A lei 14.754/23, decorrente do chamado de “PL das Offshores e dos Fundos Exclusivos” (PL 4.173/23), foi publicada no dia 13.12.23. A versão oficial não diverge significativamente daquela aprovada pela Câmara dos Deputados em 25.10.2023 e apresentou apenas um veto em relação à versão aprovada pelo Senado em 4.12.23 – art. 21, §7º, que restringia a definição de bolsas de valores e mercados de balcão.
Sabe-se que a lei é um amálgama de tentativas frustradas anteriores (i.e. MP 1.171/23, PL de Conversão 15/23, MP 1.184/23). Conjectura-se que essa combinação de textos é estratégia para suplantar as vedações constitucionais de reedição e de nova proposição em mesma sessão legislativa (Constituição, art. 60, §5º, art. 62, §10, e art. 67).
De todo modo, a lei 14.754/23 versa sobre quatro grandes temas, não apenas dois: (1) a tributação de aplicações financeiras no exterior diretamente detidas por pessoas físicas residentes fiscais no Brasil (arts. 3º e 4º); (2) a tributação contemporânea de lucros de controladas no exterior diretamente detidas por pessoas físicas residentes fiscais no Brasil (arts. 5º a 8º); (3) a tributação relativa a trusts no exterior (arts. 10 a 13); e (4) a tributação de fundos de investimento localizados no Brasil (arts. 16 a 41). Este artigo trata exclusivamente de certos aspectos do segundo tema, isto é, a tributação contemporânea de lucros de controladas no exterior diretamente detidas por pessoas físicas residentes fiscais no Brasil.
De pronto, verifica-se que o termo offshores não é bem empregado para descrever a lei 14.754/23. Isso, porque o Brasil já possui regras de tributação contemporânea dos lucros de controladas e coligadas no exterior, inclusive as localizadas em chamados “paraísos fiscais”. Logo, a nova lei não tem exclusividade em versar sobre offshores.
As Regras CFC constantes da lei 12.973/14 (arts. 76 a 92), contudo, são aplicáveis somente a pessoas jurídicas residentes fiscais no Brasil. Assim, as novas Regras CFC constantes da lei 14.754/23 (arts. 5º a 8º) são complementares, não substitutivas, àquelas outras e preenchem uma lacuna histórica da tributação brasileira, na medida em que alcançam pessoas físicas residentes fiscais no Brasil.
Dadas as várias diferenças mecânicas entre esses subsistemas, no entanto, é apropriado nominalmente distingui-los. Logo, se as novas são Regras CFC-PF, ficam as já em vigência rebatizadas de Regras CFC-PJ, pelo menos para este artigo.
Dá-se um desconto pela terminologia, porque a própria lei 12.973/13 cometeu equívoco em denominar as regras CFC-PJ de “tributação em bases universais das pessoas jurídicas”. O problema está em dar o nome de continente a algo que é conteúdo. A tributação em bases universais (“TBU”, worldwide basis taxation) se dá quando um residente fiscal é tributado na jurisdição de residência em relação a renda auferida no exterior, sendo o seu diametral oposto a tributação em bases territoriais (territorial basis taxation). Naturalmente, regras CFC geram esse efeito quando a renda oriunda do exterior – indiretamente auferida pelo residente fiscal e diretamente auferida pela pessoa jurídica não-residente fiscal – é tributada na jurisdição de residência do residente fiscal independentemente de realização. Ocorre que também há TBU quando o residente fiscal aufere renda diretamente no exterior, por exemplo os próprios rendimentos decorrentes de aplicações financeiras no exterior (também alcançados pela lei 14.754/23, arts. 3º e 4º).
Essa discussão terminológica, contudo, não é mero tecnicismo tributário, pois revela uma significativa distinção entre as Regras CFC-PF e as Regras CFC-PJ. Nos termos do art. 5º, §5º, da lei 14.754/23, o novo regime de tributação é aplicável apenas quando a entidade no exterior (i) esteja localizada em jurisdição de tributação favorecida ou seja submetida a regime fiscal privilegiado ou (ii) apure renda ativa própria inferior a 60% da renda total. Cada uma dessas categorias mereceria um artigo próprio para ser devidamente discutida. Mas, para os presentes fins, basta a conclusão de que as Regras CFC-PF majoritariamente visam a renda passiva no exterior, isto é, aquela composta de royalites, juros, dividendos, etc., e não a decorrente da venda de mercadorias e da prestação de serviços.
Portanto, as novas regras se distinguem das regras CFC-PJ na medida em que estas alcançam ambas renda ativa e renda passiva no exterior sem qualificações percentuais. Paralelamente, o argumento acadêmico de ser impróprio o uso do termo “regras CFC”, ou semelhantes, a esse tipo de subsistema de tributação que alcance renda ativa é tanto menos cabível em relação às regras CFC-PF.
Avançando, as Regras CFC-PF trazem também inovação quanto ao conceito de controle para fins de inclusão contemporânea da renda oriunda do exterior. Pelo art. 5º, §1º, verifica-se controle quando, em relação à pessoa jurídica estrangeira, a pessoa física residente fiscal no Brasil: (i) tiver preponderância nas deliberações sociais ou poder de eleger ou destituir a maioria dos seus administradores; ou (ii) detiver mais do que 50% do capital social, dos direitos à percepção de lucros ou dos direitos de recebimento dos ativos em caso de liquidação.
Sem adentrar nas especificidades de controle indireto e de controle conjunto, observa-se que o legislador essencialmente manteve a definição de controle como função do direito de voto da Lei das S/A (art. 243, §2º) e importou a definição de controle como função do direito sobre capital e ativos das regras CFC-PJ (art. 83). Por outro lado, adicionou mais um elemento à definição de controle, o direito à percepção de lucros.
Sabe-se que esse terceiro elemento, como alternativa expressa aos outros dois, foi objeto de recomendação pela OCDE no Relatório Final da Ação 3 do Projeto BEPS. Tanto que regras CFC anteriores ao Projeto BEPS tendem a apresentar apenas o direito de voto e o direito sobre capital e ativos em sua definição de controle, enquanto que regras CFC que lhe são posteriores tendem a expressamente conter, também, o direito à percepção de lucros em sua definição de controle – ex.: ATAD da União Europeia, artigo 7(1) entitlement-to-profits test. Conjectura-se que isso se deu em contramedida a arranjos que possam dissociar o direito à percepção de lucros dos demais direitos decorrentes da titularidade de participação societária, mas a OCDE não é absolutamente clara nesse sentido.
Idealmente, após configurado o controle, o montante de lucros do exterior a ser incluído na base de cálculo doméstica é calculado em função do montante de dividendos que a pessoa doméstica receberia em uma distribuição hipotética – ex.: Subpart F Rules dos EUA, §951(a). Logo, o direito à percepção de lucros é elemento que tradicionalmente compõe não a definição de controle em si, mas o método de cálculo da inclusão proporcional para fins de regras CFC.
Reconhece-se que, estando esse elemento tanto na definição de controle quanto no cálculo de inclusão proporcional, como parece ser a tendência atual de regras CFC, o risco de dupla tributação tende a zero. Isso, porque este segundo é, efetivamente, o gargalo de combate à dupla tributação neste contexto específico.
Fortuitamente, assim foram desenhadas as regras CFC-PF, cuja regra de inclusão proporcional do art. 5º, §10, III, vale-se do termo “proporção da participação da pessoa física nos lucros da controlada, direta ou indireta, no exterior”. A redação poderia ser melhor, porém, porque é pressuposto não ter havido deliberação para pagamento de dividendos, pelo que a pessoa física residente fiscal, do ponto de vista societário, tem mera participação potencial nos lucros.
De todo modo, essa redação já representa avanço em relação às Regras CFC-PJ. Isso, porque estas, no caput do art. 76 (e em outros dispositivos legais), valem-se do termo “proporção de sua participação em cada controlada, direta ou indireta” sem referência a lucros em uma distribuição hipotética. O termo “participação”, neste caso, remete a titularidade de participação societária, cujo percentual nominal não necessariamente corresponde ao montante de lucros proporcionalmente alocáveis à pessoa doméstica em uma distribuição hipotética.
Em razão desse desarranjo conceitual, existe o potencial de sobretributação, de subtributação e de dupla tributação por multiplicação ficta do total de lucros não-distribuídos, conforme o caso. Disso, portanto, a necessidade de interpretação restritiva do termo “participação” no art. 76 da lei 12.973/23 como função dos lucros que seriam recebidos em distribuição hipotética.
Em que pese a lei 14.754/23 ter acertado na regra de inclusão proporcional, falhou em expressamente prevenir sobreposição de aplicação de Regras CFC-PF e Regras CFC-PJ. Isso, porque ambos esses subsistemas normativos promovem a abordagem individual das entidades no exterior (entity approach), isto é, cada entidade direta e indireta é tratada autonomamente, sem combinação de atributos tributários de entidades localizadas em uma mesma jurisdição (jurisdictional approach/blending) ou em nível global (worldwide approach/blending).
Assim, na situação em que pessoa física residente fiscal no Brasil detém controle sobre pessoa jurídica também residente fiscal no Brasil, esta que, por sua vez, detém controle direto sobre a entidade no exterior, haveria sobreposição: pela literalidade de cada diploma, as Regras CFC-PF se aplicariam em razão do controle indireto e as Regras CFC-PJ se aplicariam em razão do controle direto. Logicamente, a melhor interpretação nunca é meramente literal, especialmente quando gera dupla tributação.
Já em interpretação sistemática, deve-se concluir que o primeiro nível de controle no Brasil, isto é, a primeira pessoa residente fiscal no Brasil que detém controle sobre a entidade estrangeira, em análise “de baixo para cima”, determina qual subsistema deve ser aplicado. Se for pessoa física, aplicam-se as Regras CFC-PF; se for pessoa jurídica, aplicam-se as Regras CFC-PJ.
Veja-se que esclarecimento expresso nesse sentido poderia ter sido facilmente positivado pela lei 14.754/23. Afinal, o próprio art. 86 da lei 12.973/23 determina expurgo em caso de sobreposição das regras CFC-PJ com regras de preço de transferência e de subcapitalização. Bastava, portanto, dispositivo de curta redação prevendo preferência de aplicação conforme o caso, o que se espera venha previsto em nível infralegal.
Sem prejuízo do acima, são ainda relevantes algumas considerações sobre o creditamento de tributo estrangeiro sob o art. 5º, §15, das Regras CFC-PF. Este dispositivo também mereceria estudo exauriente próprio, mas, em suma, prevê o creditamento, no Brasil, do tributo eventualmente cobrado pela jurisdição de residência da controlada sobre os lucros desta (corporate income tax). Correlatamente, eventual retenção na fonte exigida pela jurisdição de residência da controlada quando do pagamento de dividendos não é creditável no Brasil, efeito que é coerente com a isenção de dividendos qualificados sob o art. 5º, §11 (previously taxed income).
Porém, a redação do §15 poderia ter sido mais clara sobre o creditamento de eventual retenção na fonte exigida por uma terceira jurisdição sobre rendimentos auferidos diretamente pela controlada no exterior. Por exemplo, 30% withholding income tax nos EUA sobre certos rendimentos passivos auferidos por uma holding nas Ilhas Virgens Britânicas, esta detida por pessoa física residente fiscal. Essa falta de clareza é especialmente impactante quando a jurisdição de residência da controlada não tributa a renda corporativa, pelo que não haveria oportunidade de creditar essa retenção da fonte já no exterior.
Não obstante, todos os rios correm para o mar. Considerando, portanto, que essa retenção na fonte se daria sobre rendimentos que, em última análise, comporiam os lucros da controlada no exterior, deve-se concluir pela possibilidade de seu creditamento no Brasil (art. 5º, §15, II), sem prejuízo dos limites aplicáveis (art. 5º, §15, IV). Do contrário, os contribuintes podem se valer da eleição de transparência do art. 8º, um check-the-box acanhado, para viabilizar esse creditamento.
Ainda, o art. 5º das regras CFC-PF foi infeliz por não trazer autorização expressa de carregamento do excesso de tributo estrangeiro para fins de creditamento no Brasil em anos posteriores. Havendo autorização para aproveitamento contingenciado do prejuízo acumulado no exterior sob o §14 do art. 5º, semelhante regra de carregamento para créditos de tributo estrangeiro é cabível por coerência sistêmica, se por nada mais.
Foram essas algumas considerações sobre as Regras CFC-PF constantes da lei 14.754/23. Muitas outras considerações podem ainda ser feitas, especialmente por se tratar de legislação nova. Seja como for, é inquestionável que, já para o ano 2024, o IRPF se tornou mais complexo.