A questão da embriaguez e seus aspectos jurídicos é complexa e desafia os sistemas legais em todo o mundo. A embriaguez pode estar relacionada a diferentes crimes, sendo mais comum em casos de direção de veículos sob efeito de álcool, mas também pode envolver situações como agressões físicas, lesões, homicídios e outros delitos.
O Código de Trânsito Brasileiro - CTB estabelece, em seus artigos 1651 e 3062, os crimes relacionados à condução de veículos sob efeito de álcool, havendo, no parágrafo 1°, inciso I deste último artigo, a determinação de que a “concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar” constataria a alteração da capacidade psicomotora de uma pessoa.
Apesar da ausência de definições oficiais para uma dose padrão3 no momento, de acordo com o Centro de Informações sobre Saúde e Álcool - CISA, considera-se que, no contexto brasileiro, uma dose padrão é equivalente a 14g de etanol puro. Essa medida corresponde a 350 ml de cerveja (com 5% de álcool), 150 ml de vinho (com 12% de álcool) ou 45 ml de destilado (como vodca, cachaça e tequila, contendo aproximadamente 40% de álcool).
Para que se consiga estimar a dosagem equivalente a 6 decigramas de álcool por litro de sangue, a tabela abaixo correlaciona a concentração estimada de álcool do sangue - CAS de um homem de 70 kg, os números de doses equivalentes e os efeitos que o álcool pode causar no organismo:
Frisa-se que a CAS é determinada pela rapidez com que a pessoa ingere a bebida alcoólica e pelas taxas de absorção, distribuição e metabolismo do álcool pelo corpo. Isto é, “se uma mulher ingere 4 ou mais doses ou um homem ingere 5 ou mais em cerca de 2 horas, isso pode elevar a concentração de álcool no sangue para 0,08%”, o que corresponde ao consumo excessivo de álcool.
Ante ao demonstrado questiona-se: a mesma quantidade de doses para deixar um homem de 70kg embriagado seria a mesma para deixar uma mulher de 55kg? E se for uma pessoa de 90kg, a quantidade de doses varia?
A quantidade exata de doses necessárias para deixar uma pessoa embriagada varia de acordo com o sexo biológico, massa corpórea, metabolismo de quem bebe, frequência e velocidade com que se bebe e, também, pela quantidade de bebida ingerida.
O álcool, quando consumido, passa do estômago e dos intestinos para a corrente sanguínea, se unificando à água e aos fluidos do organismo. A depender de como se ingere a bebida alcoólica (estômago cheio ou vazio) a taxa de absorção do álcool no organismo aumenta, ou seja, um indivíduo que não tiver ingerido nenhum tipo de alimento antes de tomar a bebida alcoólica, terá a sua taxa de absorção maior do que de uma pessoa que consumiu alimentos antes de beber.
Segundos após a ingestão o corpo começa a metabolizar6 o álcool e prossegue a um ritmo constante, independentemente da quantidade de álcool que uma pessoa bebe. Embora a taxa de metabolismo seja constante em qualquer pessoa, ela varia amplamente entre os indivíduos, dependendo de fatores como tamanho do fígado e massa corporal, bem como da genética.
Um exemplo disso são as pessoas do leste asiático. Elas possuem uma propensão maior a sentir os efeitos do álcool mais rapidamente devido a uma diferença genética na forma como seus corpos processam a substância.
Ademais, a frequência com que uma pessoa consome álcool, influencia diretamente na capacidade de seu organismo metabolizar o álcool com maior agilidade, dando a sensação de “resistência ao álcool”. Isso ocorre, pois o organismo começa a produzir mais enzimas e adapta suas funções para lidar melhor com o álcool.
Dessa maneira, imperativo considerar o standard probatório aplicável nesses casos, isto é, deve-se ter em vistas o conjunto de evidências e critérios necessários para que uma alegação seja considerada válida em um devido processo legal substantivo. No contexto da embriaguez, estabelecer um padrão probatório sólido é crucial para garantir a justiça e a imparcialidade nas decisões judiciais.
O standard probatório relacionado à embriaguez pode abranger desde testes de alcoolemia até análises médicas. É fundamental que o sistema legal estabeleça critérios claros e objetivos para determinar a influência do álcool na capacidade psicomotora de um indivíduo. A definição de padrões probatórios consistentes proporciona segurança jurídica e contribui para decisões mais justas e equitativas nos casos de embriaguez.
A decisão do standard de prova no processo é substancialmente uma escolha de valores, considerando preferências sociais para o atingimento de objetivos aos quais se pretende dar primazia, como reduzir os riscos das decisões errôneas, distribuindo equitativamente, ou evitar condenações equivocadas, dando prevalência à proteção da liberdade dos acusados.7
Além dos aspectos probatórios, não se pode deixar de lado o princípio da presunção de inocência ao analisar os casos de embriaguez, pois, consagrado no ordenamento jurídico, esse princípio se torna particularmente relevante nos casos de embriaguez, onde a avaliação da capacidade psicomotora pode ser subjetiva e complexa.
Esse princípio, previsto no artigo 5°, LVII, da Constituição Federal8, garante que uma pessoa deve ser tratada como inocente até que sua culpa seja comprovada de maneira justa e legal. Garantir os direitos fundamentais do acusado e atribuir o ônus da prova à parte acusatória são essenciais para assegurar a justiça e a imparcialidade no processo legal.
A presunção de inocência enaltece a dimensão protetiva fundamental ao indivíduo, incumbindo o órgão acusatório de perquirir evidências concretas elementos concretos de prova a demonstrar a embriaguez do particular, respeitando as regras dos direitos fundamentais. Portanto, ao aplicar o standard probatório mencionado anteriormente, é crucial garantir que o ônus da prova recaia sobre a acusação, respeitando o direito do acusado de ser considerado inocente até que se prove o contrário.
Destarte, como podemos verificar, para constatar o estado de embriaguez de um indivíduo é necessário analisar diversos fatores, dentre eles os biológicos. Dessa forma, resta claro que a “concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar” não é plenamente capaz por determinar a alteração da capacidade psicomotora de uma pessoa, pois os testes de alcoolemia, embora comuns, apresentam limitações. Eles indicam a presença de álcool no organismo, mas não refletem de maneira precisa a capacidade psicomotora do indivíduo, sendo suscetíveis a falhas técnicas e influências externas.
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1 Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Infração - gravíssima
Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses.
Medida administrativa - recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4o do art. 270 da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 - do Código de Trânsito Brasileiro.
Parágrafo único. Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses.
2 Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
3 “A OMS define como dose padrão 10g de etanol puro, e recomenda que homens e mulheres não excedam duas doses por dia e abstenham-se de beber pelo menos dois dias por semana. Já a renomada instituição NIAAA – National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism estabelece como dose padrão 14g de etanol puro e orienta as mulheres a limitarem seu consumo a uma dose por dia e, os homens, a até duas doses por dia.” - https://cisa.org.br/pesquisa/artigos-cientificos/artigo/item/57-quantas-doses-de-alcool-sao-necessarias-para-deixa-lo-bebado#:~:text=O%20n%C3%BAmero%20de%20doses%20necess%C3%A1rias,de%20problemas%20relacionados%20ao%20%C3% A1lcool
4 Varia de acordo com características individuais, como vulnerabilidade genética, sexo, peso, altura e metabolismo
5 a quantidade de álcool consumida é alta e varia muito de acordo com o metabolismo do indivíduo
6 Metabolismo do Álcool, Vídeo (20 minutos), Vijay Ramchandani, Ph.D., NIAAA, 2021
7 BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 237-238.
8 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória