Migalhas de Peso

Constrangimento democrático

A frase “o futuro é feminino” pode valer para outros lugares do mundo, mas no Brasil parece que esse futuro está sendo riscado por quem tem o dever político e jurídico de promovê-lo.

29/11/2023

As cortes constitucionais desempenham múltiplos papeis na sociedade democrática contemporânea. Além de suas atribuições típicas de julgar, elas contribuem para a conformação do jogo de Poderes e exercem um relevante papel simbólico.

A questão de gênero é uma das mais sérias num país comprometido com a defesa dos direitos humanos. Em pleno século XXI, dado o reconhecimento da igual capacidade para desenvolver atividades e ocupar espaços na sociedade, é inaceitável que ainda existam disparidades significativas entre homens e mulheres. Exatamente por essa constatação racional histórica, estudos vêm sendo elaborados e políticas públicas promovidas, ambos voltados ao esforço de assegurar que homens e mulheres tenham a mesma chance de acesso a todos os níveis de poder. Não em vão, o prêmio Nobel de economia de 2023 foi atribuído a uma mulher, Claudia Goldin, por suas pesquisas sobre a desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho, e um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU é “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas” (ODS 5), tendo como uma de suas metas “garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública” (Meta 5.5.).

Como principal encarregado de julgar questões relacionadas ao princípio da igualdade, o Supremo Tribunal Federal, além de ter um compromisso com a análise responsável desse princípio, não pode ser símbolo da repulsa às mulheres no espaço de poder.

A questão é ao mesmo tempo técnica e simbólica. Do ponto de vista técnico, a inclusão de mulheres na composição do tribunal não apenas enriquece os julgamentos com perspectivas diversas, mas evita que as decisões sejam empobrecidas pela ausência de um ponto de vista diferenciado. Além disso, a representatividade de gênero no Supremo é simbolicamente crucial. Como tribunal responsável pela compreensão final do princípio da igualdade, sua imagem organizacional não pode ser uma contradição à própria noção de igualdade. Portanto, a presença e participação ativa das mulheres na mais alta corte do país são fundamentais não apenas para a equidade substantiva, mas também para a integridade simbólica da justiça. Recentemente, nos Estados Unidos, foi nomeada a primeira mulher negra para a Suprema Corte1, fato representativo de claro ganho para a democracia americana2.

A saída de Rosa Weber deixa um vácuo simbólico que não poderia ter levado ao preenchimento de sua vaga por um homem. Não se está, no atual cenário, diante de um quadro com 11 pessoas, entre as quais 4 ou 5 cinco são mulheres, e com a saída de uma delas se pondera se o lugar pode ser ocupado por um homem. Está-se diante de um quadro em que, com a saída da mulher, apenas uma entre onze passará a simbolizar as mulheres dentro da instituição. Por mais que o novo integrante seja justo e capaz de proferir votos a favor do direito das mulheres, sua presença não será capaz de cumprir a simbologia igualitária requerida.

Ao contrário do que defendeu o presidente, ele não tinha liberdade para nomear um homem. Essa liberdade existe apenas no esgarçamento de competências. Num linguajar vulgar, o presidente claramente forçou a barra. Uma democracia e uma república plenas não vivem da vontade de seu chefe que até pode agir dentro de competências, mas sem se preocupar com os efeitos futuros de sua decisão e com a legitimidade do que decide, tendo em vista os anseios sociais. As mulheres são 52,65% do eleitorado3. A contemporaneidade clama por igualdade de gênero. O que se vê é um claro constrangimento democrático. A frase “o futuro é feminino” pode valer para outros lugares do mundo, mas no Brasil parece que esse futuro está sendo riscado por quem tem o dever político e jurídico de promovê-lo. Ao não nomear uma mulher para a vaga de Rosa Weber, o presidente deixou a sociedade brasileira a ver o futuro repetindo o passado, e fez do Supremo um museu de grandes novidades.    

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1 “Senado dos EUA confirma primeira mulher negra na Suprema Corte”, disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2022-04/senado-dos-eua-confirma-primeira-mulher-negra-na-suprema-corte

2 “O impacto trazido pela primeira juíza negra do Supremo dos EUA”, disponível em https://www.bbc.com/portuguese/articles/czqevj3j380o

3 “Eleições 2022: mulheres são a maioria do eleitorado brasileiro”, disponível em https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Julho/eleicoes-2022-mulheres-sao-a-maioria-do-eleitorado-brasileiro

Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil. Integra o Observatório de Violência Política contra a Mulher.

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