O término do Governo Bolsonaro certamente trouxe uma série de controvérsias ao mundo jurídico. O decreto 11.302/22 foi uma delas, que voltou a adotar a tradição até então abandonada pelo Governo Federal em razão de uma política mais austera no combate à criminalidade: a concessão dos indultos natalinos.
O diploma normativo, desde o seu nascimento, foi envolto em diversas controvérsias, desde à concessão de indulto aos agentes de segurança pública envolvidas no Massacre do Carandiru, o que ainda é objeto de controvérsia na ADI 7330/DF, até a previsão do seu Art. 5º, caput, que pareceu ir na contramão do discurso político de recrudescimento na aplicação da lei penal e que terminou gerando certa irresignação nos órgãos de persecução penal, sobretudo o Ministério Público.
Nos termos do texto que foi publicado:
Art. 5º. Será concedido indulto natalino às pessoas condenadas por crime cuja pena privativa de liberdade máxima em abstrato não seja superior a cinco anos. (grifo nosso)
Parágrafo único. Para fins do disposto no caput, na hipótese de concurso de crimes, será considerada, individualmente, a pena privativa de liberdade máxima em abstrato relativa a cada infração penal.
Não é de causar surpresa que o Ministério Público Federal tenha oposto severas críticas ao ato de clemência constitucional, tendo inclusive ajuizado a ADI 7390/DF, ainda pendente de julgamento perante o STF. O dispositivo, em tese, seria apto a extinguir a punibilidade das penas de indivíduos condenados por estelionato, furto simples, posse ilegal de arma de fogo de uso restrito, entre outros.
Segundo o texto vigente, para a concessão do indulto, basta que o apenado tenha sido condenado a crime cuja pena máxima em abstrato não seja superior a 5 anos, que não seja este crime impeditivo, isto é, um daqueles arrolados no Art. 7º, bem como que, sendo condenado em concurso de crimes com um impeditivo, que a pena deste tenha sido cumprida integralmente.
Ocorre que tem sido suscitada uma nova tese pela incidência do indulto aos condenados pelo crime do Art. 33, caput c/c §4º, da lei 11.343/06, o tráfico privilegiado. A alegação é de que, por não se tratar de crime hediondo ou equiparado, bem como em face de haver previsão normativa explícita no sentido de que a vedação do Art. 7º, do decreto não se aplica a esta modalidade de tráfico, tal qual aduz o seu inciso VI, o indulto deveria ser concedido independentemente da pena máxima cominada ao tipo penal.
A princípio, a tese parece ter nascido de verdadeiro malabarismo jurídico, forçando em excesso os limites textuais do decreto presidencial, muito além das diversas técnicas de hermenêuticas que generosamente têm sido aplicadas em outros casos que tramitam perante os tribunais para a adoção de posições mais garantistas. Apesar disso, o Superior Tribunal de Justiça, tanto através da Quinta quanto da Sexta Turma, terminou por acatar a tese e encampá-la em algumas decisões, como no HC 833.433/SP.1
[...] Assim, tendo em vista que, na hipótese, conforme se depreende do acórdão ora impugnado, o paciente encontra-se condenado por incurso no artigo 33, “caput”, c. c. o § 4º, da lei 11.340/06 (e-STJ fl. 11), delito este (tráfico privilegiado) abrangido pelo decreto 11.302 de 22 de dezembro de 2022, em seu art. 7º, inciso VI, como passível de concessão do indulto, não subsiste o requisito objetivo da pena máxima em abstrato invocado pelas instâncias ordinárias como óbice à indulgência (art. 5º do mesmo decreto). [STJ, HC 833.433/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca]
O entendimento sufragado pelo Tribunal, no entanto, parece ir em sentido absolutamente contrário ao que a sistemática do próprio decreto parece estabelecer, motivo pelo qual, data vênia, a posição firmada não parece estar em consonância com o ordenamento jurídico vigente.
O decreto 11.302/22 previu 6 hipóteses de indultos, dentre as quais: i) indulto humanitário (Art. 1º); ii) indulto destinado aos agentes de segurança pública (Art. 2º); iii) indulto destinado a integrantes das Forças Armadas (Art. 3º); (iv) indulto etário (Art. 4º); (v) indulto para condenados a crimes cuja pena privativa de liberdade máxima em abstrato não seja superior a cinco anos (Art. 5º); e (vi) indulto a agentes de órgãos de segurança que foram condenados a mais de 30 anos por crimes não hediondos à época (Art. 6º).
Cada hipótese de indulto possui ao menos um requisito positivo e dois requisitos negativos. Inicialmente, para que o magistrado reconheça a incidência da benesse, deve primeiro aferir a incidência de uma das hipóteses prevista em algum dos artigos do decreto (requisito positivo). Sendo caso de adequação típica do ato, deve proceder a dois juízos negativos (requisitos negativos). Um primeiro a fim de averiguar se a pena a ser indultada diz respeito à condenação por algum crime impeditivo do Art. 7º; e um segundo a fim de aferir se o reeducando, tendo sido condenado em concurso de crimes por algum dos crimes impeditivos, já cumpriu integralmente a respectiva pena deste.
Assim, é evidente que, não havendo ressalva expressa quanto à forma de incidência dos requisitos negativos, são estes cumulativos com os requisitos positivos previstos em cada hipótese de indulto.
No caso do tráfico privilegiado, por exemplo, não há controvérsia quanto à sua não hediondez, sobretudo por ter sido matéria exaustivamente tratada pelo STF, e já exaurida no julgado paradigma do HC 118.533/MG. O próprio Art. 7º, VI, do decreto – cuja previsão é absolutamente desnecessária, diga-se de passagem -, ratifica essa posição, autorizando que o crime seja objeto de indulto. Contudo, esta previsão apenas elimina os requisitos negativos postos pelo diploma normativo, nada modificando quando aos requisitos positivos de cada hipótese.
Sob pena de correr o risco de soar por demasiado óbvio, imagine-se uma situação em que um reeducando, primário, foi condenado unicamente pelo crime de tráfico privilegiado, tendo já cumprido mais de 1/3 de sua pena. Caso tenha apenas 30 anos de idade, não poderá ser beneficiado pela previsão do Art. 4º, caput, uma vez que esta exige ter o reeducando mais de 70 anos. O fato de o Art. 7º, VI, afirmar categoricamente que as vedações dos crimes impeditivos não são aplicáveis ao tráfico privilegiado não implica, automaticamente, na possibilidade de incidência do indulto no seu Art. 4º, se os requisitos supracitados não estiverem presentes. Mutatis mutandi, muito embora o tráfico privilegiado seja excepcionado como crime não impeditivo, por não preencher o requisito objetivo do Art. 5º, caput, isto é, por ter pena máxima de 12 anos e 6 meses, em muito excedente a 5 anos, não pode ser objeto do indulto nesta modalidade, nada impedindo que o seja quanto a outras.
Analisando o decreto sistematicamente, portanto, temos que, embora não haja óbice à concessão de qualquer das hipóteses de indulto por motivo de hediondez do delito de tráfico privilegiado, a medida pode não ser cabível se as hipóteses de incidência do Art. 1º ao Art. 6º não forem perfeitamente subsumidas ao caso em concreto. O fato de o delito ter pena superior a 5 anos não impede a concessão de qualquer modalidade de indulto, mas tão somente às hipóteses em que a pena é o requisito positivo de concessão.
Em outras palavras, embora o condenado por tráfico privilegiado não possa ser beneficiado pelo indulto do Art. 5º, nada impede que o crime seja objeto das outras modalidades de indulto previstas no diploma normativo, haja vista que tanto se pode conceder a benesse por razões humanitárias (Art. 1º), ou mesmo de caráter etário (Art. 4º). Nada obsta, por exemplo, que um apenado portador de doença grave permanente, com severa limitação de atividade e necessidade de cuidados contínuos, condenado por tráfico privilegiado, seja aliviado do pesado jugo da sanção penal. Esta é a interpretação que mais se encontra consentânea com as finalidades constitucionais do indulto e os limites axiológicos postos no texto de clemência.
A não aplicação do indulto previsto no Art. 5º do decreto não possui qualquer relação com uma suposta hediondez do tráfico privilegiado, mas sim ao fato de que o Presidente da República, ao delimitar os requisitos e condições para sua aplicação, quando do exercício de seu ato soberano de caráter discricionário, aprouve excluí-lo, uma vez que estipulou alçada não alcançada pelo tipo penal. A leitura do dispositivo, por sua vez, decorre de exegese notadamente objetiva e que não comporta ilações exuberantes, haja vista sua evidente simplicidade textual.
Parece-nos que o STJ, ao proferir tais decisões, partiu de pressuposto exegético inadequado, uma vez que pareceu considerar as limitações impostas pelo Art. 7º como sendo requisitos autônomos para a concessão do indulto e exclusivas à situação do Art. 5º, caput. No entanto, trata-se de regra geral e requisito concorrente a todas as hipóteses. Portanto, se o obstáculo não subsiste quanto ao Art. 5º, funcionando como requisito autônomo, também não deveria subsistir quanto às demais modalidades, lógica esta que não foi adotada pela corte.
A interpretação adotada pelo STJ, na verdade, terminou por gerar consequências, ao nosso ver, bastante graves, uma vez que suspendeu parcialmente, de forma indevida, a eficácia do Art. 5º, caput, para fins de concessão do indulto, inovando com hipótese não prevista previamente pela norma, restringindo a sua concessão ao simples fato de não ser o delito considerado impeditivo. Ora, se a pena máxima deve ser desconsiderada para fins de indulto, sob o fundamento de que o tráfico privilegiado não é crime impeditivo, isto significa que, para fins de isonomia, qualquer delito que não seja impeditivo, independentemente da gravidade abstrata da pena e por maior que seja a cominação legal da pena feita pelo legislador, deve ser agraciado com o mesmo benefício, o que configuraria hipótese nova não prevista no Decreto, que, por sua vez, é ato privativo do Presidente da República, não cabendo usurpação pelo Poder Judiciário, na forma do Art. 84, XII, da Constituição da República.
Além disso, é válido relembrar ser pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que o indulto presidencial constitui ato de clemência constitucional, subjugado a critérios de conveniência e oportunidade. O benefício não está vinculado à política criminal estabelecida pelo legislativo, tampouco adstrito à jurisprudência formada pela aplicação da legislação penal, muito menos ao prévio parecer consultivo do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, sob pena de total esvaziamento do instituto, que configura tradicional mecanismo de freios e contrapesos na tripartição de poderes.
Sendo, portanto, ato que evidencia exercício de soberania nacional, cabe ao Poder Judiciário analisar tão somente a constitucionalidade da concessão da clementia principis, não havendo como se inserir no seu mérito, sem que extrapole, indevidamente, suas atribuições constitucionais em evidente afronta aos princípios erigidos pela Constituição da República. É o que decidiu o STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.874/DF, de Relatoria do Eminente Ministro Roberto Barroso.
Portanto, a aplicação dos institutos previstos em qualquer decreto presidencial que vise indultar penas, inclusive aqueles do decreto 11.302/22, devem respeitar o ato de soberania do Poder emanador e os limites textuais postos pela redação dos dispositivos.
Isso torna evidente que a decisão exarada em sede de Habeas Corpus pelo STJ incorreu em error in judicando, não apenas por ter extrapolado excessivamente os limites textuais postos pelo decreto presidencial, adotando tese jurídica que simplesmente não pode ser comportada pelo texto publicado, como também terminou por inserir-se indevidamente em mérito privativo do Presidente da República, que não comporta intervenção judicial. Se aprouve ao ente emanador do respectivo decreto excluir o tráfico privilegiado da hipótese do Art. 5º, por ser crime com pena máxima em abstrato superior a 5 anos, não cabe a qualquer tribunal, em sentido diametralmente contrário, criar esta hipótese, porquanto além de violar o mérito do ato presidencial, também usurpa função privativa que não lhe compete, nos termos da própria Constituição.
Deve-se concluir, portanto, que embora seja possível conceder indulto para os condenados por tráfico privilegiado com base no decreto 11.302/22, isto apenas será possível nas situações dos Arts. 1º ao 4º, bem como Art. 6º, excluindo-se o Art. 5º, cuja concessão dependeria de previsão expressa no diploma normativo, que simplesmente não existe.
1 No mesmo sentido: AgRg no HC n. 818.978/SP, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 25/9/23, DJe de 28/9/2023; AgRg no HC n. 820.560/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 30/10/23, DJe de 3/11/23.