Possibilidade de aplicação de regras dispostas em projeto de lei a caso concreto
(Estudo sobre a aplicação dos princípios da futura lei de recuperação de empresas ao caso Parmalat)
Paulo Sérgio Restiffe*
Essa multisolução, ousada, sábia e bem fundamentada, e que, basicamente, determinou a intervenção na Parmalat, vicejou e continua a suscitar acalorados debates.
Entre as questões que ensejaram polêmica está a seguinte: Poderia o Judiciário valer-se de regras ainda em discussão no Congresso Nacional, no caso o Projeto de Lei de Recuperação de Empresas, e, portanto, não vigentes no ordenamento jurídico nacional, e aplicá-las em caso concreto?
A resposta é complexa, positiva, bastando a essa conclusão a força dos doze provimentos jurisdicionais acima expendidos.
No entanto, duas correntes de entendimento se formaram: (i) a restritiva, que entende não ser aplicável a regra de legislação projetada, uma vez que o juiz não pode prestar tutela jurisdicional, mesmo de natureza cautelar, diferente daquela pretendida e requerida pela parte; e (ii) a ampliativa, que admite a aplicação de princípios como sucedâneo da lacuna legislativa.
Desse modo, ante a divergência de entendimentos, deve-se demonstrar que a opção judicial foi a mais oportuna e acertada, senão a única adequada às circunstâncias e ao bem comum.
Exsurge para a solução desse magno problema a necessidade de serem estabelecidas algumas premissas.
É de senso comum que o Estado Democrático de Direito baseia-se no princípio de respeito e observância às regras estabelecidas no ordenamento jurídico. E tanto é assim que, em relação ao Estado, deve ele pautar-se pelos critérios estritos da legalidade, ou seja, somente fazer e atuar dentro dos parâmetros legais. Ao particular, todavia, vale a regra em sentido benéfico de que tudo o que não está proibido então permitido está.
Ao presente estudo interessa a análise a partir do ponto de vista do particular e não do Estado, já que este não está diretamente envolvido na questão sub examinem.
Nos conflitos de interesse levados ao conhecimento e solução pelo Poder Judiciário, ao juiz cabe aplicar a legislação.
Entretanto, quando a legislação em vigor nada estabelece ou dispõe especificamente sobre o caso em litígio, ao Judiciário não cabe a recusa de solução sob o argumento de vácuo legal. Ou seja, o juiz, o único intérprete autêntico da norma jurídica, consoante Hans Kelsen, encontra-se na seguinte situação: deve (obrigatoriamente, portanto) dar solução ao caso concreto, mas não encontra parâmetro legal para isso.
A solução do problema relativo a saber qual regra deva ser aplicada em caso de omissão legislativa é encontrada na hermenêutica jurídica, que acolhe, basicamente, duas formas de interpretação, ou melhor, duas formas de integração dessa lacuna: (i) a auto-integração e (ii) a hetero-integração.
Por meio da auto-integração, o juiz busca no próprio ordenamento jurídico regra que possa se amoldar ao caso sub judice. É a analogia. Por exemplo, para a interpretação de um contrato de parceria empresarial, que não possui forma nem figura legal, deve o intérprete socorrer-se da regra da analogia, alcançado, ao fim e ao cabo, a solução para a compreensão desse contrato a partir das regras do contrato de sociedade, haja vista se tratar, em ambos os casos, de negócios jurídicos – tanto a espécie contrato de parceria como a espécie contrato de sociedade – do gênero contrato de colaboração.
E por meio da hetero-integração, o juiz busca em fonte distinta da legislação regra que possa ser aplicada ao caso concreto para a sua solução, de forma, então, a suprir a ausência legislativa. Nesse caso encontram-se: (i) os usos e costumes; (ii) a jurisprudência; e, por fim, (iii) os princípios gerais de direito.
Em outras palavras, em caso de omissão legislativa, o intérprete-juiz deve buscar, em primeiro lugar, no próprio ordenamento jurídico, regra aplicável analogicamente ao caso em apreço; não a encontrando, deve percorrer o caminho da hetero-integração, buscando antes nos usos e costumes a regra a ser aplicada, e, caso não a encontre, deve haurí-la, então, em orientações sedimentadas pelos Tribunais. Não encontrada a solução nem nos usos e costumes e nem na jurisprudência, então, deve-se recorrer aos princípios gerais de direito, onde, de certo, in extremis, o julgador encontrará as suas respostas.
Ora, no caso Parmalat foi o que ocorreu.
Sem embargo das opiniões em contrário, o juiz, vendo-se diante de uma situação de excepcional gravosidade que requeria solução imediata e de forma não-paliativa, já que havia empresa que necessitava, urgentemente, de socorro jurídico, mas que a legislação em vigor por ela nada faria, valeu-se das regras de integração interpretativa para solucionar e prestar a tutela jurisdicional devida.
O juiz, premido pela urgência e relevância do caso, consciente do interesse social e econômico envolvido, mas desprovido de legislação que lhe proporcionasse o arcabouço suficiente para prestar a tutela jurisdicional cautelar premente imprescindível, municiou-se das regras de integração interpretativa acima referidas para prolatar a sua decisão.
Em outras palavras: ante a omissão legislativa, o juiz teve de se socorrer das regras de integração, procurando, em primeiro lugar, na analogia, forma de solução da lide. Entretanto, no ordenamento jurídico pátrio não havia, como ainda não há, regra legal que pudesse ser aplicada analogicamente. Assim, a auto-integração teve de ser abandonada. O passo seguinte foi buscar nas regras de hetero-integração a forma de suprir a lacuna legal. Todavia, nem nos usos e costumes e nem na jurisprudência essa solução pôde ser encontrada. Ao juiz restou, então, perquirir com prudência junto aos princípios gerais de direito o modo de integração satisfatória da norma jurídica. E lá, enfim, encontrou a sua resposta adequada.
Assim, a decisão excepcional inconformável de intervir, sanear e viabilizar a recuperação da Parmalat fundou-se nos princípios da função social da empresa e da sua continuidade, porque a sua sobrevivência, por ser o núcleo da atividade econômica moderna, dela atraindo e irradiando valores, a todos – trabalhadores, fisco, previdência, fornecedores, investidores etc. – interessou acima de tudo.
Em conclusão, o Judiciário, no exercício lúcido da função jurisdicional do Estado, pode e deve, mais do que de regras estabelecidas em legislação projetada, utilizar-se fundamentadamente dos princípios que norteiam e dão o embasamento ao ordenamento jurídico pátrio nas suas decisões.
E isso se explica e se entende, porque, se os princípios são o ponto nuclear e inicial de onde se irradiam os elementos para a formação e elaboração legislativa, independentemente de sua vigência ou não, devem eles, os princípios, ser invocados e aplicados em situações justificáveis pelos operadores do Direito.
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* Advogado do escritório Peixoto e Cury Advogados
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