O Cristianismo e a Constituição
Juarez Altafin*
Direitos Públicos Subjetivos
Iniciando pelos direitos públicos subjetivos, o livro cita as palavras cristãs que atravessaram os séculos e pairam na nossa Constituição, no sentido da igualdade humana, afirmada pelo Apóstolo São Paulo: “Não há, pois, judeu nem grego, escravo ou livre, varão ou fêmea, pois sois todos um <_st13a_personname productid="em Jesus Cristo" w:st="on">em Jesus Cristo”.
E o que está no artigo 5º da Constituição do Brasil: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”
O texto constitucional da nossa Carta, em setenta e sete itens, enumera os direitos e deveres individuais, e suas garantias, recepcionados positivamente da História do Direito, externa e interna, de acordo com a realidade brasileira.
No livro, vinculadas à história dos direitos individuais, são analisadas as escolas filosóficas, as declarações de direito, as doutrinas e as teorias dos autores, enfim, aquilo que interessa ao exercício de tais direitos e suas garantias, com suas ligações cristãs.
A expressão “direitos públicos individuais”, também denominados “direitos humanos”, significa que são direitos do indivíduo, subjetivos, oponíveis ao próprio Estado, que faz a lei, mas também a ela se submete. Historicamente, nesse sentido, a Magna Carta de 1215 é uma etapa importante. Entretanto, quinhentos anos antes, a Igreja, por Santo Isidoro (560-636), bispo de Sevilha, afirmava que o príncipe deve submeter-se às leis que promulga, pois, “quando também ele respeita as leis, pode-se esperar que elas sejam obedecidas por todos.” (Sententiae,III,51.5)
Séculos depois, da mesma forma, a Igreja se antecipou numa relevante área do Direito positivo.
Direitos Sociais Individuais
No dia 15 de maio de 1891, o Papa Leão XIII, a propósito da condição dos operários, dirigiu, aos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e outros Ordinários em paz e comunhão com a Sé Apostólica (e para o mundo), a Encíclica Rerum Novarum.
Ao longo da Encíclica, em várias partes, a antevisão e a defesa de um regime trabalhista mais justo e humano, como a adequada jornada de trabalho: “Não deve, portanto, o trabalho prolongar-se por mais tempo de que as forças permitem. Assim, o número de horas de trabalho diário não deve exceder a força dos trabalhadores, e a quantidade de repouso deve ser proporcional à qualidade do trabalho, às circunstâncias do tempo e do lugar, à compleição e saúde dos operários” (RN, 59).
Antevisão do salário mínimo: o operário deve “receber um salário suficiente para ocorrer com desafogo às suas necessidades e às de sua família...”(RN, 65).
Proteção da criança e da mulher: “Enfim, o que um homem válido e na força da idade pode fazer, não será eqüitativo exigi-lo duma mulher ou duma criança”. A criança “não deve entrar na oficina senão quando a sua idade tenha suficientemente desenvolvido nela as forças físicas, intelectuais e morais: do contrário, como uma planta ainda tenra, ver-se-á murchar com um trabalho demasiado precoce, e dar-se-á cabo da sua educação” (RN, 60). Mais de um século depois, o preceito não é obedecido no mundo todo, inclusive no Brasil...
Não luta de classes, mas ação conjunta de patrões e operários. Uma previsão da Previdência Social baseada nas Sagradas Letras: “Mais valem dois juntos que um só, pois tiram vantagem da sua associação. Se um cai, o outro sustenta-o. Desgraçado do homem só, pois, quando cair, não terá ninguém que o levante”. “ O irmão que é ajudado por seu irmão é como uma cidade forte”.
Partindo da solidariedade humana, continua a Encíclica: “Desta propensão natural, como dum único germe, nasce, primeiro, a sociedade civil; depois, no próprio seio desta, outras sociedades que por serem restritas e imperfeitas, não deixam de ser verdadeiras”(RN,70).
Dessa forma, as sociedades particulares devem ser reconhecidas pelo Estado. É a descrição de um detalhe da ordem jurídica dentro da organização estatal. Pessoas jurídicas, no seio da sociedade civil, com finalidade de socorro e previdência, que não podem ser proibidas por lei. “Pois uma lei não merece obediência, senão enquanto é conforme com a reta razão e a lei eterna de Deus”.
Essa parte final, da desobediência à lei, porque contrária à “reta razão e à lei eterna de Deus”, significa o choque entre a legitimidade cristã e a legalidade, o que, sob o ponto de vista da dogmática jurídica, dá ensejo a uma longa dissertação.
Pelos tópicos retro-referidos sobre particularidades da Rerum Novarum, vê-se a sua adequação aos problemas sociais decorrentes do desenvolvimento do capitalismo no final de século XIX. Era a afirmação de milênios da Igreja Católica, de sua tradição doutrinária sobre problemas sociais nas diversas épocas da história, problemas não alheios aos seus pensadores. Tradição de A Patrística de Santo Agostinho (“o estado seria desnecessário se todos os homens fossem justos”) e de A Escolástica de Tomás de Aquino.
A Encíclica Leonina, inspirada na moral cristã, verberou o liberalismo econômico, sem adotar o socialismo, dando ao “gênero humano regras seguríssimas para a boa solução do espinho ao problema do consórcio humano, isto é, para a chamada ‘Questão Social’, precisamente quando isso era mais oportuno e necessário.” Esta, a conclusão do Papa Pio XI na Encíclica Quadragésimo Anno.
As referidas “regras seguríssimas” serviram de base para a atuação do Estado, que, na área jurídica, passou a editar normas constitucionais sobre o trabalho na infra-estrutura das relações de produção. Foi o que ocorreu com a Constituição de México de 1917 e da Constituição de Weimar de 1919 – precedentes para a Constituição do Brasil de 1934, que, em vinte e oito artigos, disciplinou a ordem econômica e social.
A atuação estatal no setor prosseguiu em todas as nossas Constituições, com as mencionadas “regras”, também não só no Brasil, mas em todo o mundo, principalmente de relações de produção capitalista, com maior ou menor intervenção estatal.
A partir da Rerum Novarum, na Encíclica Quadragésimo Anno é formulado o princípio da subsidiaridade, de grande aplicação no mundo contemporâneo pela sábia orientação nas atividades da sociedade e do Estado.
Princípio da subsidiariedade
Na terceira posição – nem liberalismo nem Estado intervencionista, este com vários matizes, desde democráticos até totalitários, de esquerda e de direita -, surge o princípio da subsidiariedade, tributário da doutrina social da Igreja Católica. O seu fundamento principal encontra-se na doutrina da dignidade da pessoa humana.
A Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, é destacada como ponto de partida da Igreja Católica na vanguarda da justiça social. Quarenta anos depois da Rerum Novarum, o Papa Pio XI formula com precisão o princípio da subsidiariedade:
“Assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e trabalho, para o confiar à comunidade, do mesmo modo, passar para uma comunidade maior e mais elevada o que comunidades menores e inferiores podem realizar é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os seus membros, e não destruí-los nem absorvê-los” (QA, n.79).
Após essa formulação expressa do princípio em análise, outras Encíclicas destacaram a subsidiariedade como decorrência do valor do homem – orientação e limite para a atuação da sociedade e do Estado.
O princípio da subsidiariedade explica e dá as características do Estado contemporâneo, denominado Estado Democrático de Direito.
Não mais o Estado Liberal clássico, em que os direitos públicos individuais foram definidos e respeitados. Não mais o Estado totalitário, hoje, exceção no mundo ocidental, após a deblaque da URSS. Também, não apenas o Estado intervencionista, editor e protetor dos direitos sociais individuais.
Agora, um novo tipo de Estado, que faz atuar o princípio da subsidiariedade, no relacionamento indivíduo/sociedade/Estado, numa perspectiva negativa e positiva. Negativa: o Estado não deve impedir que as pessoas e grupos sociais conduzam suas próprias ações. Positiva: o Estado deve favorecer, estimular, suprir e completar a iniciativa de pessoas, de grupos sociais e da sociedade, quando necessário.
É o que acorre com a Constituição de 1988 (clique aqui), em vários setores.
Assim, por exemplo, a Carta define a competência de União em sentido horizontal (artigos 21 e 22), e dela, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (artigos 23 e 24), no sentido vertical.
Também sobre saúde (artigos 196 e seguintes), educação (artigos 205 e seguintes), cultura (artigos 215 e seguintes), meio ambiente (artigos 225 e seguintes)... A propósito, questão relevante encontra-se no Congresso, qual seja a flexibilidade da legislação trabalhista: diante da globalização da economia, respeitada a Constituição, nas relações de produção, qual norma a ser aplicada, a da C.L.T ou a formulada e aceita pelos sindicatos?
Questão difícil, pois um sindicato de operário de uma distante cidade do sertão não tem o mesmo poder de um sindicato na cidade de São Paulo. Vamos aguardar a solução que será dada pelo princípio da subsidiariedade, inspirado no Cristianismo como fonte externa do Direito.
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*Desembargador federal aposentado, ex-Reitor da Universidade Federal de Uberlândia; professor universitário e autor de diversas obras
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