O ato de mentir é inerente à humanidade. Boatos, distorções e invencionices, deliberados ou não, fazem parte do cardápio dialogal que os bilhões de cidadãos podem escolher — e, enquanto houver apetite à fala, isso sempre existirá. No entanto, os avanços tecnológicos no meio digital e redes sociais adicionaram um tempero apimentado ao caldeirão: a disseminação em massa. Servidos a grandes milhares de pessoas em pequenas dezenas de segundos, dados falsos e relatos maliciosos tornaram-se comuns nos blogs pessoais, vídeos virais e trocas de mensagens. O efeito disso é a manipulação de narrativas, distorção de fatos e, em última análise, indução a erros perigosos: vacinas passam a conter microchips, mudanças climáticas são desdenhadas e resultados eleitorais são questionados. Se a saúde pública, o meio ambiente e a democracia são ameaçados, então essa dieta de mentiras certamente não é recomendável. Surge, portanto, a necessidade de revisar o livro de receitas.
O direito brasileiro tem um bom histórico com as mentiras: desde 1890, no Código Penal do Império, estão previstos os crimes de falso e estelionato, reformulados no atual diploma de 1940. Tal se faz restrito às velhas mentiras, que agem mais na esfera individual, mas a modernidade virtual favorece a comunicação coletiva. Quando a internet foi popularizada, na década de 1990, o legislador demorou a se adequar: o Marco Civil da Internet só foi aprovado em 2014 e, a lei Geral de Proteção de Dados, em 2018. Mesmo assim, ambas as leis não previram uma forma de lidar com a desinformação em massa. Atualmente, é o PL 2.630 que ocupa as discussões parlamentares sobre o tema.
Proposto no Senado Federal em 2020 e enviado à Câmara dos Deputados no mesmo ano, o projeto tem dois motes: ampliar a transparência na regulação de conteúdos falsos difundidos na internet e responsabilizar aqueles que abusam das aplicações digitais para fins ilícitos. Para tanto, estabelece parâmetros a serem seguidos pelos provedores dessas aplicações a fim de eliminar contas inautênticas — isto é, aquelas que mimetizam usuários humanos com robôs —, assegurar a veracidade das informações divulgadas em larga escala e rotular conteúdos considerados mentirosos. As medidas práticas para alcançar tais objetivos ficam a cargo de cada provedor, mas a falha em atender as diretrizes legais prevê advertências, multas e suspensões.
Não é uma tarefa fácil: a internet é muito ampla e, por muitos, vista como “terra de ninguém”. Fóruns privados e sítios virtuais de acesso anônimo — elementos da chamada Deep Web — são numerosos e facilmente acessíveis, de modo que as redes sociais mais famosas, como o Facebook e o Instagram, são a mera ponta do iceberg. Conteúdos inequivocamente falaciosos podem até ser removidos dessas plataformas, mas escoarão para as profundezas digitais tal como o excesso de óleo impregna-se nas frituras. E com a multiplicidade de provedores estrangeiros e uso de criptografia descentralizada, torna-se difícil — senão impossível — remover toda a gordura trans.
Mais ainda, há de se questionar a capacidade e a índole das autoridades, sejam elas privadas ou públicas. O risco de altas multas e suspensão dos serviços no país não é irrelevante, mas empresas do porte transnacional como a Meta e o Twitter são multibilionárias e não têm o Brasil como único nem principal mercado. Talvez a contabilidade interna desses atores aponte que os lucros advindos dos conteúdos patrocinados, verdadeiros ou não, superam as punições pela desconformidade às diretrizes legais. Por falar em punições, é fato que seu aplicador, elencado no Projeto de Lei como o Poder Judiciário, por mais bem-intencionado que seja, é suscetível a falhas. Juízes e Tribunais podem decidir com parcialidade por conta de raciocínios politicamente motivados — os chamados vieses cognitivos, ao qual todo humano é vulnerável —, ou nem decidir, com a pontualidade que o relógio acelerado da internet exige, assoberbados que estão com suas pesadas cargas processuais.
Isso não significa que o empenho legislativo seja inútil: o direito não pode ignorar o plano fático e validar, por inércia, comportamentos evidentemente nocivos. Some-se a isso o argumento de que a conceituação legal funciona como proteção aos internautas de boa-fé que, por ignorância ou engodo, atuam como agentes cegos na rede de mentiras. Não é a liberdade deles que o legislador busca atacar, e sim a dos grupos que, visualizando muito bem seus objetivos, elaboram meios para desvirtuar o mercado de ideias com postagens atrativas recheadas de desinformação. São esses vendedores de doces envenenados, por assim dizer, que o direito visa, no limite do possível, coibir. Justamente por isso que as discussões parlamentares se preocupam em diferenciar a Liberdade de Expressão, direito essencial e legítimo do cidadão, da mentira deliberada, construída com base na má-fé.
De qualquer forma, é mais prudente não contar com um só caminho. O direito tem mais a oferecer do que a fiscalização e responsabilização. Normas programáticas podem produzir resultados positivos modernizando os Planos Nacionais de Educação para, por exemplo, sofisticar a Alfabetização Digital. Isso ensinaria adultos e crianças sobre o funcionamento da internet ao mesmo tempo que os alertaria sobre seus riscos e trapaças. No âmbito empresarial, normas tributárias podem oferecer estímulos fiscais aos provedores que antes e/ou melhor adotarem boas práticas de informação, como a implementação de ferramentas verificadoras de fatos e remodelação do design de suas plataformas para destacar postagens suspeitas — em uma espécie de reeducação corporativa.
Antenado ao potencial do meio digital, Umberto Eco disse que a internet deu voz aos imbecis. É uma verdade incompleta: ela também deu voz aos mentirosos. O papel do direito pode passar pela punição dos grandes infratores, mas a melhor solução está nos ouvidos. Quando bem treinados, aqueles conscientes sobre a verdade — seja ela científica, histórica ou estatística — não são facilmente manipulados pelos falastrões, por mais robotizados e numerosos que sejam. Nesse sentido, o uso de estímulos jurídicos é como adotar uma dieta: uma vez que um paciente sabe a composição dos refrigerantes, salgadinhos e embutidos, deixa de permitir que o açúcar, sal e colesterol circulem pelas suas cozinhas, dominem seu cotidiano e, mais importante, passem por suas bocas.