e habituais para transações envolvendo esses ativos ou passivos sob condições de mercado atuais” e, ainda, o “vendedor foi obrigado a vender para satisfazer exigências regulatórias ou legais (ou seja, o vendedor foi forçado)”.
Ambas as hipóteses estão presentes na dissolução parcial, pois, conforme bem explica Alfredo de Assis Neto, compete à sociedade realizar seu ativo, se não houver caixa, para pagamento dos haveres do sócio: "a sociedade procederá à apuração do valor da participação societária desse sócio (apurando-lhe os haveres) e, ato contínuo, promoverá os atos necessários para lhe entregar em dinheiro o numerário correspondente. Tais atos consistem na realização parcial do seu ativo (conversão de parte do seu patrimônio em dinheiro) para pagamento do passivo que foi determinado com aquela apuração (ou seja, para pagamento ao sócio ou a seus herdeiros ou sucessores, em razão de seu desligamento do quadro social)." (Direito de Empresa - Ed 2023) (g.n)
Justamente em razão dos pontos acima mencionados, não se trata de uma avaliação para venda no tempo e espaço necessário para o negócio, mas deve se observar uma avaliação para uma venda (mesmo que simulada) de forma compulsória e em prazo curto para cumprir uma obrigação.
A situação é, portanto, típica da hipótese de venda forçada prevista nos critérios periciais.
No aspecto avaliativo de imóvel, a norma IBAPE/SP define que valor de mercado é a “quantia mais provável pela qual um bem seria negociado em uma data de referência, entre vendedor e comprador prudentes e interessados no negócio, com conhecimento de mercado, mas sem compulsão, dentro das condições mercadológicas”. Noutra banda, a referida norma define o valor de liquidação forçada como o “valor para uma situação de venda compulsória (…)”
Em linha semelhante, a NBR 14.563-1 Avaliação de Bens: Procedimentos Gerais de 2001 define que valor de mercado é a “quantia mais provável pela qual se negociaria voluntariamente e conscientemente um bem, numa data de referência, dentro das condições do mercado vigente”. Por outro lado, a Liquidação Forçada é definida como uma “condição associada à venda compulsória ou em prazo inferior à média de absorção pelo mercado”.
Com efeito, o critério de venda forçada é aplicado tecnicamente em situações em que um bem avaliado deve ser vendido em um prazo menor do que o normalmente observado no mercado imobiliário.
Nessa perspectiva, fica evidente que a dissolução parcial da sociedade, em virtude dos efeitos da lei, resultará, em regra, na venda do ativo (ou sua simulação) em condições não usuais de mercado, considerando o curto prazo legal para pagamento dos haveres.
Neste caso, o legislador agiu de forma acertada ao optar pelo uso do termo 'preço de saída' em vez de expressões como 'preço justo' ou 'preço de mercado'. Isso porque o termo 'preço de saída' efetivamente reflete melhor o valor de transação do bem, levando em consideração a condição compulsória da venda (ainda que simulada).
Aqui, não se busca discordar da doutrina que defende o uso do preço de mercado ou valor justo para avaliar o ativo. De fato, é necessário, inicialmente, identificar o valor de mercado do ativo; no entanto, posteriormente, é preciso considerar a condição de venda forçada para atribuir uma taxa de desconto. Isso se justifica, pois não seria justo que a apuração de haveres observasse apenas o valor de mercado, enquanto a sociedade, no momento da efetiva alienação do ativo para pagar os haveres (ou na sua simulação), receberia um preço menor. O valor justo deve ser para todos os envolvidos, sociedade e sócio retirante.
A jurisprudência já teve a oportunidade de enfrentar essa matéria:
1. TESE DE QUE A AVALIAÇÃO DOS BENS IMÓVEIS DEVE OBSERVAR O VALOR DE MERCADO. DESCABIMENTO. MATÉRIA PRECLUSA. APURAÇÃO DE HAVERES QUE, NA FORMA DO ART. 606, DO CPC, SERÁ REALIZADA ATRAVÉS DA SIMULAÇÃO DE LIQUIDAÇÃO TOTAL, COM PROJEÇÃO DE VENDA DOS ATIVOS E PAGAMENTO DO PASSIVO. CRITÉRIO DEFINIDO PELO JULGADOR EM DECISÃO ANTERIOR NÃO IMPUGNADA. BALANÇO DE DETERMINAÇÃO COM SIMULAÇÃO DE LIQUIDAÇÃO TOTAL QUE PRESSUPÕE AVALIAÇÃO DOS BENS IMÓVEIS PELO MÉTODO DE LIQUIDAÇÃO FORÇADA. SIMULAÇÃO DE VENDA em um prazo menor que o médio de absorção pelo mercado. LAUDO PERICIAL QUE OBSERVOU O CRITÉRIO DEFINIDO PELO JULGADOR. 2. PLEITO DE INCIDÊNCIA DE JUROS SOBRE OS HAVERES DESDE A DATA DA RESOLUÇÃO DA SOCIEDADE. NÃO ACOLHIMENTO. JURISPRUDÊNCIA UNÂNIME ACERCA DO TERMO INICIAL DA INCIDÊNCIA DE JUROS. 90 DIAS A PARTIR DA LIQUIDAÇÃO DOS HAVERES. DECISÃO MANTIDA. 3. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJ/PR - 17ª Câmara Cível - 0050451-42.2022.8.16.0000 - Curitiba - rel.: DESEMBARGADOR TITO CAMPOS DE PAULA - J. 1.2.23) (TJ/PR - AI: 00504514220228160000 Curitiba 0050451-42.2022.8.16.0000 (acórdão), relator: Tito Campos de Paula, Data de Julgamento: 1/2/23, 17ª Câmara Cível, Data de Publicação: 2/2/23)
A posição da referida jurisprudência ao estabelecer a venda forçada como critério de avaliação de bem imóvel, segue o melhor caminho, isso porque vale lembrar que a maioria dos casos versam sobre saída imotivada do sócio.
Desta feita temos que entender o que isso implica. O sócio, sem necessidade de apresentar qualquer razão, tratando-se de sociedade de prazo indeterminado, poderá solicitar sua saída da sociedade e essa ficará obrigada a apurar seus haveres e efetuar o pagamento observado o contrato social e a sentença.
Vejam que é uma situação muito cômoda para o sócio retirante, basta manifestar sua vontade para obrigar a sociedade a apurar e pagar seus haveres dentro dos critérios do contrato ou da lei. Essa situação deve ser observada com muita cautela pois implica impor um fardo enorme à sociedade que passará a ser devedora de uma obrigação, de uma hora para outra, sem ter dado causa a mesma. E mais, apurado o valor, o pagamento deverá ser feito em curto prazo, sob pena de ser constituída em mora.
Em arremate, destacamos o ensinamento do saudoso professor Celso Barbi Filho, que se alinha com o proposto neste artigo: “o Balanço de Determinação deve considerar que a Sociedade estaria se dissolvendo integralmente (ainda que se trate apenas de Dissolução Parcial). E, portanto, o Balanço de Determinação (Balanço Patrimonial contábil levantado na database da dissolução), deverá considerar: (i) os ativos da Sociedade avaliados a preço de mercado (venda forçada), (ii) os passivos da Sociedade a preço de mercado (considerando eventuais descontos para quitação à vista), (iii.1) além das contingências e provisões tributárias, sejam de ordem administrativa ou judicial; (iii.2) passivos e provisões trabalhistas, sejam os relativos às hipotéticas rescisões de todos os contratos de trabalho em vigor, inclusive com encargos sociais; (iii.3) passivos e provisões previdenciários, sejam administrativos ou judiciais; (iii.4) passivos e provisões contratuais e comerciais, sejam administrativos ou judiciais, incluindo os ônus relativos às hipotéticas rescisões de todos os contratos em vigor (incluindo, mas não exclusivamente, a rescisão de contratos de locação de imóvel, equipamentos e outros), bem como as dívidas assumidas pela sociedade, mas que não foram pagas, tudo como se a sociedade estivesse se dissolvendo totalmente na data da liquidação parcial.” (Dissolução parcial de sociedades limitadas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004) (g.n)
Desta feita, diante das ponderações acima elencadas entendemos que, no caso de dissolução parcial da sociedade fundada na hipótese de pedido imotivado do sócio, eventual avaliação de imóvel da sociedade deverá observar a venda forçada, por ser o que melhor espelha a situação para fins de avaliação (mesmo que seja uma simulação da venda) com o objetivo de ser encontrar o justo valor para o sócio retirante e para a sociedade, consagrando o princípio da preservação da empresa e do não enriquecimento indevido do sócio desligado em detrimento da sociedade e daqueles que nela permanecem.