Publicada em agosto de 2013, a lei 12.846/13, conhecida como lei Anticorrupção - LAC ou lei da Empresa Limpa “dispõe sobre a responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira” (art. 1º) possibilidade, até então, inédita em nossa legislação.
Antes de enfrentarmos os demais pontos da lei é carecedor seu breve contexto histórico, pois sua aprovação pelo Senado Federal, se deu em momento de grande crise política no Brasil. As manifestações populares conhecidas como “jornadas de junho” realizadas em todas as regiões do país voltaram-se, entre outras pautas, quanto à necessidade de políticas públicas de combate à corrupção e maiores investimentos em educação e transporte. À época, a lei foi tratada como uma ‘resposta’ do parlamento à sociedade brasileira e aos tratados internacionais assinados pelo Brasil.
Passados dez anos desde as manifestações populares e da publicação do texto normativo, identificam-se na lei inovações importantes quanto a relação da administração pública com empresas envolvidas em suas contratações e estímulos à implementação de sistema de conformidade pelas pessoas jurídicas, voltando-se a políticas “cuja prioridade seja a prevenção, o que inclui práticas e ações de integridades, sob a perspectiva do compliance, tanto em instituições públicas, quanto em privadas”1.
Até sua aprovação, as normas brasileiras voltavam-se “ao indivíduo, ao servidor público que comete ilicitudes previstas na lei 8.112/90, em uma perspectiva muito restrita”2, em que, “os resultados evidenciados apontam que as influências internacionais nortearam e impulsionaram a construção da supramencionada lei, cuja proposta prioriza a prevenção, além da detecção, punição e erradicação”3.
Temos que a LAC preencheu uma lacuna no ordenamento jurídico do país ao tratar diretamente da conduta ilícita de corruptores. A exemplo, em seu art. 2º, temos que as pessoas jurídicas que cometerem os atos considerados ilícitos respondem objetivamente, isto é, independemente de dolo ou culpa, no âmbito administrativo e civil. Além disso, “a responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito” (art. 3º), e que “os dirigentes ou administradores somente serão responsabilizados por atos ilícitos na medida da sua culpabilidade” (§2º, art. 3º).
Contudo, está em trâmite no STF o julgamento ADIn 5261, proposta em 2015 pelo Partido Social Liberal - PSL em face do art. 3º, §1º, e das expressões “objetiva” e “objetivamente” contidas, respectivamente, no art. 1º, caput, e no art. 2º da LAC. Sustenta o requerente na ação que, “os preceitos atacados afrontariam os princípios da segurança jurídica (arts. 1º, caput, e 5º, caput e XXXVI, da Constituição da República), da intranscendência das penas (art. 5º, XLV, da CRFB) e dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade (art. 5º, LIV, da CRFB)”.
Se por um lado, aponta-se o interesse do legislador em responsabilizar a empresa que cometer ato corrupto e sanar ilícitos que se tenham produzido nas relações contratuais entre o ente público e a empresa privada, em outra face, o texto legal sofre críticas quanto ao “viés punitivo passível de conduzir a excessos e efeitos colaterais nefastos para o necessário ambiente de segurança e crescimento econômico”4.
A exemplo do que dispõe o art. 6º, parágrafo 5º, quando constatadas tais práticas os atos lesivos são puníveis com estabelecimento de multa, penalidade administrativa e na divulgação da decisão condenatória por parte da empresa que cometeu o ato de corrupção “ [...] na forma de extrato de sentença, a expensas da pessoa jurídica, em meios de comunicação de grande circulação na área da prática da infração e de atuação da pessoa jurídica ou, na sua falta, em publicação de circulação nacional, bem como por meio de afixação de edital, pelo prazo mínimo de 30 (trinta) dias, no próprio estabelecimento ou no local de exercício da atividade, de modo visível ao público, e no sítio eletrônico na rede mundial de computadores”.
Estabelecida que a publicação extraordinária da condenação deve ser feita pela própria organização ré, juristas e empresários criticam que o dispositivo pode ser exageradamente prejudicial para a companhia, dada a necessidade de a empresa admitir publicamente que se envolveu em comportamento corrupto. Atribui-se que, essa divulgação prejudicaria a reputação da entidade, o que pode resultar na perda de oportunidades de negócios e no afastamento de parcerias e fornecedores do mesmo setor5.
As sanções podem ser aplicadas individualmente ou coletivamente a depender do caso concreto e da gravidade do ilícito. No caso das licitações e contratos realizados entre empresas públicas e privadas, a lei rechaça a prática do suborno, financiamento de conduta ilícita em contratos de licitações “inclusive as que resultarem de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária (art. 4º); e alcança também os respectivos dirigentes, com previsão expressa da desconsideração da personalidade jurídica (arts. 3º e 14)”6.
Por estas e outras razões, demonstra-se a importância para que as empresas adotem incentivos à implementação de programa de compliance e governança, ligadas ao cumprimento da norma e demais regulações. Segundo Manzi7, compliance é o “ato de cumprir, de estar em conformidade e executar regulamentos internos e externos, impostos às atividades da instituição, buscando mitigar o risco atrelado à reputação e ao regulatório/legal”.
Assim, voltando-se à prevenção de ilícitos como, lavagem de dinheiro, fraude de documentos públicos e de licitações8, é importante que a companhia realize ações que a permitam estar em conformidade com a legislação vigente. Logo, as questões institucionais, de governança corporativa, se mostram necessárias para a continuidade dos serviços oferecidos, alinhando-se a forma de reforçar a imagem da instituição no mercado. Como os determinados pelo Decreto nº 8.420/15, que trata dos requisitos para a implementação de programas de integridade, com o propósito de identificar e corrigir desvios, fraudes, irregularidades e atividades ilícitas praticadas por entidades jurídicas.
Com igual característica, encontramos no art. 56 do decreto 11.297/22, um exemplo de programa de integridade a ser adotado pelas PJs, vejamos:
“Art. 56. Para fins do disposto neste Decreto, programa de integridade consiste, no âmbito de uma pessoa jurídica, no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes com objetivo de:
- prevenir, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira; e
- fomentar e manter uma cultura de integridade no ambiente organizacional.
Parágrafo único. O programa de integridade deve ser estruturado, aplicado e atualizado de acordo com as características e os riscos atuais das atividades de cada pessoa jurídica, a qual, por sua vez, deve garantir o constante aprimoramento e a adaptação do referido programa, visando garantir sua efetividade.
Assim, entre esses e outros critérios de conformidade estabelecidos, é importante a prévia adoção pelas empresas à implementação e/ou aprimoramento do programa de conformidade. A exemplo, casos em que a companhia decida entrar em um acordo de leniência, o programa de compliance entra como um componente de uma estratégia de redução de danos9.
Com base em dados da Controladoria Geral da União, até agosto de 2023 mais de 18 bilhões de reais foram acordados10 em acordos de leniência entre o órgão e empresas investigadas por práticas lesivas. Nesta esteira, Abel Gomes, Ricardo Campello e Mario Norris11, ao ponderarem que esses dados poderiam ser ainda mais alarmantes afirmam que, “poucas ações foram levadas até o momento ao Judiciário, e na maioria das vezes as empresas, se vendo desprovidas de chances de defesa, têm se conformado com a incidência da responsabilidade objetiva com vistas a aderir ao sistema de julgamento antecipado (Portaria CGU 19/22), que confere os benefícios de redução no cálculo da multa, exclusão do cadastro de empresas condenadas e de não publicação da condenação alegando a possibilidade de fazer uma defesa de mérito que tenda a buscar a efetivação de seus direitos e garantias fundamentais”.
No âmbito da responsabilização administrativa, a LAC possibilitou a criação do Cadastro Nacional de Empresas Punidas - CNEP, atualmente abarcado pelo sistema CGU-PJ. Disposto pelo art. 22º, o cadastro nacional apresenta a relação de empresas que sofreram punições previstas no texto. De acordo com a Controladoria Geral da União - CGU, “o sistema é de preenchimento obrigatório - por todos os ministérios, autarquias e empresas estatais - para cadastramento dos processos contra pessoas jurídicas investigadas por atos lesivos contra a Administração”12 evidenciados pelos princípios da eficiência e transparência da administração pública.
Desta forma, no contexto da prevenção, o desafio mais importante está em fortalecer a compreensão de que o compliance desempenha um papel fundamental na governança corporativa. É importante demonstrar e aprimorar a abordagem preventiva e educativa promovida dentro da organização, ainda que a repressão à corrupção seja reconhecidamente difícil e trabalhosa, - principalmente pelo contexto histórico, político e social enfrentado em nosso país - a fim de que as providências adotadas pela parte privada e o ente estatal devem ser guiadas à condução de um interesse legal.
Além disso, é inegável que a LAC é um importante instrumento para a coibição de atos corruptos lesivos à administração pública diante das mudanças significativas para as empresas no Brasil. Portanto, devemos reconhecer na Lei Anticorrupção seu papel fundamental no âmbito jurídico nacional e internacional ao se aproximar de outras normas e tratados que regem acerca do assunto, onde deve-se dar devida importância aos avanços trazidos em dez anos desde a sua publicação.
1 MACHADO DOS SANTOS GOMES, R.; DE ARAÚJO MIRANDA, R. F. OS CAMINHOS DA POLÍTICA PÚBLICA ANTICORRUPÇÃO E AS INFLUÊNCIAS INTERNACIONAIS: o caso da Lei nº 12.846/2013. Revista da CGU, v. 11, n. 18, p. 17, 2019. DOI: 10.36428/revistadacgu.v11i18.132. Disponível em: https://revista.cgu.gov.br/Revista_da_CGU/article/view/64. Acesso em: 02 set. 2023.
2 MACHADO DOS SANTOS GOMES, R.; DE ARAÚJO MIRANDA, R. F. OS CAMINHOS DA POLÍTICA PÚBLICA ANTICORRUPÇÃO E AS INFLUÊNCIAS INTERNACIONAIS: o caso da Lei nº 12.846/2013. Revista da CGU, v. 11, n. 18, p. 17, 2019. DOI: 10.36428/revistadacgu.v11i18.132. Disponível em: https://revista.cgu.gov.br/Revista_da_CGU/article/view/64. Acesso em: 01 set. 2023.
3 MACHADO DOS SANTOS GOMES, R.; DE ARAÚJO MIRANDA, R. F. OS CAMINHOS DA POLÍTICA PÚBLICA ANTICORRUPÇÃO E AS INFLUÊNCIAS INTERNACIONAIS: o caso da Lei nº 12.846/2013. Revista da CGU, v. 11, n. 18, p. 17, 2019. DOI: 10.36428/revistadacgu.v11i18.132. Disponível em: https://revista.cgu.gov.br/Revista_da_CGU/article/view/64. Acesso em: 02 set. 2023.
4 Disponível em: https://www.lickslegal.com/articles/lei-anticorrupcao-recorde-de-sancoes-vs-dificuldade-na-defesa-das-empresas. Acesso em: 26/08/2023.
5 Disponível em: https://www.projuris.com.br/blog/lei-anticorrupcao/. Acesso em 26/08/2023.
6 PIETRO, Maria Sylvia Zanella D. Direito Administrativo. : Grupo GEN, 2023. E-book. ISBN 9786559646784. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559646784/. Acesso em: 22 de agosto de. 2023.
7 MANZI, Vanessa A. Compliance no Brasil - Consolidação e Perspectivas. Saint Paul, São Paulo, 2008.
8 VERÍSSIMO, Carla. Compliance: incentivo à adoção de medidas anticorrupção. Editora Saraiva, 2017. E-book. ISBN 9788547224011. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788547224011/. Acesso em: 27 atrás. 2023.
9 VERÍSSIMO, Carla. Compliance: incentivo à adoção de medidas anticorrupção. Editora Saraiva, 2017. E-book. ISBN 9788547224011. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788547224011/. Acesso em: 27 atrás. 2023.
10 Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/integridade-privada/acordo-leniencia. Acesso em: 28/08/2023.
11 IPP, Gilson; CASTILHO, Manoel L. Volkmer de. Comentários sobre a Lei Anticorrupção . Editora Saraiva, 2016. E-book. ISBN 9788502630987. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788502630987/. Acesso em: 20 de agosto de 2023.
12 Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/responsabilizacao-de-empresas/sistema-cgu-pj/sistema-cgu-pj. Acesso em 25/08/2023.
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ADI 5261. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4730342. Acesso em: 27/08/2023.
Decreto nº 11.129 de 11 de julho de 2022. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-11.129-de-11-de-julho-de-2022-414406006. Acesso em: 27/08/2023.
Lei nº 12.846/2013. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/
2013/lei/l12846.htm. Acesso em: 20 de agosto de 2023.