A apropriação indébita está capitulada como crime no artigo 168 do Código Penal, e consiste, em síntese, na inversão indevida de propriedade alheia. É o caso do advogado que possui procuração para sacar valores pertencentes ao cliente, e que se apropria indevidamente desses valores, agindo como se fosse o real proprietário do bem:
“Tendo a condenação sido embasada nas provas colhidas nos autos, as quais demonstraram que o agente se apropriou de verba trabalhista devida à sua cliente, da qual tinha posse temporária em razão de sua profissão de advogado, bem como que a defesa não comprovou as suas alegações referentes à existência de fato impeditivo da pretensão acusatória, a pretensão de absolvição demandaria o revolvimento fático-probatório dos autos, o que é vedado pela Súmula n. 7/STJ. (AgRg no AREsp n. 2.126.673/DF, relator Ministro Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado em 11/10/22, DJe de 17/10/22.)”
No julgamento do HC 200.939/RS, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 25/9/12, DJe de 9/10/12, onde se analisou a existência de dolo (vontade) na conduta do advogado que se apropriou indevidamente de verba que pertencia ao cliente, o colegiado denegou o recurso, pois entendeu que o extenso lapso temporal existente entre a apropriação indébita e a devolução do bem, é apto a caracterizar a infração penal capitulada no artigo 168, §1º, III, do Código Penal:
“No caso dos autos, o paciente teria se apropriado da quantia pertencente à vítima no mês de dezembro de 2007, tendo efetuado o depósito dos valores a ela pertencentes apenas no dia 10.9.2010, após ela haver formulado duas representações contra ele, uma perante a Promotoria de Justiça da comarca da Espumoso/RS, e outra junto à Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional do Rio Grande do Sul.
Desse modo, tendo transcorrido mais de dois anos entre a consumação da suposta apropriação indevida praticada pelo paciente e a devolução judicial da quantia devida à ofendida, e havendo nos autos notícias de que esta teria tentado reaver o seu dinheiro inúmeras vezes durante este período, não logrando êxito, não há como se concluir, nesta fase processual e na via estreita do habeas corpus, que o acusado não teria agido com dolo.”
Aliás, a entrega voluntária do bem móvel ao garantidor é pressuposto do crime de apropriação indébita. No caso do advogado que se apropriou indevidamente de valores que pertenciam ao cliente, a posse lícita da coisa alheia é caracterizada pela outorga do instrumento de procuração apta a viabilizar o saque de valores depositados judicialmente em nome do cliente.
No julgamento do CC 161.087/BA, relator Ministro Nefi Cordeiro, Terceira Seção, julgado em 24/10/18, DJe de 30/10/18, em que se analisou a conduta onde a apropriação de valores pertencentes a terceiros foi efetivada de forma fraudulenta, ou seja, involuntária, o colegiado entendeu que os fatos se subsumiam ao crime de estelionato, rechaçando a hipótese acusatória que buscava o enquadramento criminal do artigo 168 do Código Penal. Confira trechos do voto exarado pelo eminente relator:
“Com efeito, uma das elementares do crime de apropriação indébita é justamente a posse lícita da coisa, ao contrário do que ocorre, por exemplo, com os delitos de furto e estelionato. Ou seja, é necessário que o acusado receba a coisa legitimamente. Em outras palavras, é pressuposto do crime de apropriação indébita a anterior posse lícita da coisa alheia, da qual o agente se apropria indevidamente.
No presente caso, contudo, o agente não possuía autorização para receber os pagamentos de que se apropriou indevidamente, afastando-se, assim, a elementar referente à posse lícita.
Ademais, o agente mantinha em erro os clientes, mediante o ardil de também se apresentar como cobrador da empresa, tendo em vista que já era conhecido como vendedor, vindo, assim, a obter vantagem indevida, causando a seu empregador/vítima um prejuízo de R$ 36.834,00.
Desta forma, configurado está o tipo penal de estelionato e não de apropriação indébita, consoante narra o Juízo suscitante.”
É importante destacar que o crime de apropriação indébita previsto no artigo 168 do Código Penal é diferente do crime de apropriação indébita previdenciária capitulado no artigo 168-A do Código Penal. Enquanto no primeiro – artigo 168 do CP -, o pressuposto é a posse lícita do bem móvel alheio, do qual o sujeito se apropria indevidamente, na segunda infração – artigo 168-A do CP -, a caracterização do crime ocorre mediante a ausência de repasse à previdência social das contribuições recolhidas do empregado. É caso do patrão que desconta do empregado valores destinados à previdência social, mas não os repassa à autarquia federal.
Na apropriação indébita previdenciária, o pagamento integral do crédito fiscal é causa de extinção de punibilidade, conforme súmula vinculante 24, na apropriação indébita do artigo 168 do Código Penal, o ressarcimento integral dos valores à vítima, antes do recebimento da denúncia, é causa de redução de eventual condenação criminal, conforme estabelecido pelo artigo 16 do Código Penal:
“Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços. (Redação dada pela lei 7.209, de 11.7.84)”
No julgamento do HC 338.840/SC, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 4/2/16, DJe de 19/2/16, a pretensa aplicação do artigo 16 do Código Penal não foi aceita pelo julgador, uma vez que foi constatado que o ressarcimento dos prejuízos à vítima ocorreu de forma parcial e intempestiva. A eminente relatora do caso, com precisão, destacou em seu voto, que a aplicação do artigo 16 do Código Penal pressupõe celeridade e integralidade na reparação integral do dano. Confira trechos do voto:
“No que se refere à alegada violação do artigo 16 do Código Penal, é pacífico o entendimento de que o ato de reparação do dano ou restituição da coisa há de ser voluntário, ainda que não necessariamente espontâneo. Por outro lado, embora não se trate de tese unânime, predomina na doutrina penal brasileira a tese segundo a qual, além de voluntária, a reparação do dano há de ser integral.
Assim, com a devida vênia daqueles que entendem em sentido contrário, a meu ver somente há falar em aplicação da referida causa de causa de diminuição de pena, relativa ao arrependimento posterior se houver a integral reparação do dano ou restituição da coisa, quando a vítima será totalmente ressarcida do prejuízo sofrido.
Saliente-se, em remate, que a previsão legal de índices diversos de redução da pena (de um terço a dois terços) há de ser interpretada em função do momento da reparação ou restituição integral do dano ou coisa à vítima, levando-se em conta a maior ou menor celeridade na respectiva devolução.”
Por derradeiro, na apropriação indébita previdenciária, a jurisprudência tem se manifestado pela não aplicação do princípio da insignificância (AgRg no REsp 1.832.011/MG, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 10/8/21, DJe de 16/8/21). Para a outra hipótese – artigo 168 do CP, a aplicação desse benefício criminal dependerá de análise subjetiva do julgador, afastando-se a aplicabilidade desse princípio ao criminoso contumaz:
“Sendo demonstrada a contumácia delitiva do Agente, o qual é portador de maus antecedentes e reincidente, já tendo sido condenado definitivamente pela prática dos crimes de furto qualificado, tráfico de drogas e apropriação indébita, não é possível o reconhecimento da atipicidade material da conduta. Precedentes. (AgRg no HC n. 789.772/MS, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 27/3/23, DJe de 31/3/23.)”
--------------------------------
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Decreto-Lei nº. 3.689, de 3 de outubro de 1941.
Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
AgRg no AREsp n. 2.126.673/DF, relator Ministro Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, julgado em 11/10/2022, DJe de 17/10/2022.
HC n. 200.939/RS, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 25/9/2012, DJe de 9/10/2012.
CC n. 161.087/BA, relator Ministro Nefi Cordeiro, Terceira Seção, julgado em 24/10/2018, DJe de 30/10/2018.
HC n. 338.840/SC, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 4/2/2016, DJe de 19/2/2016.
AgRg no REsp n. 1.832.011/MG, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 10/8/2021, DJe de 16/8/2021.
AgRg no HC n. 789.772/MS, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 27/3/2023, DJe de 31/3/2023.