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A edição da súmula 658 do STJ e os novos contornos do ICMS

O STJ estabeleceu novos contornos para o delito de apropriação indébita de ICMS com a Súmula nº 568, que redefiniu jurisprudência, originando um "novo tipo penal", após o julgamento do HC nº 399.109 sob a tese do Ministro Rogério Schietti Cruz.

23/11/2023

O STJ, editou 5 novas súmulas em matéria criminal, dentre elas, a nº 568, que trouxe novos contornos, relevantes, para o delito de apropriação indébita de ICMS, ou seja, aquele esposado no art.2º, II da lei 8.137/90.

De início, oportuno que façamos um breve histórico da construção jurisprudencial do STJ em relação ao delito de Apropriação Indébita do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços – ICMS.  

A construção do que podemos chamar do “novo tipo penal” de Apropriação indébita de ICMS teve seu momento inicial quando do julgamento dos autos do HC nº 399.109, que teve como tese vencedora aquela levantada pelo Ministro Rogério Schietti Cruz.

Naquela ocasião, o debate girava em torno do alcance da norma esposada no art. 2º, II, da lei 8.137/90, que prevê como crime contra a ordem tributária a conduta de “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação tributária que deveria recolher aos cofres públicos.”.

Portanto, o que se propôs ao STJ, de forma objetiva, é que fosse esclarecido se o simples inadimplemento de tributo próprio – como, por exemplo, ICMS-próprio, ISS, PIS, COFINS – estaria abarcado pela conduta descrita acima, ou seja, “deixar de recolher tributo, descontado ou cobrado...”.

Sendo assim, se debruçando sobre a temática, o Ministro Rogério Schietti Cruz levantou a tese – que, posteriormente, se tornou vencedora - de que o destaque de ICMS na Nota Fiscal sem o devido recolhimento do imposto apurado e devido configura hipótese que se amolda ao tipo previsto no art.2º, II da lei 8.137/90.

Segundo o Ministro, isso seria possível em razão de que o ICMS-próprio devido na operação teve seu ônus financeiro repassado ao consumidor final durante a operação, não se configurando inadimplência, mas, sim, apropriação indébita.

Ressaltou, por fim, que a distinção entre o inadimplemento de tributo — que é um fato atípico — e a apropriação indébita tributária, reside justamente no dolo do contribuinte de se apropriar da parcela embutida no preço produto vendido, relativa ao ICMS devido ao Estado.

Fixada a tese no STJ, o debate foi levado, naturalmente, via Recurso, ao STF que, sob a Relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, entendeu, nos autos do RHC nº 163.334, pela manutenção da tese fixada pelo STJ, porém, estabelecendo que “o contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art.2º, inciso II da lei 8.137/90.”

Portanto, apesar da manutenção da tese inicial, o STF passou a fixar dois critérios objetivos para imputação do delito em comento, quais sejam: Contumácia e a presença do Dolo de apropriação.

Acontece que, mesmo tendo estabelecidos esses parâmetros para imputação objetiva do tipo penal em comento, o fato é que não houve, inicialmente, uma definição sobre o que configuraria “contumácia” ou até mesmo de qual espécie de dolo a Corte Suprema estaria se referindo no requisito “dolo de apropriação”.

Nesse ponto, a respostas sobre os questionamentos esposados acima, via jurisprudência, apenas vieram em 2020 quando o Superior Tribunal de Justiça, utilizando o entendimento inicial acrescido das orientações fixadas pelo STF, absolveu um réu condenado em primeira instância, pelo tipo penal em apreço, nos autos do Resp. nº 1.852.129/SC.

No caso citado, a 6ª turma do STJ absolveu o réu por entender que não estaria configurada a contumácia delitiva e nem mesmo o dolo de apropriação na omissão praticada pelo contribuinte, já que a conduta perdurou por 4 (quatro) meses, configurando mero “evento isolado na gestão da pessoa jurídica”.

A decisão foi reiterada posteriormente, porém, com novos contornos importantes.

Nesse segundo momento, a mesma 6ª turma entendeu pelo trancamento de uma ação penal tendo em vista que a contumácia delitiva não se encontrava presente já que o não recolhimento ocorreu tão somente uma vez. No entanto, o que chamou a atenção foi o segundo argumento, relativo à ausência do dolo de se apropriar, que, segundo a Corte, não estaria configurado, uma vez que o contribuinte requereu parcelamento e, ainda que não tenha adimplido, o fato é suficiente para afastar a intenção de apropriação.

Analisando os autos, percebe-se uma modificação do próprio entendimento do relator que, no ano anterior, nos mesmos autos, negou provimento ao RHC sob o argumento de que a “consciência de não recolher” estaria comprovada e isso, por si só, seria o suficiente para manutenção da ação penal.

O Ministro explicou que a mudança de entendimento se deu em razão de que, ao analisar um caso de não recolhimento de ICMS declarado, é necessário perquirir se a omissão tinha o intuito de obtenção de benefício pessoal, como “possibilidade de reinvestimento com maior retorno, obtenção de maiores lucros etc.”, fator suficiente para distinguir o não recolhimento do tributo por qualquer que seja a circunstância que o impeça de exercer sua vontade de pagar e aquele não recolhimento com intuito voltado aos interesses pessoais do contribuinte.

Esse posicionamento se confirma outra vez nos autos do REsp nº 854.893, ressaltando que o dolo exigido para o tipo penal é aquele que está presente numa conduta que visa a utilização de procedimentos que violem, de forma objetiva, a lei ou o regulamento fiscal para benefício próprio ou de terceiros.

Consolidado o entendimento sobre os contornos da figura típica da apropriação indébita de ICMS-próprio – no qual o contribuinte é o sujeito passivo natural da obrigação tributária e, portanto, responsável direto pelo recolhimento – a pauta sobre o alcance desse delito retorna à Corte Superior, porém, desta vez, para entender se a conduta poderia abarcar operações que envolvem ICMS em substituição tributária (ICMS-ST).

Isto é, o delito de apropriação indébita tributária poderia se estender a operações sujeitas à substituição tributária, ou seja, onde existe um deslocamento de responsabilidade tributária1 para um contribuinte que não praticou o fato gerador?

Para que fique claro, nesse modelo de recolhimento do ICMS, no que tange ao debate, seria a hipótese de o contribuinte substituto cobrar o valor do ICMS-ST do contribuinte substituído, embutindo o valor dentro do preço do produto vendido, sem, contudo, repassar o valor do tributo ao fisco.

Debruçando-se sobre o tema, o STJ firmou o entendimento de que a própria descrição típica do crime de apropriação indébita tributária restringe a abrangência do sujeito ativo do delito, uma vez que nem todo sujeito passivo da obrigação tributária que deixa de recolher o tributo ou contribuição social responde pelo delito constante do art.2º, inciso II da lei 8.137/90.

No entendimento consolidado do STJ, nos autos do RHC 114.513, por exemplo, somente aqueles sujeitos passivos da obrigação tributária que 'descontam' ou 'cobram' o tributo ou contribuição é que poderiam figurar como sujeito ativo do delito de apropriação indébita de ICMS.

Em seguida, o STJ afimou que “a interpretação consentânea com a dogmática penal do termo 'descontado' é a de que ele se refere aos tributos diretos quando há responsabilidade tributária por substituição, enquanto o termo 'cobrado' deve ser compreendido nas relações tributárias havidas com tributos indiretos (incidentes sobre o consumo)”.

Para além disso, a possibilidade da apropriação indébita tributária alcançar as operações sujeitas à substituição tributária, decorre da interpretação objetiva do art.121 do Código Tributário Nacional - CTN.

Isto é, geralmente, o sujeito passivo da obrigação tributária é aquele que pratica objetivamente uma conduta típica (fato gerador), no entanto, o CTN, no mencionado art.121, dispõe que, mesmo aquele que não pratique a conduta típica (fato gerador) pode se tornar sujeito passivo desde que haja disposição expressa decorrente de lei.

Perceba, ainda que o substituto tributário não seja, originalmente, o sujeito passivo da obrigação tributária, por não ter praticado o fato gerador (conduta típica), o CTN autoriza que essa responsabilidade atrelada ao sujeito passivo seja deslocada para um terceiro – que não se reveste da condição de contribuinte – desde que haja expressa previsão legal como, de fato, ocorre na substituição tributária.

Nesse caso, o contribuinte deixa de ser o sujeito passivo da obrigação tributária principal e transfere esse ônus para o chamado “Responsável Tributário” (Substituto), conforme consta do Art.121, Parágrafo único, inciso II do CTN.

Justamente com base nessa lógica, o Superior Tribunal de Justiça entendeu pela possibilidade de também haver apropriação indébita nos casos de operações tributárias que estejam sujeitas ao regime da substituição tributária.

Portanto, devemos fazer uma remissão ao art.121, do CTN, para interpretar a parte que diz “na qualidade de sujeito passivo de obrigação” constante do art.2º, inciso II da lei 8.137/90.

Com isso, consolidando o entendimento esposado acima, o STJ, editou a súmula nº 658, no dia 13/9/23, consolidando um entendimento que há muito já vinha sendo utilizado e firmando de vez a tese de que “o crime de apropriação indébita tributária pode ocorrer tanto em operações próprias, como em razão de substituição tributária.”.

Com isso, entende-se que a apropriação indébita de ICMS pode ocorrer em operações próprias ou naquelas sujeitas ao regime da Substituição Tributária, desde que presente a contumácia e o do dolo de apropriação. Esses requisitos são cumulativos, portanto, é ônus da acusação provar a frequência da sonegação e o ânimo de obter vantagem indevida pela falta de pagamento do tributo.

Sem dúvidas, o impacto do entendimento sumulado é significativo porque, naturalmente, gera um risco para uma quantidade maior de empresas e contribuintes, abarcando seguimentos de atividades que antes não estavam contemplados dentro do entendimento de ambas as Cortes Superiores.

Isso demonstra a importância das empresas ou contribuintes, independentemente do setor da economia ou de seu modelo tributário, não negligenciarem a escrituração e o recolhimento de seus impostos, reforçando os processos de controle e conformidade fiscal como, escriturando suas obrigações fiscais e contábeis de forma correta e, principalmente, buscando recolher os impostos no devido vencimento.

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1 A chamada substituição “para frente” significa que a responsabilidade tributária é deslocada do sujeito passivo natural, portanto, o produtor/indústria – que figura como primeiro sujeito da cadeia de recolhimento – para que ele apure e recolha o tributo por toda cadeia de circulação, antes mesmo da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, utilizando como base de cálculo o valor final do produto no varejo que possui referência na chamada “pesquisa de preços” regularmente publicada pela Fazenda Estadual.

Luiz Luna
Advogado criminalista, professor de Direito Processual Penal, Especialista em Direito Processual Penal, Especialista em Direito Penal Econômico e Master of Law em Direito Tributário.

João Paulo Martinelli
Advogado Criminalista, Consultor Jurídico e Parecerista; Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra; Autor de livros e artigos jurídicos; Professor.

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