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Inteligência artificial e autoria: breve análise da legislação internacional e o PL 2338/23

A lei de Direitos Autorais no Brasil é de 1998, e além de desatualizada em diversos sentidos, não pode regular os avanços tecnológicos das décadas futuras.

23/11/2023

O avanço da inteligência artificial representa uma das maiores conquistas tecnológicas das últimas décadas, dada a sua capacidade singular em aprimorar as habilidades humanas em diversas áreas do conhecimento. Seja na medicina, educação ou na comunicação – vide Chatbots –, a presença crescente dessa tecnologia está se tornando parte natural do nosso cotidiano. No contexto do direito autoral, emergem discussões sobre a autoria de imagens, músicas e vídeos gerados por algoritmos, cuja base de treinamento é composta por obras disponíveis na internet.

Pesquisas mostram que 59,5% dos artistas usam IA em seus projetos1. Grandes figuras do cenário mundial, já falecidas, são “ressuscitadas” em obras criadas pela inteligência artificial, como exemplo a recriação da voz de Fred Mercury, ou a produção de obras de arte inspiradas em Vicent Van Gogh.

O grande questionamento jurídico que surge é: qual a interferência dos direitos autorais em obras produzidas por inteligência artificial?

Mesmo com a inexistência normas concretas que possam responder esta questão, alguns países realizam debates substanciais, com auxílio do ordenamento jurídico existente e entendimento doutrinário, adotando posicionamentos que nos permitem refletir e até mesmo projetar como essa tecnologia pode ser enquadrada. Trata-se, contudo, de uma discussão demorada, que necessita de estudos, debates e entendimento técnico. 

Recentemente, a justiça dos EUA determinou que as artes geradas por IA não podem ser protegidas por direitos autorais. Segundo o entendimento da juíza Beryl A.Howell, “é correto afirmar que a autoria humana é uma parte essencial de uma reivindicação de direitos autorais”. Para ela, as obras criadas por IA's, mesmo que tal tecnologia seja produzida por humano, não são produzidas por uma pessoa física2.

No caso, o especialista em inteligência artificial Dr. Stephen Thaler buscava o registro de sua obra “A Recent Entrance to Paradise”, criada por seu algoritmo da inteligência artificial, chamada de Creativity Machine (Máquina de Criatividade). 

O tribunal seguiu o mesmo entendimento do Escritório de Direitos Autorias dos Estados Unidos (USCO), para o qual só se pode atribuir direitos autorais a obras de um autor humano. Inclusive, a US Copyright Office está conduzindo um estudo, que busca “questões de direitos autorais levantadas pela inteligência artificial generativa (IA). Este estudo irá coletar informações factuais e opiniões políticas relevantes para as leis e políticas de direitos autorais. O Escritório usará essas informações para analisar o estado atual da lei, identificar questões não resolvidas e avaliar áreas potenciais para ação do Congresso”3.

Em Portugal, o entendimento é de que obras produzidas pelas IA's são de domínio público, já que o país não possui uma legislação que define a autoria dessas obras, portanto, as inteligências artificiais não seriam beneficiárias do recebimento econômico obtido por quem comandou4.

No Reino Unido, a “UK Copyright, Designs and Patentes Act 1988”, confere direitos autorais para obras produzidas por computador. O texto revela que “no caso de uma obra literária, dramática, musical ou artística gerada por computador, o autor deve ser considerado a pessoa por quem os arranjos necessários para a criação do trabalho são realizados5. Portanto, a autoria pode ser admitida a quem possibilitou a produção ou a quem coordenou a obra.

A China instituiu uma nova regulação para a criação de conteúdo por inteligência artificial, para dar flexibilidade e impulsionar diversos setores. O entendimento do país é o de que “todos os programas de IA devem ser treinados com dados que não violem direitos de propriedade intelectual de terceiros, sendo necessária a obtenção de consentimento das pessoas cujas informações são utilizadas para treinar esses sistemas6.

Nesse sentido, o tribunal chines, contrariando as decisões e entendimentos pelo mundo, reconheceu que a empresa TENCENT, ao utilizar a IA “Dreamwriter”, responsável por desenvolver artigos com base em dados e algoritmos, possui direitos autorais de seus artigos escritos7. No entanto, não foi definido se este entendimento vale para quem produzir obras deste tipo, ou apenas para casos específicos. 

No Brasil, a legislação nacional aborda o tema nos artigos 7º e 11º da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/98), definem que: 

Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:

(…)

Art. 11. Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica.

(…) 

O termo “criações de espírito” torna a definição muito subjetiva, porém, a jurisprudência define autor como detentor de direitos morais como pessoa física, atribuindo poucas exceções para pessoas jurídicas. Neste sentido, pela definição legal, pode-se concluir que não há proteção para obras criadas por inteligência artificial no Brasil. 

Segundo entendimento da conselheira do Conar, Andressa Bizutti, a regulamentação do direito autoral na criação de conteúdos por IA's, a partir do desenvolvimento próprio da inteligência, deve se tornar de domínio público automaticamente, e defende que o Brasil adote o modelo Europeu8. Algumas correntes entendem que considerar obras produzida por IA's como domínio público seria um desestimulo a diversos setores da tecnologia, que não poderiam explorar a criação comercialmente. 

O PL 2338/2023, dispõe sobre a Inteligência Artificial no Brasil, elaborado conjuntamente com Coordenações-Gerais de Tecnologia e Pesquisa de Relações Institucionais e Internacionais, em colaboração com a ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados), que tem por iniciativa a atribuição a autoridade o protagonismo na regulação da IA, no que se refere a proteção de dados pessoais9.

Os principais pontos do projeto de lei são referentes a importância de centralizar a tecnologia na pessoa humana, o respeito aos direitos humanos e aos valores democráticos, a privacidade, a proteção de dados e a autodeterminação informativa: justiça, equidade e inclusão: transparência, explicabilidade, inteligibilidade e auditabilidade10.

Além de abordar pontos gerais, os mais complexos são abarcados pelo projeto apresentado no Senado, como o entendimento e diferenciação de quem é fornecedor de sistema IA, um operador de sistema, um agente IA e uma autoridade competente, definição dos direitos dos usuários, a exigência da avaliação prévia por parte dos operadores de IA, a classificação de riscos dos modelos de IA, além da adoção de medidas de segurança10.

De forma mais específica, o PL 4.025/23, proposto na Câmara pelo deputado Marx Beltrão, propõe que as imagens de pessoas falecidas só possam ser manipuladas mediante autorização expressa das pessoas, ou de parentes próximo, caso seja falecida11.

O grande ponto a ser discutido é: a existência das IA's e a produção de obras são condicionados a criação e comando de humanos. De qual forma poderíamos definir a influência da máquina na obra? O que seria de direito de quem produziu a obra? O que seria de direito para quem produzia a IA que resultou na obra? 

São diversas perguntas que não possuem respostas concretas. Fato é que, de forma técnica e racional, os debates precisam ser realizados, na área tecnológica e do Direito, definindo parâmetros que possam ser flexíveis, tanto para quem cria a tecnologia, quanto para quem opera. A lei de Direitos Autorais no Brasil é de 1998, e além de desatualizada em diversos sentidos, não pode regular os avanços tecnológicos das décadas futuras.

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1 Disponível em: https://press.dittomusic.com/60-of-musicians-are-already-using-ai-to-make-music. Acesso em 19/11/2023.

2 Disponível em: https://www.politico.com/news/2023/08/21/ai-cannot-hold-copyright-federal-judge-rules-00111865. Acesso em 19/11/2023.

3 Disponível em: https://www.copyright.gov/policy/artificial-intelligence/. Acesso em 20/11/2023.

4 Disponível em: https://codaip.gedai.com.br/wp-content/uploads/2021/11/1_A-autoria-das-obras_Pedro-de-Perdigao-Lana.pdf. Acesso em 20/11/2023.

5 Disponível em: https://www.gov.uk/government/consultations/artificial-intelligence-and-ip-copyright-and-patents/outcome/artificial-intelligence-and-intellectual-property-copyright-and-patents-government-response-to-consultation. Acesso em 20/11/2023.

6 Disponível em: https://www.mundoconectado.com.br/noticias/china-introduz-nova-regulacao-para-conteudo-criado-por-inteligencia-artificial/. Acesso em 20/11/2023.

7 Disponível em: https://www.ecns.cn/news/2020-01-09/detail-ifzsqcrm6562963.shtml. Acesso em 20/11/2023.

8 Disponível em:  https://www.jota.info/legislativo/conselheira-do-conar-defende-que-brasil-adote-modelo-europeu-na-regulacao-de-ia-04102023. Acesso em 20/11/2023.

9 Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/anpd-publica-analise-preliminar-do-projeto-de-lei-no-2338-2023-que-dispoe-sobre-o-uso-da-inteligencia-artificial. Acesso em 21/11/2023.

10 Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157233. Acesso em 21/11/2023.

11 Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2380982. Acesso em 21/11/2023.

Rodrigo da Costa Alves
Formado em Direito pela Universidade de Brasília e especialista em Direito da Proteção e Uso de Dados pela PUC Minas. MBA em Data Protection Officer pelo IESB.

Gilson Araújo Costa
Graduando em Direito pela Universidade Católica, estagiário no escritório Sarubbi Cysneiros Advogados.

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