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Cálculos de danos e propriedade intelectual

O STJ raramente aborda as violações às patentes após trânsito em julgado, com decisões de instâncias especiais ainda mais escassas. O recente julgado envolvendo homologação de laudo pericial destaca a tendência de seguir as decisões regionais, apesar da supervisão judicial.

23/11/2023

Discussões sobre violações (an debeatur) aos titulares de patente com pouca frequência têm seu mérito enfrentado pelo STJ. Quando se trata da fase de realização prática de tal crédito, após o trânsito em julgado, decisões de instâncias especiais são ainda mais raras. Com um bojo eminentemente técnico, além da ausência de vocação do Tribunal Superior para a análise fática, é bem provável que o que foi decidido (regionalmente) em instância recursal ordinária seja consolidado com o manto da coisa julgada – com seus vícios ou virtudes.

Por tal razão, merece destaque o recente julgado do STJ, 3ª Turma, Min. Humberto Martins, REsp 1.848.863/SP, J. 26.9.23, no qual uma parte se insurgiu contra a homologação de laudo pericial na fase do cumprimento de sentença.

Nesse contexto, não é incomum que decisões judiciais (que apreciem impugnações aos produtos de auxiliares de juízo) façam menção de que a atuação judicial, nesta seara, denota a aplicação do brocardo perito peritorum. Ou seja, o ditado jurígeno significa que o Juízo controla/supervisiona/dirige a atuação de seu auxiliar, não ficando adstrito ao mesmo. Entretanto, isto raramente é sucedido de uma discordância das premissas ou conclusões do mesmo laudo pericial “controlado”, servindo mais a uma enunciação de um Poder que não será exercido naquela oportunidade.

No que importa para este breve texto, o contexto da causa dirimida pelo órgão fracionário do Tribunal da Cidadania era o de duas tecnologias patenteadas e pertinentes ao setor da siderurgia. A parte sucumbente na fase de conhecimento compreendeu que o trabalho técnico realizado no momento do cumprimento de sentença era viciado tanto metodologicamente, quanto em termos de resultado. Raros são os condenados que pagam de bom grado sua pena.

Um dos pontos cruciais da decisão foi sobre o dispositivo da lei de Propriedade Industrial que comporta os caminhos possíveis para o cálculo dos danos patrimoniais – no que é tocante aos lucros cessantes. Disse o acórdão do Tribunal da Cidadania: “A previsão do art. 210 da lei 9.279/96 de que o cálculo dos lucros cessantes será realizado pelo critério mais favorável ao prejudicado não pode levar à adoção de métodos arbitrários para sua aferição”. Além da conhecida máxima de que Direito e Arbítrio não rimam, haveria espaço para a crítica a tal assertiva judicial1, pois é a lei – e não o capricho da vítima – que criou as três formas/critérios de calcular os danos sofrido. A melhor maneira de interpretar o obiter dictum do julgado seria no sentido de que para cada causa um dos critérios seria mais pertinente que o outro.

Outro ponto digno de nota foi a composição do corpo dos auxiliares do Juízo para a fase final do processo judicial. A 3ª Turma do STJ compreendeu2 que um contador (despido de conhecimentos específicos típicos ao técnico no assunto) poderia partir de premissas equivocadas e, logo, em resultados discrepantes. Ou seja, o direcionamento pretoriano indicou que o caminho da segurança jurídica é mais relevante que o da celeridade processual. Como se sabe, as complexidades e custos do labor de uma equipe de peritos costumam ser maiores do que a de um unívoco auxiliar do Juízo.

Nesse ponto, o argumento dirimido3 foi o de que no produto contrafeito havia partes que eram protegidas pela patente, e outras que escapavam à exclusividade tecnológica. Em outras palavras, era necessário um técnico no assunto para concentrar a realização do crédito do proprietário àquilo que era contrafação. Esse tipo de caso não é raro em produtos tidos como compostos ou complexos. Por exemplo, se uma patente cobre o motor de um carro, e um veículo automotor de terceiro é vendido com o mesmo motor – sem a anuência do titular da patente –, haverá contrafação.

No entanto, poderia a massa contrafeita4 contaminar o restante do veículo para efeitos do cálculo de dano? Se o motor tem o custo produtivo de X, e o restante do veículo que é edificado por peças em domínio público gera o custo de 2X; no cumprimento de sentença a base de cálculo seria integral (3X)? Ainda, mesmo que o bem tenha partes sem a proteção da patente do terceiro, qual parte é prevalente em termos de relevância econômica concreta (alguém compraria um carro sem motor, afora hipótese de ornamentação)? Nota-se que há muito espaço para debate nessas questões práticas e necessárias para quem lida com o contencioso da propriedade imaterial.

Voltando ao caso e suas consequências, é duvidoso o acerto do julgado quanto a complexidade pericial. Desde que o perito/contador/engenheiro/economista receba os critérios objetivos da autoridade Judicial, em particular sobre o que constitui a massa contrafeita, se é a receita ou o lucro o que devem ser contemplados, qual percentual incidente, enfim, critérios, não é necessária nova perícia por técnico no assunto. A se confirmar a tendência do julgado, a eficácia do sistema de coerção de direitos de propriedade intelectual será posta à prova5.

Um último comentário sobre o julgado diz respeito à colaboração do sucumbente em demandas de contrafação de direitos de propriedade intelectual. Uma das maiores dificuldades existentes é a do réu que não contribui com o término da demanda trazendo as informações contábeis sobre vendas. O que fazer quando não se tem balizas seguras para serem utilizadas como base de cálculo?

Por exemplo, na lei de Direitos Autorais6 há a ficção dos três mil exemplares se não se sabe o tamanho do acervo contrafeito. Como qualquer ficção, é uma solução imperfeita e que pode tender ao oportunismo ou ao comodismo. Imagine que o contrafator teve uma conduta predatória e imprimiu dez mil exemplares. Se ele operar um “um sumiço” com seus livros contábeis, o pior que poderia lhe ocorrer é ser sancionado a pagar por massa contrafeita inferior a real. Haja “São Longuinho” para lidar com isso.

Que este precedente do STJ inaugure uma nova etapa de discussões7 mais profundas sobre o tormentoso ambiente do cálculo de danos na realização dos créditos derivados de contrafação a direitos de propriedade intelectual.

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1 “Essa imperfeição de todo sistema de justiça, a parte inevitável de arbitrariedade que contém, deve sempre estar presente na mente de quem quiser aplicar suas mais extremas consequências. É somente em nome de uma justiça perfeita que seria moral afirmar pereat mundus, fiat justitia” PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. 2ª Edição, São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 63.

2 Nos termos do Acórdão: “2. Realização, no caso concreto, tão somente de perícia meramente contábil, sem ter havido perícia com conhecimento específico na área técnica das patentes em questão. 3. Caracterizada a ausência de amplo exercício de contraditório e ampla defesa, em decorrência da necessidade de realização de perícia técnica com conhecimento específico na área técnica das patentes, o que justifica a devolução dos autos à origem para fins de dilação probatória com perícias técnicas específicas que se fizerem necessárias” STJ, 3ª Turma, Min. Humberto Martins, REsp 1.848.863/SP, J. 26.9.23.

3 “Foi realizada importante argumentação, pela parte recorrente, no sentido de que a perícia teria desconsiderado o fato de que algumas das brocas e dos punhos por ela comercializados não infringiriam as patentes do recorrido, sustentando, ainda, que as hastes de perfuração de furo de gusa seriam compostas não apenas pelo punho e pela broca, mas também pela haste, que estaria fora do escopo de proteção das patentes da recorrida” STJ, 3ª Turma, Min. Humberto Martins, REsp 1.848.863/SP, J. 26.9.23.

os passos do ca'lculo da indenizac¸a~o comec¸am pela fixac¸a~o da “massa contrafeita”, ou seja, o conjunto de bens ou servic¸os afetados pela violac¸a~o do direito. Por exemplo, se a violac¸a~o da patente afeta um equipamento, os acesso'rios deste, necessariamente postos no mercado segundo a demanda, tambe'm sera~o levados em conta” BARBOSA, Denis Borges. Tratado da Propriedade Intelectual. Volume 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 177.

5 “Portanto, pode-se ventilar que um processo civil que se volta aos resultados precisa assegurar a tutela efetiva daquele que é munido de um bom direito, o mais rápido que o devido processo legal substantivo o permitir” BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de Concorrência Desleal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, p. 322-323.

6 Art. 103. Quem editar obra literária, artística ou científica, sem autorização do titular, perderá para este os exemplares que se apreenderem e pagar-lhe-á o preço dos que tiver vendido. Parágrafo único. Não se conhecendo o número de exemplares que constituem a edição fraudulenta, pagará o transgressor o valor de três mil exemplares, além dos apreendidos.

7 Menção honrosa vai para a boa tese de doutorado a respeito do tema: CASTRO, Raul Murad Ribeiro de. O Dano Patrimonial na Violação de Bens Imateriais Industriais. Orientado pelo Prof. Titular Gustavo José Mendes Tepedino. Rio de Janeiro: Faculdade de Direito da UERJ, 2019, 235 páginas. Aguarda-se que tal tese seja publicado como livro, pois não faltam potenciais leitores.

Pedro Marcos Nunes Barbosa
Sócio de Denis Borges Barbosa Advogados. Cursou seu Estágio Pós-Doutoral junto ao Departamento de Direito Civil da USP. Doutor em Direito Comercial pela USP, Mestre em Direito Civil pela UERJ e Especialista em Propriedade Intelectual pela PUC-Rio.

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