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Proteção dos bens culturais como dever do Estado

A proteção do patrimônio cultural é um direito fundamental, parte da constituição cultural do país, e não apenas uma questão infraconstitucional. As decisões sobre tombamento, antes discricionárias, hoje demandam fundamentação e motivação, evoluindo para uma abordagem mais justa e racional, alinhada ao Estado democrático de Direito.

27/11/2023

Quando se trata de proteção e promoção dos bens culturais é preciso deixar primeiramente evidenciado que estamos diante de direitos fundamentais - ou num nível maior de direitos humanos - e de constituição cultural ou ordenação constitucional da cultura. Não se trata, portanto, de tema de ordem infraconstitucional porque o patrimônio cultural brasileiro (que antigamente se denominava patrimônio histórico, artístico e turístico) se insere no campo dos direitos sociais, tal como declarado no art. 215 da Constituição Federal de 1988: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais”. São “direitos culturais”, no plural, porque nele se inserem os direitos à educação, à ciência, à cultura - à identidade cultural, às manifestações culturais, de acesso à cultura -, etc, formando um amplo conjunto de direitos públicos subjetivos.

A partir da Constituição Federal de 1988, que trouxe um capítulo específico sobre a cultura dentro do título da ordem social (arts. 215, 216 e 216-A), houve uma notável evolução do tema da proteção do patrimônio cultural no Brasil. Dizia-se, no passado, que o tombamento era uma decisão discricionária – ou seja, com margem ampla de apreciação e livre escolha - dos agentes políticos nas três esferas de governo. Aproximava-se quase da arbitrariedade, tamanha a dimensão dessa liberdade de escolha porque o titular de cargo político poderia dizer sim ou não tal como o imperador romano na arena para salvar ou não o gladiador derrotado (pollice verso). Atualmente, no entanto, isto mostra-se um entendimento antigo e completamente superado. Houve um avanço civilizatório notável desde que Hely Lopes Meirelles tratou com muita propriedade do assunto há mais de meio século.

2 Em primeiro lugar, a questão de ser decisão discricionária ou vinculada qualquer decisão protetiva do patrimônio é uma falsa questão: falsa questão em que escapa o essencial. Isto porque os atos administrativos, notadamente aqueles que interferem com direitos fundamentais (no caso, a propriedade), precisam ser fundamentados e a decisão de tombar vincula-se à fundamentação, ou melhor, à sua motivação que é a explicitação lógica e racional dos motivos. O Direito Administrativo em evolução (título de livro da Profa. Odete Medauar), desde há muito tempo, exige a motivação dos atos administrativos exatamente como um freio ao arbítrio desenfreado do agente público, num certo sentido absolutista que contraria por completo a ideia de Estado democrático de Direito.

Em havendo fundamentação, explicitação dos motivos de proteger feita por órgão técnico legalmente constituído, o agente político não tem mais o poder - arbitrário - de concordar ou discordar: só se ele tiver argumentos sólidos para tanto e que possam ser validamente opostos. Como diz a lei federal que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal (lei 9.784/99), “a motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato” (motivação aliunde).

Este princípio da motivação, hoje amplamente aceito e respeitado na doutrina e na jurisprudência, também está inscrito no art. 111 da Constituição do Estado de São Paulo: "A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência". Ele é um corolário da transparência democrática, que ocorre na indicação dos motivos de fato e de direito do ato administrativo, e, logo, na possibilidade de controle do ato por quem se sentir atingido.

Quem talvez melhor explique a compreensão atual da limitação da discricionariedade seja a Profa. Odete Medauar, que escreve em tópico referente à “conotação atual do poder discricionário”:A discricionariedade significa uma condição de liberdade mas não liberdade ilimitada; trata-se de uma liberdade onerosa, sujeita a vínculo de natureza peculiar. É uma liberdade-vínculo. (...) O poder discricionário se sujeita não só às normas específicas para cada situação mas a uma rede de princípios que asseguram a congruência da decisão ao fim de interesse geral e impedem seu uso abusivo” (Direito administrativo moderno, 18ª ed., 2014, p. 129). Veja-se que aquela expressão densa de significados - “liberdade-vínculo” - aponta para os princípios, dentre eles a motivação que consta no processo que gerou o ato.

Portanto, se um agente político, como um prefeito, nega proteção a algum bem a respeito do qual o órgão técnico de assessoramento cultural afirma, em laudo técnico (laudo patrimonial) aprovado por unanimidade, a necessidade de preservação como portador de valor histórico, ele, agente, necessariamente terá de explicitar os motivos – e o Poder Judiciário poderá, numa demanda, sopesar os argumentos: porque estamos tratando de direitos fundamentais: a proteção dos bens culturais são garantia dos direitos sociais de natureza cultural.

3. Em segundo lugar, o tombamento não é ato próprio de agente político mas de corpo técnico colegiado de defesa do patrimônio nas diferentes esferas de governo. O político, eleito pelo povo, atua por razões políticas, que podem ser inconfessáveis. Já o corpo técnico tem que se pautar por motivos de outra natureza. Assim, nem na União, nem no Estado e nem no Município de São Paulo - para indicar apenas alguns entes políticos brasileiros - o ato de proteger depende do presidente, do governador ou do prefeito, agentes políticos. Isto porque não se trata de decisão que envolva oportunidade e conveniência - mas de garantia de direitos culturais, o que é muito diferente porque o registro é outro. Portanto, não se pode atribuir ao agente político - que toma decisões políticas como a iniciativa das leis, a sanção, a chefia da máquina administrativa, a nomeação dos cargos em comissão - medidas que podem esconder interesses obscuros, como compromissos eleitorais.

Assim, por exemplo, não caberá ao agente político a aplicação de uma multa por violação à ordem tributária, num processo tributário (o que cabe apenas a funcionários de carreira), também não pode caber a análise da proteção do patrimônio cultural, num processo de competência do órgão patrimonial. Os campos políticos e técnicos são diferentes, distintos e podem apresentar conflitos entre si: o agente político não quer preservar certo bem porque seu proprietário é correligionário dele e a preservação limita a propriedade. Tanto assim que no governo federal foi criado em 1937 o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN (criado como SPAHN - Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), autarquia que é responsável pela preservação do patrimônio incluindo o tombamento de bens culturais. O tombamento é ato de reconhecimento de qualquer bem, material ou imaterial, como portador de valor histórico ou cultural. O tombamento meramente reconhece, atribuiu ou declara valor, mas é importante ressaltar que há outras formas dessa atribuição e, recentemente, o STJ entendeu que a punição para quem destrói um bem cultural não depende do prévio tombamento.

No Informativo do STJ, registra-se que “o ministro Sérgio Kukina explicou que, nos termos do artigo 216 da Constituição Federal, o tombamento não é a única forma de proteção do patrimônio cultural, de modo que a utilização da ação civil pública para a preservação de construções de valor histórico não está condicionada à existência de tombamento, sendo suficiente que o bem tenha os atributos que justifiquem a sua proteção. Ainda assim, o relator destacou que, conforme apontado pelo TJMG, embora os imóveis não estivessem efetivamente tombados quando foram demolidos, já tramitava naquela época o processo administrativo para o tombamento – sobre o qual a igreja foi notificada –, e os imóveis estavam protegidos por decreto de intervenção provisória”.1

O REsp é o 1.690.956 (j. em agosto de 2023) e diz com clareza: se o bem tem os atributos que justifiquem sua proteção, ela deve ser feita, mesmo sem ato formal de tombamento, como foi o caso, porque, como dito, se trata de proteção de bens culturais que garantem os direitos culturais - que são fundamentais para toda a comunidade, para afirmação da de sua identidade cultural, de “pertencimento” ao lugar. A proteção dos bens culturais é, sem dúvida, de interesse público primário, ou seja, referente ao bem coletivo: é o tipo de interesse público que se encontra no princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse particular – e daí a indisponibilidade daquele.

 Assim, tanto é verdade que a proteção dos bens culturais não cabe, arbitrariamente, ao agente político, que a Constituição determina: “O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro”. Destaque-se a colaboração da comunidade porque os conselhos patrimoniais, nas diferentes esferas da federação, são conselhos de participação popular, incluindo técnicos e cidadãos preocupados com a preservação da memória coletiva, com os bens portadores de referências à cultura, à história, à identidade. Além disso, a própria ação popular pode ser utilizada por qualquer cidadão para proteção “ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural” (art. 5º/LXXIII da CF).

A Constituição não quer que o tema da proteção do patrimônio cultural fique apenas a cargo do Poder Público – como a política econômica ou “matéria financeira, cambial e monetária” (art. 48/XIII da CF) – porém a comunidade é chamada a tratar dele, seja por intermédio de conselhos técnicos de assessoramento, com participação popular, seja por intermédio do cidadão singularmente considerado. É um tema que, por sua própria natureza, remete às fontes do sistema democrático, reclamando a participação direta ou semidireta do povo. 

4. Em terceiro lugar, o tombamento e o "inventariamento", dentre outras, são medidas de garantia de direitos culturais, como está na Constituição Federal. O art. 216/§ 1º da CF diz, em sua inteira redação: "O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação". Veja-se que o tempo do verbo é imperativo: promoverá e protegerá, entendidos como ordem, como mandamento, como determinação. Em suma, como dever, para atendimento das finalidades – e o desvirtuamento da finalidade “suscita o vício do desvio de poder ou desvio de finalidade” (Odete Medauar, op. cit., p. 148).

Por se tratar de proteção de direitos culturais, que são expressão de direitos fundamentais, eles devem ser garantidos por todos os “poderes” da República (Legislativo, Executivo e Judiciário), de todas as esferas de governo (União, Estados e Municípios – v. art. 23/III da CF). Em outras palavras, em havendo fundamentação sólida, não pode haver negativa de proteção, porque isso, como diz o professor José Afonso da Silva, é um "poder-dever" da Administração. Lembrando da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e de outros diplomas internacionais, o mesmo ilustre professor primeiro define o que é “direito à cultura”: é um direito constitucional fundamental que exige “ação positiva do Estado, cuja realização efetiva postula uma política cultural oficial” (Ordenação constitucional da cultura, 2021, p. 48).

Em seguida, ensina que dentre os direitos culturais reconhecidos na Constituição insere-se o “direito-dever estatal de formação do patrimônio cultural de formação do patrimônio cultural brasileiro e de proteção dos bens de cultura – que, assim, ficam sujeitos a um regime jurídico especial, como forma de propriedade de interesse público” (op. cit., p. 52). Nem se diga, diante desse último ponto, que o ente público que protege teria o dever de conservação: o STJ, também em 2023 já afirmou, com base na Súmula 652 - referente à responsabilidade por danos ambientais, e o ambiente tem seu aspecto cultural -, que a “execução é subsidiária”.

No Informativo do STJ, num caso de imóvel da União, tombado, em Santa Catarina, cedido ao Município de Criciúma, registra-se: “De acordo com Assusete Magalhães, a solução da controvérsia passa por critérios definidos na Súmula 652 do STJ e já consolidados na jurisprudência da corte. Assim – prosseguiu a ministra –, em caso de omissão no dever de fiscalização, a responsabilidade civil ambiental solidária da administração pública é de execução subsidiária (ou com ordem de preferência). Amparada pela doutrina, a relatora lembrou que a definição de patrimônio cultural se insere em um conceito amplo de meio ambiente, o que torna o entendimento sumular adequado ao caso em julgamento. ‘Além de assegurar mais de uma via para a reparação do direito difuso" – concluiu Assusete Magalhães ao dar provimento ao recurso da União –, esse entendimento ‘chama à responsabilidade primária aquele que deu causa direta ao dano, evitando que a maior capacidade reparatória do ente fiscalizador acabe por isentar ou até mesmo estimular a conduta lesiva’"2

De fato, tombamento é limitação à propriedade decorrente da declaração da existência de valor cultural no bem considerado – e não desapropriação. Daí porque ele não impede, por exemplo, a exploração econômica ou a locação para qualquer fim. Assim, a manutenção e conservação cabe, prioritariamente, ao proprietário do bem e não ao ente que tombou ou protegeu. Como bem disse a Ministra, entendimento diverso seria estimular a conduta lesiva que se quer evitar: o efeito seria contrário.

5. Portanto, diante do exposto acima, verifica-se que a proteção dos bens culturais no Brasil tem passado por enorme evolução, sempre em garantia dos direitos culturais, e não pode mais ser pensada como ato discricionário do agente político que decide o que quiser, quando dizer, como era há 50 anos atrás. Como escreve o Prof. José Afonso, “a essência do bem cultural consiste na sua peculiar estrutura, em que se fundem, numa unidade objetiva, um objeto material e um valor que lhe dá sentido”, ou, como diz Miguel Reale, suporte e significado (op. cit., p. 26). A apreensão desse “sentido” não é ato de natureza “política” (no sentido menor do termo), ou melhor, ato de agente político, que depende das circunstâncias do momento, mas decorre de um processo técnico, fundamentado, no qual se explicita esse sentido para a comunidade onde o bem se insere – o que gera um dever do Poder Público, que pode e deve controlar apenas a legalidade do processo como, por exemplo, o respeito ao contraditório.

A cabeça do art. 216 da Constituição Federal enuncia com precisão:  “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”. Veja-se, aqui novamente, a dicção do texto não deixa margem para dúvida: constituem, ou seja, integram e integram já nosso patrimônio cultural todos esses bens, dependendo apenas, em cada caso, da atuação concreta dos órgãos técnicos de proteção ou conselhos do patrimônio, conforme o ente federativo, com eventual participação dos agentes políticos (v., por exemplo, a lei 10.032/85 do Município de São Paulo, que a dispensa). Ou ainda do cidadão, qualquer cidadão, para promover sua proteção mediante acionamento do Poder Judiciário. Afinal, “toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade” (art. 27.1 da Declaração Universal).

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1 Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/09082023-Mantida-condenacao-da-Igreja-Universal-a-pagar-mais-de-R--23-milhoes-por-demolir-casaroes-historicos.aspx.

 Disponível em:https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/14082023-Obrigacao-da-Uniao-em-reparar-danos-ao-patrimonio-cultural-cedido-e-subsidiaria.aspx.

José Roberto Fernandes Castilho
Professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura da FCT/Unesp.

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