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Reforma da tributação sobre o consumo: e a contabilidade tributária?

A tributação sobre o consumo no Brasil gera críticas pela complexidade da legislação fiscal. A Emenda Constitucional nº 132 promoveu mudanças substanciais no Sistema Tributário Nacional, focando aqui nas questões de contabilidade tributária.

26/1/2024

A tributação sobre o consumo no contexto brasileiro tem sido consistentemente objeto de críticas substanciais. Notadamente, destaca-se a problemática associada à complexidade de nossa legislação fiscal, a qual é, em grande parte, atribuída à existência de uma ampla variedade de leis promulgadas por inúmeros sujeitos ativos dos tributos federais, estaduais e municipais.1

Eis que, finalmente, a Emenda Constitucional 132 foi promulgada, efetivando alterações substanciais no Sistema Tributário Nacional, após anos de promessas sobre uma possível reforma tributária.

As alterações são profundas e têm sido minuciosamente discutidas por outros autores da Atlas em uma série de textos dedicados à análise da reforma tributária no Brasil.2

Precisamente por essa razão, escolhemos, neste texto, direcionar nosso foco para as questões relacionadas à contabilidade tributária.

Segundo Paulo Henrique Pêgas a Contabilidade Tributária “representa o ramo da contabilidade cujo objetivo é aplicar e adaptar conceitos e princípios contábeis com a legislação tributária, de forma adequada, simultânea e, principalmente, integrada”.3

Nessa medida, é inegável que o direito tributário e a contabilidade tributária apresentam extensos pontos de interseção, notadamente quando se considera que aos contadores cabe a responsabilidade de refletir, nas demonstrações financeiras das empresas, o impacto econômico dos tributos. Portanto, à medida que o sistema tributário se torna mais complexo, aumenta a dificuldade de compreensão de sua influência econômica nas atividades operacionais das empresas.

Por esse motivo, a Reforma Tributária, amplamente celebrada pela maioria dos operadores do direito devido à promessa de simplificar a complexa tributação sobre o consumo, bem como por uma parcela expressiva de economistas que almejam uma incidência de tributos o mais neutra possível, deveria também ser motivo de comemoração por parte dos profissionais da ciência contábil.

Para ilustrar esse cenário, vamos exemplificar a incidência dos tributos cobrados “por dentro”, como no caso do PIS, Cofins, ICMS e ISS. Suponhamos uma mercadoria com preço líquido de R$ 1.000,00, sujeita à incidência de PIS (0,65%), Cofins (3%) e ICMS (18%)4. O cálculo para compor o preço seria o seguinte:

R$ 1.000,00/(1-0,0365) = R$ 1.037,88

Conforme observado, o cálculo resulta em uma incidência de PIS e Cofins (3,65%) de R$ 37,88. A próxima etapa visa incorporar o ICMS em sua própria base de cálculo. Confira:

R$ 1.037,88/(1-0,18) = R$ 1.265,71

Aplicando a alíquota de 18% de ICMS sobre sua base de cálculo encontramos o montante de R$ 227,83 de ICMS.

Como resultado, temos a seguinte situação:

Preço líquido: R$ 1.000,00

PIS e Cofins: R$ 37,88

ICMS: R$ 227,83

Preço total: R$ 1.265,71

Não é necessário entrar em detalhes sobre a complexidade desse cálculo, especialmente no que diz respeito à transparência da incidência tributária. A abordagem de “cálculo por dentro” faz com que o contribuinte seja informado de que a alíquota do tributo é de 18% (no caso do ICMS), enquanto a alíquota efetiva é razoavelmente mais elevada, sem que o contribuinte perceba a distinção com clareza.

Espera-se que todo esse imbróglio seja solucionado com a Reforma Tributária5. Partindo do mesmo exemplo, porém considerando a incidência de CBS (alíquota de 12%) e IBS (alíquota de 15%)6 além da incidência “por fora” expressamente prevista no inciso IX do parágrafo primeiro do artigo 156-A da Constituição Federal, vamos reexaminar o cálculo:

R$ 1.000,00 x 12%: R$ 120,00

R$ 1.000,00 x 15%: R$ 150,00

Como resultado, temos a seguinte situação, pós-reforma:

Preço líquido: R$ 1.000,00

CBS: R$ 120,00

IBS: R$ 150,00

Preço total: R$ 1.270,00

Novamente é despiciendo tecer longas considerações sobre a simplicidade do cálculo em comparação com a sistemática atualmente em vigor. Inclusive, a transparência proporcionada pela Reforma Tributária permite ao contribuinte visualizar no preço o real encargo tributário, com a coincidência de alíquota nominal e efetiva.

É bem verdade que pode haver opiniões sugerindo que essas questões não têm relação com a ciência contábil, sendo um tema associado à precificação de mercadorias que, teoricamente, não deveria suscitar preocupações entre os profissionais da contabilidade.

No entanto, como mencionado anteriormente, cabe à contabilidade refletir nas demonstrações financeiras a realidade econômica das operações da empresa. Portanto, quanto mais complexa for a incidência dos tributos, maior será o desafio de retratar essa realidade com acurácia.

Basta dizer que no Manual de Gestão Tributária7, da Editora Atlas, que tivemos a oportunidade de organizar e somos um dos Autores, existem dois capítulos8 dedicados não apenas à forma de compor o preço das mercadorias a serem comercializadas, mas também à contabilização dos valores recebidos pelo contribuinte em razão do preço cobrado.

Ademais, devem ser consideradas outras questões correlacionas ao tema e que são igualmente oportunas. Tradicionalmente os tributos cobrados “por dentro” são creditados em conta de “receita”, em razão da compreensão de que fazem parte do preço. Voltando ao primeiro exemplo, a contabilização da venda da mercadoria seria realizada da seguinte forma:

Temos, nesse caso, a seguinte Demonstração de Resultado10:

Por sua vez, considerando o exemplo pós-reforma, a contabilização sugerida poderia seguir o seguinte esquema:

Temos, pós-reforma, a seguinte Demonstração de Resultado12:

Novamente é o notável que o abandono da sistemática de cálculo “por dentro” torna a contabilização dos tributos mais simples, transparente e intuitiva13.

E não é só isso! É importante destacar a questão relacionada à contabilização das aquisições realizadas pelas empresas. Atualmente, há uma intensa discussão sobre quais aquisições geram créditos e quais não concedem esse direito, e, portanto, compõem o custo do estoque do adquirente.

Essas controvérsias acrescentam complexidade às discussões relacionadas à contabilidade tributária, resultando em diversas dúvidas por parte dos profissionais da contabilidade sobre a correta mensuração do estoque e dos ativos relacionados a tributos a serem recuperados. Situações em que as dúvidas sobre o tema levam a estornos, visando expurgar ou incluir custos tributários registrados no estoque, são igualmente comuns, uma vez que a decisão sobre a não-cumulatividade nem sempre é simples.

Estes são outros aspectos que a Reforma promete simplificar, facilitando a vida dos profissionais de contabilidade.

Em resumo, torna-se evidente que a Reforma Tributária, além dos profundos impactos que terá no direito tributário e, consequentemente, no cotidiano dos operadores do direito, igualmente será de grande relevância para os profissionais da contabilidade.

Sem dúvida, espera-se que as promessas de simplificação se concretizem, permitindo que os contadores também se beneficiem desse novo ambiente, que se espera seja muito positivo!

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1 É pertinente rememorar que, além da União Federal, temos 26 estados e o Distrito Federal e 5.568 municípios, o que nos dá uma exata medida do potencial número de leis dispondo sobre PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS

2 Os textos podem ser consultados em https://blog.grupogen.com.br/juridico/c/areas-de-interesse/tributario/reforma-tributaria/

3 . PÊGAS, Paulo Henrique. Manual de contabilidade tributária. 10. Ed. (2ª Reimpr.) – Barueri (SP): Atlas, 2023. Página 17

4 Escolhemos exemplificar considerando uma empresa sujeita à apuração das contribuições pela sistemática cumulativa. No caso de contribuintes sujeito aos PIS e Cofins não-cumulativos, aplica-se as alíquotas de 1,65% e 7,6%, respectivamente, consoante dispõem o artigo 2º da Lei 10.637/2002 e artigo 2º da Lei 10.833/2003.

5 Importante lembrar que a Reforma Tributária será implementada paulatinamente, com período de transição iniciando em 2026 e encerrando em 2032. A expectativa é que em 2033 o novo sistema tributário esteja totalmente em vigor.

6 As alíquotas da CBS e do IBS serão definidas oportunamente, de modo que, nesse momento, utilizou-se as alíquotas de 12% e 15% meramente para fins exemplificativos.

7 Para conhecer mais sobre o Manual de Gestão Tributária acesse: https://www.grupogen.com.br/manual-de-gestao-tributaria

8 Capítulo 05 de autoria de Paulo Henrique Pêgas e Capítulo 20 de autoria de Rodrigo Paiva Souza

9 Valores estimados pera mero efeito exemplificativo

10 Oportuno mencionar que para fins contábeis a Demonstração de Resultados parte da Receita Líquida

11 Valores estimados pera mero efeito didático

12 Reitera-se que para fins contábeis a Demonstração de Resultado parte da Receita, desconsiderando os tributos sobre ela incidentes e que devem ser repassados ao sujeito ativo

13 Para àqueles que desejam aprofundar no estudo sobre o cálculo “por dentro” e “por fora” e suas respectivas contabilizações sugere-se: Capítulo 05 de Autoria de Paulo Henrique Pêgas, componente do Manual de gestão Tributária da Editora Atlas e http://direitoecontabilidade.com.br/631-2/

Fabio Pereira da Silva
Mestre e Doutorando em Controladoria e Contabilidade pela FEA/USP. Especialista em Direito Tributário pela FGV Direito SP e em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-Graduado em Business Management com ênfase em Finanças na UCSD University of California, San Diego. Professor nas disciplinas envolvendo direito tributário, imposto de renda, contabilidade societária e contabilidade tributária na FGV Direito SP, na Fipecafi e no Insper, entre outras. Advogado Tributarista em São Paulo.

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