Migalhas de Peso

Inelegibilidade no(s) ordenamento(s) estadunidense(s)

Semelhanças e diferenças entre a Disqualification Clause nos EUA e a Lei da Ficha Limpa.

9/1/2024

Nos EUA inexiste um código eleitoral unificado, que valha no país inteiro, como temos no Brasil.  Respeitados os direitos de igualdade formal expressos na 14ª Emenda, bem como alguns poucos requisitos e limitações, cada estado tem autonomia quase irrestrita para legislar sobre procedimentos eleitorais.  São, até certo ponto, soberanos inclusive para determinarem como se dará a eleição federal para presidente e vice-presidente em cada estado.  Podendo estabelecer normas de inelegibilidade, têm competência para vedar a inclusão de certo candidato nas urnas de seu estado.

Este fenômeno ocorre porque a constituição federal dos EUA (doravante chamada de “Constituição”1) estabelece  a doutrina da dupla soberania2 (dual sovereignty doctrine), princípio constitucional que determina jurisdição concorrente entre a união e os estados.  Pode-se pensar nos EUA como tendo 51 ordenamentos: um ordenamento para cada um dos 50 estados; e um ordenamento federal3, que se aplica no país inteiro.  

A própria Constituição se abstém de determinar sua aplicação prioritária nos estados, derrogando o ordenamento estadual apenas no que a suprema corte federal4 (doravante chamada “SCOTUS”5) determinar que seja necessário para a mínima aplicação de direitos fundamentais.  Historicamente, os julgados importantes de SCOTUS sobre matéria eleitoral fundamentam-se nos termos da 14ª Emenda (isonomia), da 15ª Emenda (voto “universal”, para cidadãos homens, mas não para mulheres), da 19ª Emenda (direito de voto para mulheres), da 22ª Emenda (limitação na duração do exercício da presidência) e da 26ª Emenda (direito de voto para cidadãos com 18 anos ou mais).

CONSTITUIÇÃO FEDERAL E ELEGIBILIDADE PRESIDENCIAL, NOS EUA

Considerando como exemplo as eleições presidenciais, que são indiretas, a Constituição estabelece para elegibilidade: três exigências, na cláusula de qualificação (Artigo II, Seção 1, Cláusula 5); e duas limitações (conforme 14ª e 22ª Emendas).  Também dispõe sobre a formação de um corpo deliberativo, o Colégio Eleitoral, composto por delegados (electors6) indicados por cada estado.  Renovado a cada quatro anos, o Colégio Eleitoral é responsável por eleger presidente e vice-presidente.

No caso da presidência dos EUA, a legislação infraconstitucional federal não faz qualquer previsão a respeito de casos de inelegibilidade. As condições de elegibilidade são determinadas em nível constitucional.  

O Artigo II, da Constituição, estabelece que, para candidatar-se à presidência dos EUA, a pessoa deva ter: nascido em um dos 50 estados da união (jus sollis); idade mínima de 35 anos; e residido nos EUA por 14 anos. 

A previsão de inelegibilidade não faz parte da redação inicial da Constituição e só veio a ser incorporada ao documento quando foi promulgada a 14ª Emenda, cuja Seção 3 determina que ficará permanentemente inelegível7 à presidência, entre outros cargos ou funções, a pessoa que praticar insurreição ou rebelião contra a união, ou der apoio a seus inimigos.   Conhecida como “cláusula da desqualificação” (Disqualification Clause), foi promulgada após a Guerra Civil, de forma a impedir que confederados que tivessem traído a União pudessem assumir cargos ou funções no governo federal.

DIREITO ELEITORAL ESTADUAL

Nos EUA, muitos ramos do Direito, cuja legislação é unificada no Brasil, não têm uma justiça “para chamar de sua”.  Este é caso do direito eleitoral: cada um dos 50 estados tem sua própria legislação e precedentes judiciais; existe legislação eleitoral federal e precedentes na justiça federal; há previsões eleitorais na Constituição; e há também julgados da SCOTUS8

É justo dizer que há 51 ordenamentos eleitorais nos EUA.  Alguns estados têm leis semelhantes à Lei da Ficha Limpa brasileira, pelas quais a condenação penal por certos delitos pode gerar efeitos negativos sobre direitos políticos, inclusive impedindo o condenado de concorrer a cargos eletivos.

Nos termos do Art. II, Seção 1, Cláusula 2, da Constituição, cada estado tem direito de indicar (appoint) um número de votos no colégio eleitoral, proporcional ao tamanho de sua população, para eleger o presidente. 

A Constituição deixa a cargo de cada estado “indicar, na forma que aquela legislatura possa determinar, certa quantidade de delegados” para votarem para presidente no Colégio Eleitoral, desde que seja um processo representativo, conforme decisão de SCOTUS em McPherson v. Blacker(1892).  A maioria dos estados  implementam eleições majoritárias estaduais, mas dois elegem seus delegados de forma híbrida majoritária/distrital.  Ou seja, em 48 estados, todos os delegados que representam o estado no Colégio Eleitoral são da mesma chapa.

A Pensilvânia, que envia 20 delegados para o Colégio Eleitoral, adota o modelo “tudo ou nada” (winner-takes-all), como fazem 47 outros estados.  Naquele estado,  ocorre um eleição majoritária estadual, na qual o eleitorado escolhe um dentre vários grupos fechados de 20 delegados, cada grupo representando um candidato presidencial específico. Nos EUA, o candidato pode ser indicado por um partido, mas também pode ser independente. 

Nebraska e Maine, por outro lado, elegem alguns delegados por voto majoritário estadual e outros por preferência distrital, podendo ocorrer de enviarem uma delegação “mista” para o Colégio Eleitoral.

Apesar de cada delegado em regra ter se comprometido10 a, caso eleito, votar em um determinado candidato a presidente, o principio deliberativo do Colégio Eleitoral permite que delegados sejam infiéis a suas promessas eleitorais (faithless electors), votando em candidato diferente daquele pelo qual fez campanha, inclusive em pessoa que não seja candidato. Alguns estados têm leis vedando a prática, que invalidam votos de delegados infiéis, outros condenam a prática, sem estabelecer sanções claras para o delegado infiel. Em 2016, três delegados tiveram seus votos invalidados11 por infidelidade, mas sete (de outros estados) conseguiram descumprir suas promessas eleitorais.

Note-se que, ainda nos dias de hoje, segundo ala ideológica minoritária, mas expressiva, do Partido Republicano, “república” não quer dizer “democracia”.  A eleição presidencial, por meio deste sistema de eleição indireta, às vezes leva à eleição contramajoritária12 do presidente estadunidense.

DECISÕES ELEITORAIS ESTADUAIS E A SUPREMA CORTE FEDERAL

Para participar da eleição geral cada candidato à presidência dos EUA deve atender aos critérios federais estabelecidos na Constituição, mas também às exigências de cada ordenamento estadual, que não poderá criar exigências adicionais ao candidato, mas poderá torná-lo inelegível pelos eleitores daquele estado, caso tenha, por exemplo alguma legislação semelhante à Lei da Ficha Limpa brasileira.  O julgamento da causa ficará a cargo do judiciário estadual, com base no ordenamento estadual. 

Em caso de recurso à corte constitucional federal, como inexiste o princípio de inafastabilidade do judiciário nos EUA, SCOTUS poderá ou não admitir eventual recurso à decisão transitada em julgado na esfera estadual.  Neste caso, emitirá writ of certiorari (ou cert), com base em critérios idiossincráticos de conveniência e de oportunidade, dispensada qualquer fundamentação para aprovação ou não em análise de admissibilidade.

JURISPRUDÊNCIA RELEVANTE

Apesar de todos os estados já terem excluído candidatos presidenciais em pleitos locais, há relativamente poucos casos de cassação de registro por inadmissibilidade, e muito menos ainda de cassação por desqualificação.  Após 1871, quando acabou seu uso para desqualificar confederados da Guerra da Secessão, foi usada poucas vezes13.

Para ilustrar a lógica jurídica adotada pelo julgador estadual, serão examinados dois casos, sem levar em consideração o grau de dominância jurisprudencial da decisão. 

Hassan v Colorado (2012)14

Um dos requisitos para ocupar a presidência dos EUA é ser nascido nos EUA.  O Sr. Abdul Karim Hassan, estadunidense por naturalização, candidatou-se ao pleito de 2012 e teve sua candidatura barrada no estado do Colorado.

Na época juiz da corte de recursos para 10a região, Neil Gorsuch, atual juiz de SCOTUS15, emitiu a opinião da maioria, na qual determinou que “o interesse legítimo de proteger a integridade e funcionamento prático do processo político permite ao estado excluir da votação candidatos que estejam constitucionalmente proibidos de assumir cargo público”.

Berger v. United States , 255 U.S. 22 (1921)16

Durante a Primeira Guerra Mundial, o deputado Victor Berger, fundador do Partido Socialista nos EUA17 foi condenado por atos de espionagem contra os EUA18 e teve negada sua posse na câmara federal (House of Representatives) com base na cláusula de desqualificação.

SCOTUS reverteu a decisão, por impedimento do juiz que o havia condenado por espionagem, e Berger acabou empossado, tendo posteriormente sido eleito e empossado mais duas vezes consecutivas (nos EUA, o deputado federal fica no cargo por dois19 e não quatro anos, como no Brasil). 

State ex rel. White v. Griffin (2022)

A insurreição por alguém que tenha previamente jurado fidelidade aos EUA é a conduta subsumida na cláusula de desqualificação.  Em junho de 2022, o Sr. Griffin foi considerado culpado de insurreição, após ter feito tal juramento, e destituído de seu cargo estatal.  Senão vejamos.

Na condição de comissário do Condado de Otero, no Novo México, estado dos EUA, o Sr. Couy Griffin20, havia jurado fidelidade à constituição federal dos EUA, quando de sua posse, em 2018.  Antes e durante o dia 6 de janeiro, de 2021, agiu em conjunto com terceiros para obstruir o funcionamento do governo, culminando coma invasão do Capitólio para impedir a contagem de votos do Colégio Eleitoral, delito pelo qual foi condenado em março do ano seguinte.

A expressão “insurreição” usada na 14ª Emenda da constituição federal dos EUA não tem definição precisa, deixando a cargo do órgão judicante preencher a norma em branco.  No caso em pauta, o julgador estadual do Novo México estabeleceu que a conduta não precisa ter resultados sangrentos ou alcançar larga escala, nem tampouco ser dotada de alta probabilidade de sucesso em seus intentos.  Para caracterizar-se a insurreição, basta o liame psicológico interpessoal entre múltiplos indivíduos e a necessidade de intervenção das forças de segurança para garantir a execução da lei após atos de insurgência executados ou realizados por estes.  Também constam no rol dos culpáveis aqueles que intencionalmente auxiliam, facilitam ou financiam tais esforços de ilícita oposição ao poder estatal.

Em sua defesa, o Sr. Griffin tentou sem êxito questionar a competência estadual, com vistas a deslocar o julgamento para a esfera federal, com base em precedentes[xxi] dos casos Pritchett v. Office Depot e Fajen v. Foundation Reserve.

Por decisão unânime, a Suprema Corte do Novo México não conheceu de recurso do réu, por falta de preenchimento dos requisitos de admissibilidade: materialidade do suposto prejuízo; ou precedentes favoráveis ao recurso.

Desta forma, o estado do Novo México removeu-o  de função pública, com base na 14ª Emenda, barrando-o de maneira vitalícia de concorrer no estado.  Caso ele venha a se candidatar à presidência dos EUA, este precedente poderia ser usado para impedir que quaisquer delegados fossem votados, que estivessem comprometidos em votar no Sr. Griffin.

CONCLUSÃO

A constituição federal estadunidense estabelece três requisitos de elegibilidade para a presidência dos EUA e um mecanismo de desqualificação, elaborado após a Guerra Civil.  Enquanto existe jurisprudência em todos os estados referente aos requisitos, há pouquíssimos precedentes após 1872 para balizar decisões de desqualificação. 

É incorreto afirmar que o eleitor estadunidense tenha direito absoluto de votar em quem quiser para presidente, já que, além daquele pretenso candidato que tenha sido declarado inelegível para cargo federal por atos de insurreição, tampouco pode votar em pessoa com menos de 35 anos, nascida fora dos EUA, ou que não tenha residido no país por 14 anos.  Da mesma forma, é incorreto que a declaração de inelegibilidade de um pretenso candidato, que não atenda aos requisitos constitucionais eleitorais objetivos, seja ofensiva ao princípio democrático.

_______________

1 Para efeito de desambiguação, as constituições dos estados serão chamadas de “constituições estaduais”.

2 GIL, Antonio F. O. Soberania legislativa, jurisdição e competência concorrentes entre estados e união, nos EUA.  São Paulo: Migalhas, 2024. Disponível em . Acesso em 08-01-2024.

3 A capital, Washington D.C. está sob autoridade do congresso nacional, que aplica localmente a lei federal, no que for compatível.

4 Os estados também têm órgãos judiciários chamados de cortes supremas, em regra a instância máxima estadual. Em Nova Iorque, entretanto, este é o nome das varas de primeira instância, por conta da Constituição de Nova Iorque anteceder a constituição federal por 11 anos.

5  SCOTUS é o acrônimo para Supreme Court Of The United States, Suprema Corte dos EUA.

6 O autor traduziu electors como delegados de forma a evitar confusão com o eleitorado geral.

7 Esta inelegibilidade pode ser levantada por um voto de 2/3 em cada casa do congresso federal dos EUA.

8 A nomenclatura “suprema corte” também é aplicada idiossincraticamente nos judiciários estaduais e municipais dos EUA.  Por exemplo, se chama de Suprema Corte do Estado de Nova Iorque a primeira instância cível daquele estado.

9 US SUPREME COURT. McPherson et al. v. Blacker.  New Haven: LII. Disponível em Acessado em 26/9/2023.

10 Alguns estados permitem o delegado descomprometido (unpledged elector)

11 SCOTUS garantiu a soberania estadual para legislar sobre eventual exigência de compromisso de delegados, em Ray v. Blair (1952), e para garantir a fidelidade eleitoral de seus delegados, em Chiafalo v. Washington (2020).

12  George W. Bush e Donald J. Trump foram eleitos com menos votos do que seus adversários, em 2000 e 2016, respectivamente.

13 https://www.nycbar.org/member-and-career-services/committees/reports-listing/reports/detail/disqualification-clause-history-and-recommendations-for-amendments

14 https://www.ca10.uscourts.gov/sites/ca10/files/opinions/01018907241.pdf

15 https://www.supremecourt.gov/about/biographies.aspx

16 https://caselaw.findlaw.com/court/us-supreme-court/255/22.html

17 https://emke.uwm.edu/entry/victor-l-berger/

18 https://www.govinfo.gov/content/pkg/GPO-HPREC-CANNONS-V6/html/GPO-HPREC-CANNONS-V6-10.htm

19 https://walberg.house.gov/about/how-congress-works

20 https://www.citizensforethics.org/wp-content/uploads/2022/09/D101CV202200473-griffin.pdf

21 https://casetext.com/case/state-ex-rel-white-v-griffin

Antonio Gil
Advogado.

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