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Questões práticas sobre processo civil: É possível interpor um agravo de instrumento visando a impugnação de mais de uma decisão interlocutória?

De acordo com a legislação, obrigações e ônus processuais são definidos por lei. No processo civil brasileiro, os recursos são estritamente estabelecidos por lei, seguindo o princípio da taxatividade e, geralmente, apenas um recurso é admitido para cada decisão judicial.

21/2/2024

As obrigações e os ônus processuais são previstos em lei. Não estando elencado na legislação de regência, não há que se falar em dever processual.

Pois bem. Além disso, os recursos, no processo civil brasileiro, são todos estabelecidos legalmente, observando-se o princípio da taxatividade. Se não consta em lei, não pode ser considerado recurso, sob pena de criação irregular de categoria recursal.

Além do princípio da taxatividade, existe na doutrina o preceito da unirrecorribilidade ou unicidade recursal1, que preleciona ser cabível apenas um recurso para cada decisão judicial sob pena de preclusão consumativa, salvo pontuais exceções.

As exceções ficam a cargo da oposição de embargos de declaração, a interposição simultânea de recurso extraordinário e recurso especial, bem como o manejo de agravo interno e agravo em recurso especial2.

 Portanto, via de regra, não é possível a interposição de mais de um recurso contra a mesma decisão judicial.

Ante o raciocínio acima, exsurge interessante questão: seria possível, ao revés, a interposição de um único recurso (agravo de instrumento) objetivando impugnar mais de uma decisão (interlocutória)?

Observa-se que nesse caso há uma espécie de “unirrecorribilidade invertida ou às avessas”, onde haveria um único recurso para mais de uma decisão, o que encontra vedação em alguns tribunais do país:

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CAUTELAR DE SUSTAÇÃO DE PROTESTO. RECURSO OBJETIVANDO TRÊS DECISÕES AO MESMO TEMPO. AFRONTA AO PRINCÍPIO DA UNIRRECORRIBILIDADE. AUSÊNCIA DE ELEMENTO NOVO. 1. A teor do entendimento pacífico deste Sodalício e em consonância com a jurisprudência dominante do STJ, a interposição de um único recurso de agravo de instrumento com o desiderato de buscar a modificação de três decisões distintas implica em violação ao princípio da unicidade recursal, resultando inadmissível o impulso. 2. Se a parte agravante não traz nenhum argumento suficiente para acarretar a modificação na fundamentação da decisão monocrática, impõe-se o desprovimento do agravo regimental. 3. Agravo regimental conhecido e desprovido (Agravo de Instrumento 223974-37.2015.8.09.0000, 5° Câmara Cível, TJ/GO)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DUAS DECISÕES DISTINTAS IMPUGNADAS. INACEITÁVEL. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA UNICIDADE OU SINGULARIDADE RECURSAL. Em observância ao princípio da unicidade (unirrecorribilidade) ou singularidade recursal, não se conhece do recurso que ataca duas ou mais decisões distintas. Agravo não conhecido. (Agravo de Instrumento 55231-0/1180, 3a Câmara Cível do TJ/GO, Rei. Wálter Carlos Lemes. Unânime, DJ 25.5.07)

AGRAVO DE INSTRUMENTO – PROCESSO CIVIL – OFENSA AO PRINCÍPIO DA UNICIDADE RECURSAL – INADMISSIBILIDADE. Implica em violação ao princípio da unicidade recursal a interposição de um único recurso de agravo de instrumento com o escopo de buscar a cassação ou reforma de duas decisões distintas. Agravo não conhecido. (TJ/TO, Agravo de instrumento 7703, Relatora Desembargador Amado Cilton, 5° Turma, DJ 27/2/08)

Essa “unicidade às avessas”, entretanto, não merece acolhimento em razão de o princípio e o ordenamento jurídico vedarem unicamente a interposição de mais de um recurso em face de determinada decisão, o que impede o cabimento pela preclusão (consumativa) e afronta a adequação, inviabilizando a sua admissibilidade.

Além disso, caso ambas decisões interlocutórias estejam dentro do prazo para recurso, não há qualquer empecilho para o conhecimento da insurgência, até mesmo privilegiando e dando voz ao princípio da economia processual.

Outrossim, com a aludida prática, interpondo apenas um agravo de instrumento em face de mais de uma decisão interlocutória, seriam evitados alguns transtornos perante o tribunal, como eventuais gastos de tempo e energia com a formação de dois instrumentos, vedar a prolação de decisões conflitantes (ao passo que os pronunciamentos atacados podem ostentar alguma dependência ou prejudicialidade), além de eventual discussão quanto a prevenção no órgão colegiado.

Nesse sentido, precedentes do Egrégio TJ/DF e dos Territórios:

CIVIL E PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÕES INTERLOCUTÓRIAS DISTINTAS. PRINCÍPIO DA UNIRRECORRIBILIDADE. VIOLAÇÃO NÃO CONFIGURADA. RECEBIMENTO. PRAZO RECURSAL. NÃO INTERRUPÇÃO. IMÓVEL. VÍNCULO FAMILIAR. PRECLUSÃO. INEXISTÊNCIA. CAPITALIZAÇÃO DE JUROS. CONTRATOS BANCÁRIOS. LEGALIDADE. MATÉRIA TÍPICA DE DEFESA. DECISÃO PARCIALMENTE REFORMADA. 1. O STJ manifestou-se pela possibilidade de se interpor um único recurso para atacar duas decisões distintas. Segundo aquela Corte, o princípio da unirrecorribilidade ou singularidade do recurso não veda a interposição de um único recurso para impugnar mais de uma decisão. O que esse princípio coíbe é a utilização de mais de um recurso para atacar a mesma decisão. (...) (Acórdão 1350806, 07403286120208070000, Relator: MARIO-ZAM BELMIRO, 8ª Turma Cível, data de julgamento: 24/6/21)

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO CONTRA DUAS DECISÕES. POSSIBILIDADE. RESCISÃO DE CONTRATO DE LOCAÇÃO. TUTELA CONSTITUTIVA. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA RECURSAL. NÃO CABIMENTO. IRREVERSIBILIDADE DA MEDIDA. CONSIGNAÇÃO DOS ALUGUÉIS VINCENDOS. PEDIDO NÃO FORMULADO NA PETIÇÃO INICIAL. LEVANTAMENTO DOS VALORES CONSIGNADOS. ATO INCOMPATÍVEL COM A PRETENSÃO RECURSAL. 1. Não há qualquer irregularidade na interposição de um recurso só contra duas decisões, desde que, claro, tenha sido observado o prazo para tanto. O que o ordenamento jurídico-processual não tolera é, ao revés, a interposição de dois recursos contra uma mesma decisão, hipótese que estaria a desafiar o princípio da singularidade ou da unirrecorribilidade. (...) (Acórdão 1762407, 07042584020238070000, Relator: ARNOLDO CAMANHO, 4ª Turma Cível, data de julgamento: 21/9/23)

AGRAVO INTERNO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO DE SANEAMENTO. PRAZO. SENTENÇA PROLATADA. PRECLUSÃO. UNIRRECORRIBILIDADE. 1. Ultrapassado o prazo de cinco dias, previsto no §1º do art. 357 do CPC, resta estabilizada a decisão de saneamento. 2. O prazo de quinze dias para a interposição do agravo contra a decisão que indefere o pedido de inversão do ônus da prova não é regra absoluta, pois deve ser compatibilizado conforme transcorre a marcha processual. 3. Segundo a doutrina, a regra da singularidade orienta para a interposição de um único recurso, o qual pode até mesmo impugnar mais de uma decisão. Caso haja mais de uma decisão antes do término do prazo recursal da primeira a ser proferir a parte deverá interpor num único recurso, impugnando ambas, desde que esse mesmo recurso seja adequado a combater as duas decisões. 4. Agravo Interno conhecido e não provido. (Acórdão 1365206, 07093861220218070000, Relator: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, 7ª Turma Cível, data de julgamento: 18/8/21)

Foi o que restou decidido pelo STJ3, no sentido de que não há qualquer impeditivo legal apto a inviabilizar a interposição de um único recurso de agravo de instrumento ante duas ou mais decisões interlocutórias, apesar de não ser prática usual ou até mesmo recomendável.

A par disso, e apesar de ser aconselhável o manejo de um recurso para cada decisão, não se pode privar o recorrente em ter os seus argumentos analisados pelo tribunal local, posto que não esbarra em nenhum obstáculo legal a sua conduta processual.

O proibido pelo sistema jurídico-processual é a interposição de mais de um recurso para atacar o mesmo pronunciamento jurisdicional, o que é vedado, inclusive, pelo princípio da unirrecorribilidade/unicidade/singularidade recursal.

Porém, para que isso seja realizável, é importante atentar para uma questão. É necessário que as decisões impugnadas estejam todas dentro do prazo recursal, fato que apesar de possível, revela-se incomum na praxe forense.

No REsp 1.628.773/GO, todas as três decisões impugnadas pelo mesmo recurso foram proferidas antes da citação do recorrente, fato que possibilitou a tempestividade da impugnação, além da inocorrência da já mencionada preclusão, seja consumativa ou temporal.

Já no REsp 1.112.559/TO, o recorrente sequer havia sido intimado regularmente das duas decisões impugnadas pelo mesmo recurso, fato que viabilizou o conhecimento do agravo de instrumento.

Em razão disso, em que pese ser prática incomum, caso a parte interponha um único agravo de instrumento visando impugnar mais de uma decisão interlocutória, não poderá ser tolhido o seu direito ao recurso.

No entanto, é necessário que se observe o prazo para recorrer, evitando-se a preclusão temporal, bem como a adequação e o respeito à forma.

Essa autorização que vem sendo construída pela jurisprudência se revela salutar, ao passo que atenta para a economia dos atos processuais, a racionalização das decisões judiciais, além de não materializar nenhum prejuízo processual e não sacrificar qualquer direito da parte adversa.

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1 MOACYR AMARAL SANTOS, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, Saraiva, Volume 3, 22ª ed., Atualizada por Maria Beatriz Amaral Santos Köhnen, p. 90

2 AgRg no AREsp 1875440/SP

3 Recursos Especiais n° 1.628.773/GO e 1.112.559/TO.

Luís Eduardo de Resende Moraes Oliveira
Advogado e especialista em direito processual civil.Membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil. Membro da Comissão de Processo Civil OAB/DF.

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