É certo que o legislador tupiniquim, no que tange a edição de normas relacionadas ao enquadramento típico ligado à tecnologia da informação e comunicação, não caminha com o costumeiro acerto (v.g. recordemos da revisão do tipo penal estampado no art. 154-A, do Código Penal – invasão de dispositivo informático – editado por meio da lei Federal 12.737/12 e revisitado por meio da lei Federal 14.155/21).
Desta vez, não foi diferente. A lei que trouxe à baila um novo delito, com uma forma qualificada, também contemplou algumas discrepâncias técnico-jurídicas que merecem a devida atenção.
Inicialmente, a lei Federal 14.811/24 conceituou como crime a conduta do bullying1 e, a reboque, também, tratou tais práticas em ambiente informático (cyberbullying). De modo geral, o ato de intimidar alguém, de forma sistemática (ações plurissubsistentes), mediante violência física ou psicológica, alcançando uma ou várias pessoas, sem qualquer motivação para tanto, em tese, adequar-se-á ao tipo penal contido no artigo 146-A, da Lei Penal Substantiva2.
Vejamos que, por tratar-se de conduta típica inovadora, sem qualquer figura idêntica em lei penal vigente, estamos diante de uma novatio legis incriminadora.
Dessarte, inaugurando a narrativa crítica, por óbvio, a incriminação de tal conduta, cuja afetação atende mais ao público infanto-juvenil seja na condição de autor do fato ou vítima, reflete um verdadeiro expansionismo do Direito Penal, reafirmando sua posição por meio das agências de controle institucionais, para estabelecer balizas à vista de um controle social robusto3, que muito embora não identifica uma ideal reprimenda sancionadora quando se analisa o preceito secundário da norma penal em desate.
O legislador, nesse prisma, por mais que tenha a boa intenção de conferir uma resposta à sociedade frente aos acontecimentos pretéritos noticiados pela grande mídia – que, sob a óptica da criminologia, estabelece como critério a incidência massiva de algumas condutas para definição de um etiquetamento penal – trouxe uma pena de multa ao delito de intimidação sistemática ou bullying, isto é, uma sanção pecuniária que não afeta a privação de liberdade do sujeito ativo do fato, o que, notoriamente, poderia ter sido disciplinada por outros ramos do direito, que não o Direito Penal, esfera esta que funciona como último bastião do Estado (ultima ratio) para a pacificação dos conflitos sociais.
O reforço de impropriedade do legislador quando conceituou a intimidação sistemática ou bullying como delito foi a sua descrição subsidiária, pois como bem se observa do preceito secundário do tipo penal incriminador, o delito só se aperfeiçoará se “a conduta não constituir crime mais grave”.
É nítido aos leitores, portanto, que o referido comportamento, que ora se enquadra como típico, poderia ser melhor trabalhado e atendido pelas esferas precedentes aos Direito Penal, respeitando, não só aos princípios da subsidiariedade4 e da intervenção mínima5 deste, mas também melhor encaixando os atos ilícitos nas suas esferas devidas.
Noutro giro, a análise crítica não se resume ao distanciamento da seara penal, mas também, a redundância gramatical contida no tipo penal, senão vejamos.
Certo é que o verbo típico contido no preceito primário da norma é “intimidar” uma ou mais pessoas. Intimidar, no ponto, tem como norte o ato de constranger, gerar timidez ou acanhamento de alguém, fazer com que outrem se sinta envergonhado ou amedrontado. Todavia, em complementação dos atos típicos, o legislador inclui o termo: “por meio de atos de intimidação”. Indaga-se: qual o sentido de complementar o verbo típico pelo mesmo ato predito? Veja que a redundância do texto é latente e, por óbvio, não andou bem o legislador, pois, a carga do verbo típico não precisa de maiores complementos ou conceitos, subsistindo, por si só.
Seguindo esse prisma, tem-se outro ponto bastante sensível contido no tipo penal simples (bullying), que poderá gerar repercussão no tipo penal qualificado (cyberbullying), haja vista a inclusão dos atos de intimidatórios “por ações virtuais”.
Ora, quando se incidirá a figura qualificada, cujo próprio nomen iuris já o define diferentemente da forma simples – conforme se observa dos atos intimidatórios realizados por meio de rede de computadores, redes sociais, aplicativos, rede de jogos online ou ambiente digital – ante a existência dos atos intimidatórios por ações virtuais estampado no caput? A evidenciada imprecisão do tipo penal em questão gera severos riscos aos jurisdicionados à luz uma manifesta ausência de taxatividade e assertividade por parte do legislador, conferindo margem a interpretações dúbias, o que, poderá resultar em potencial inconstitucionalidade do artigo 146-A, do Código Penal, em sua completude.
Por derradeiro, é cristalina, também, a falta de proporcionalidade e razoabilidade do legislador na construção dos preceitos secundários da norma penal em apreço, frente a uma modalidade simples que prevê, tão somente, uma pena de multa e, quanto a sua forma qualificada, uma pena de reclusão de 2 a 4 anos, e multa. Ora, como o mesmo comportamento intimidatório, utilizado em ambiente informático, torna-se um delito de médio potencial ofensivo, sem aceite das benesses despenalizadoras ante a superação dos requisitos objetivos e, sua modalidade simples, não imputa, ao menos, uma pena privativa de liberdade, mas pura e simplesmente, uma sanção pecuniária ao sujeito ativo? São pontuais indagações que carecem de um maior esclarecimento por parte do legislador, de modo adequar a norma à sua ótima aplicação pelos operadores do direito.
Logicamente que, a agenda política destinada às condutas ligadas a intimidação sistemática carece de atenção por parte do Estado e da sociedade como um todo, visando a conscientização e inclusão de todos os atores para uma melhor condução do tema, que é de extremo relevo para o bom desenvolvimento das relações e interações humanas.
Todavia, não é louvável, como forma célere de conferir uma resposta à sociedade, destinar ao Poder Legislativo a incumbência de edição de normas penais, divorciadas da técnica legislativa, máxime as exigências legais voltadas para à seara penal, a fim de alcançar um atendimento aos anseios sociais.
Aguardemos as primeiras provocações da matéria, juntamente ao Poder Judiciário, para uma melhor lapidação do que poderá se aproveitar do aludido tipo penal.
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1 Termo originário da terra do Rei Charles (Inglaterra), alcunhado por um professor de Psicologia Sueco – Dan Olweus – que qualificou alguns comportamentos intimidatórios de alunos do ensino médio e fundamental, seja por meio de palavras ou gestos, para com os seus pares, de forma reiterada, de modo a proporcionar prazer aos agressores.
2 Art. 146-A. Intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais, psicológicas, físicas, materiais ou virtuais:
Pena - multa, se a conduta não constituir crime mais grave.
Parágrafo único. Se a conduta é realizada por meio da rede de computadores, de rede social, de aplicativos, de jogos on-line ou por qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real:
Pena - reclusão, de 2 (dois) anos a 4 (quatro) anos, e multa, se a conduta não constituir crime mais grave.”
3 Nesse aspecto, podemos citar que a presente norma possui uma carga maximizada dos critérios atinentes ao panpenalismo o qual, à luz de um neopunitivismo busca fazer valer um direito penal absoluto, com maior alcance e rigorismo das normas penais, agregadas ao braço forte dos interesses políticos, tornando-se verdadeiramente arbitrário e invasivo, descolando-se de um Estado Democrático de Direito.
4 Nesse sentido, são os bons ensinamentos de Leonardo Schmitt de Bem e João Paulo Orsini Martinelli: “Infere-se que o direito penal apenas deve intervir quando os outros meios de controle social – menos gravosos à liberdade pessoal – resultem ineficazes. O legislador deve optar por qualquer outro instrumento de tutela que cause consequências menos intrusivas àquelas que se logram com a arma da pena, mas sempre respeitadas as garantias fundamentais. Com efeito, verificada a capacidade dessas medidas alternativas, o legislador não estaria obrigado a criminalizar. Resultando suficientes e adequados os demais meios de controle social, as ideias de novas leis criminais devem ser abandonadas”. (DE BEM, Leonardo Schmitt. MARTINELLI, João Paulo Orsini. Lições Fundamentais de Direito Penal. Parte Geral. 3ª Edição. Editora Saraiva Jur: São Paulo. 2018, p. 171).
5 Quanto ao Princípio da Intervenção Mínima, o Professor Cezar Roberto Bitencourt nos ensina: “O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a prevenção de ataques contra bens jurídicos importantes. Ademais, se outra forma de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável”. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. Vol. I. 26ª Edição. Editora Saraiva Jur: São Paulo. 2020, p. 127).