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O inadimplemento antecipado do contrato e a proteção ao credor

O artigo discorre sobre a figura jurídica do inadimplemento contratual antecipado – nova modalidade de inadimplemento concebida pela Doutrina e Jurisprudência – e a sua presença e aplicabilidade no contexto jurídico atual.

26/1/2024

I. Introdução

1. Há cerca de dois mil anos, por volta do ano 70 d.C., o Imperador romano Flávio Vespasiano emitiu uma ordem de construção de um grande anfiteatro na cidade de Roma. A ideia do então imperador era que a construção servisse para aumentar a sua popularidade, razão pela qual era de extrema relevância que as obras fossem concluídas com o Imperador ainda em vida. Iniciou-se, assim, a construção do famoso Coliseu, monumento visitado por milhões de turistas, estudantes e historiadores a cada ano.

2. Não se sabe ao certo quem foram os arquitetos e os engenheiros contratados para a obra, mas em razão da complexidade e grandiosidade do projeto, os encarregados pela construção começaram a dar indícios de que o Coliseu não ficaria pronto dentro do prazo acordado com o Imperador Vespasiano. De fato, quando da morte de Vespasiano, o terceiro piso do anfiteatro ainda não havia sido concluído e o Imperador não pôde usufruir, ao menos integralmente, do impacto político da monumental obra em vida.

3. Se a construção do mais famoso anfiteatro romano ocorresse nos tempos atuais, muito provavelmente o caso seria propício ao estudo de conceitos jurídicos variados, tal como o do “inadimplemento antecipado”, que é objeto de exame nesse breve artigo, no qual serão detalhados os requisitos modernos para aplicação dessa teoria, que vem sendo classificada pela doutrina como uma nova forma de inadimplemento contratual.

II. A evolução do conceito de obrigação contratual e a proteção do credor

4. Como se sabe, desde os tempos do Império Romano até os dias atuais, a Teoria do Direito Civil e, sobretudo, a Teoria Geral dos Contratos, passou por diversas transformações, merecendo destaque a compreensão acerca do adimplemento contratual, cuja evolução tornou-a mais ampla e complexa.

5. Ao lado do dever principal, consubstanciado no cumprimento da obrigação ao fim do termo contratual, reconheceu-se a existência de deveres laterais também relevantes para o atingimento do objeto do contrato, tais como os deveres de cooperação e lealdade entre os contratantes. Da mesma forma, a conduta dos contratantes antes, durante e até após o término da relação contratual passaram a ganhar relevância quanto ao atingimento do objeto do contrato.

6. Essas transformações deslocaram o fenômeno obrigacional de uma compreensão meramente estática, segundo a qual entre o nascimento da obrigação e o advento do termo existiria um “vazio obrigacional”, e inseriram a relação contratual em uma perspectiva mais dinâmica e extensa. Passou-se a reconhecer a existência de um dever contínuo de as partes observarem um standard de conduta, calcado, principalmente, nos princípios da boa-fé objetiva e da confiança.

7. O inadimplemento contratual antecipado trata, como a própria denominação sugere, de hipótese em que o descumprimento da obrigação se mostra evidenciado antes mesmo do advento do termo contratual, em razão de um comportamento do devedor – tácito ou manifesto -- contrário ao atingimento da finalidade contratual, tornando evidente que a obrigação ou as obrigações pactuadas não serão cumpridas a tempo e a prestação tardia será inútil ao credor.

8. A questão central que se apresenta, assim, é a seguinte: o credor da obrigação estaria obrigado a se manter inerte, aguardando o advento do termo, para, só então, adotar as medidas cabíveis contra o devedor, em razão de a obrigação ainda ser inexigível? Como conciliar a inexigibilidade da prestação para admitir que o credor adote as medidas cabíveis para proteger o seu crédito?

9. O instituto, que pode servir de especial proteção à parte lesada por um descumprimento prematuro ou evidente da obrigação assumida no contrato, exige a presença de determinados requisitos, que merecem ser analisados com bastante cautela para não se banalizar o seu emprego e aplicação pelos Tribunais judiciais ou arbitrais.

III. Requisitos para aplicação do inadimplemento contratual antecipado                                         

10. O inadimplemento antecipado do contrato é definido pela Doutrina como a modalidade de inadimplemento que decorre de uma manifestação de vontade, de forma expressa ou tácita, por uma das partes da relação contratual, no sentido de (i) impossibilidade ou (ii) recusa ao cumprimento do contrato. Em outras palavras, o devedor da obrigação coloca-se em posição que torna impossível o cumprimento da prestação no termo previsto no contrato.

11. Apesar de não possuir expressa previsão no Código Civil, o instituto foi contemplado no âmbito da (i) Convenção das Nações Unidas sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias – UNCITRAL, em vigor no Brasil desde 2014 (decreto 8.327, de 16/10/14); (ii) nos Princípios UNIDROIT Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais; e, por fim, abordado no (iii) Enunciado 437 da V Jornada de Direito Civil (“A resolução da relação jurídica contratual também pode decorrer do inadimplemento antecipado”).

12. Como destaca a Doutrina, a “vontade de realizar o ato necessário ao adimplemento da obrigação” deve ser percebida ao longo de toda a execução do contrato, e não apenas em seu momento inicial ou no momento de vencimento da prestação. Embora nem sempre isso se verifique na prática contratual, trata-se de exigência do princípio da boa-fé objetiva, consagrado no artigo 422 do Código Civil, que impõe a observância dos deveres de confiança, cooperação e lealdade entre as partes durante todas as fases da relação contratual.

13. Resumidamente, os seguintes requisitos costumam ser identificados pela doutrina e jurisprudência para aplicação desse instituto: (i) o inadimplemento deve ser verificado entre o período de nascimento da obrigação até o momento anterior àquele em que a obrigação deveria ser cumprida; (ii) deve haver recusa (tácita ou expressa) do devedor em adimplir com a obrigação; ou (ii) haverá inconteste impossibilidade de cumprimento da obrigação pelo devedor, ainda que não haja qualquer manifestação sobre o seu desejo de renunciar ao contrato.

14. O primeiro requisito, por ser temporal, costuma ser de simples constatação. Já a recusa pelo devedor, pode ser expressa, quando o devedor informar ao credor, de forma escrita ou verbal, que não pretende ou não pode cumprir a obrigação, ou tácita, quando o devedor praticar ato que, implicitamente, evidencie que a obrigação não será cumprida no termo contratual. Pode-se citar, por exemplo, o caso da construtora que, tendo celebrado promessa de compra e venda de determinado imóvel, coloca à venda o mesmo terreno em que o imóvel seria construído1.

15. Em relação ao terceiro requisito, o inadimplemento contratual antecipado por impossibilidade de cumprimento pelo devedor surge quando a prestação, mesmo antes do termo, será de adimplemento impossível. Exemplos comumente indicados na doutrina são: (i) o esgotamento do prazo para realizar algum ato indispensável ao cumprimento da prestação; (ii) a ausência de recursos materiais necessários à consecução da obrigação; e (iii) a não realização de atos prévios necessários ao cumprimento da obrigação, como a obtenção de uma licença essencial para uma construção.

16. A Doutrina assinala, ainda, que o inadimplemento antecipado do contrato – que não se confunde com a figura do vencimento antecipado da dívida prevista no artigo 333, do Código Civil brasileiro2 – poderá ser afastado quando o devedor comprovar a existência de fundada justificativa para o não cumprimento da avença, ou estiver diante de caso fortuito ou força maior.

17. É importante atentar, todavia, para o disposto no artigo 399, do Código Civil, segundo o qual o devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação mesmo quando a impossibilidade resulte de caso fortuito ou força maior se estes ocorrerem durante o atraso, exceto se provar isenção de culpa ou que o dano sobreviria ainda se a obrigação tivesse sido oportunamente desempenhada.

18. Essas circunstâncias, por óbvio, somente poderão ser analisadas no caso concreto e em cada contratação, sendo importante a análise criteriosa dos requisitos para aplicação do inadimplemento contratual antecipado. Como destaca a doutrina, o instituto não pode se tornar “válvula de escape para que [o credor], arrependido do contrato celebrado, aproveite-se de conduta duvidosa do devedor para, sob a falsa alegação de inadimplemento antecipado, resolver a relação obrigacional”.

19. Por fim, pode existir, ainda, a situação em que, mesmo quando caracterizado o inadimplemento antecipado, o credor opte pela manutenção da relação obrigacional ao invés da resolução do contrato, ainda que modificando o seu objeto. De acordo com o artigo 475 do Código Civil, mesmo presente o inadimplemento antes do termo do contrato, “a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos”.

IV. Aplicação pela jurisprudência

20. Como destaca a doutrina, ainda não há entendimento consolidado sobre o inadimplemento antecipado do contrato na Jurisprudência brasileira. Frequentemente “o julgador faz alusão à teoria do inadimplemento antecipado, mas trata efetivamente de outro instituto (...) o que aponta para certa incerteza na aplicação da figura pelos tribunais brasileiros.”

21. Na realidade, a jurisprudência tem associado a figura do inadimplemento contratual antecipado ao instituto da (i) exceção do contrato não cumprido e à (ii) violação positiva do contrato. No primeiro caso, trata-se do reflexo do descumprimento da obrigação de um contratante em relação à obrigação assumida pela contraparte (no inadimplemento antecipado o que está em jogo é a própria resolução do contrato); já no segundo caso, ocorre o descumprimento culposo de deveres anexos ou laterais ao contrato, sem relação causal necessária com o adimplemento da prestação principal.

22. No julgamento do REsp 1.792.003/SP, porém, o STJ reconheceu expressamente o inadimplemento antecipado de um contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia, por manifesta impossibilidade do cumprimento da obrigação pelo devedor. No caso, o promitente comprador/devedor fiduciante adotou comportamento contraditório ao cumprimento da própria avença, alegando mudança para o exterior e dificuldades financeiras que o impossibilitariam de cumprir o contrato quando do seu termo.

23. Em seu voto Relator, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva pontuou que o inadimplemento antecipado consiste na hipótese em que “um dos contratantes manifesta a intenção de não honrar a obrigação ou pratica atos que tornam impossível o cumprimento da avença, permitindo, assim, a resolução do negócio”. Prosseguindo em seu voto, concluiu pela existência de “manifestação inequívoca da parte quanto à inexecução do contrato, diante de elementos aptos a demonstrar o futuro descumprimento contratual”, deixando evidente “o comportamento contraditório do adquirente, contrário à continuidade da avença”.

24. A fundamentação do voto se baseou nos artigos 71 e 72 da Convenção das Nações Unidas sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias, que preveem expressamente a possibilidade de suspensão ou resolução do contrato quando se tornar evidente o inadimplemento futuro por uma das partes.

25. Além disso, o julgado também mencionou em sua fundamentação outro julgado do STJ, o REsp 309.626/RJ. Nesse acórdão, apesar de não ter expressamente aplicado o instituto do inadimplemento antecipado, o STJ já havia reconhecido a possibilidade de resolução contratual por quebra antecipada das obrigações em promessa de compra e venda. No caso, reconheceu-se o inadimplemento contratual antecipado por parte do promissário vendedor, pois, faltando apenas um ano para o término do prazo, a construtora sequer havia iniciado as obras de construção do prédio a ser entregue.

26. Nos tribunais estaduais também já houve aplicação do instituto do inadimplemento antecipado, embora os julgados geralmente o relacionem com a exceção do contrato não cumprido. Por exemplo, na Apelação 0018443-95.2017.8.19.0002, do TJ/RJ, discutiu-se a resolução de contrato de incorporação imobiliária por impossibilidade do devedor, pois, faltando seis meses para o término do prazo de entrega da obra, a construtora somente havia concluído o preparo do terreno e as suas fundações. Ao decidir a controvérsia, o TJ/RJ aplicou o conceito de inadimplemento antecipado do contrato, mas equiparou a hipótese à exceção do contrato não cumprido.

27. Da mesma forma, o TJ/SP, no julgamento da Apelação 4001612-76.2012.8.26.0100, em que também se discutia a resolução de contrato por impossibilidade do cumprimento da obrigação pelo devedor, acabou recorrendo à exceção do contrato não cumprido.3

28. É importante destacar, contudo, que a exceção do contrato não cumprido se aplica como meio de defesa do contratante prejudicado, que se exime de cumprir a sua obrigação até que o outro contratante adimpla a sua, preservando-se assim o vínculo contratual. Já o inadimplemento antecipado, que é verificado antes do advento do termo, tem como consequência a própria resolução do contrato, se o credor não preferir aguardar o cumprimento da obrigação e cobrar perdas e danos, sendo figura distinta.

V. Conclusão

29. Desde o término do Coliseu, mencionado na introdução a esse artigo, milhares de anos se passaram e a teoria contratual evoluiu para contemplar as diferentes hipóteses de percalços ocorridos ao longo da execução de um contrato. O inadimplemento contratual antecipado, como visto, consiste em uma modalidade de inadimplemento não prevista expressamente em lei e que decorre da conduta, tácita ou expressa, adotada por uma das partes da relação obrigacional contrária ao adimplemento da prestação, revelando a impossibilidade ou imprestabilidade prematura do cumprimento do acordo.

30. O instituto consiste em um mecanismo de proteção ao credor pelo comportamento negligente e/ou desleal do seu parceiro contratual. A jurisprudência, embora já tenha aplicado expressamente o instituto, frequentemente o associa a outros conceitos jurídicos, em especial com a exceção do contrato não cumprido, embora seja possível diferenciar os seus requisitos e efeitos, como visto neste breve estudo.

31. Em todo caso, importante atentar para as circunstâncias fáticas e jurídicas de cada contratação e a natureza das obrigações assumidas pelas partes. Aplicando-se criteriosamente os requisitos do instituto, a teoria do inadimplemento contratual antecipado possui grande utilidade e valia para solução de litígios contratuais em uma perspectiva dinâmica da relação contratual, inspirada pelos princípios da cooperação, boa-fé e lealdade entre os contratantes.

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1 Esta, inclusive, foi a hipótese de inadimplemento contratual antecipado, por recusa tácita do devedor, julgada pelo TJRJ no Proc. nº 2005.001.19441, 8ª Câmara Cível, Rel Des. Luiz Felipe Francisco, j. 13.09.2005.

2 Art. 333. Ao credor assistirá o direito de cobrar a dívida antes de vencido o prazo estipulado no contrato ou marcado neste Código: I - no caso de falência do devedor, ou de concurso de credores; II - se os bens, hipotecados ou empenhados, forem penhorados em execução por outro credor; III - se cessarem, ou se se tornarem insuficientes, as garantias do débito, fidejussórias, ou reais, e o devedor, intimado, se negar a reforçá-las. De modo semelhante, tem-se os artigos 1.425 e 1.426, ambos do Código Civil brasileiro.

3 “Atraso na entrega da obra. Inadimplência da ré configurada. Ocorrência de justa causa para a suspensão dos pagamentos. Aplicação da teoria do inadimplemento antecipado do contrato. Cumprimento do princípio da "exceptio non adimpleti contractus" (...) Responsabilidade da construtora, empresa especializada nessa atividade que sabe (ou deveria) saber programar o cronograma da obra, usando sua experiência, para fixar data prevista para término da obra o mais próximo possível do real.” [3] (sem ênfase no original)

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*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

© 2024. Direitos Autorais reservados a PINHEIRO NETO ADVOGADOS.

Luis Cláudio Furtado Faria
Sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional - CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Mariana Rodrigues da Costa
Associada da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados.

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