Em 10 de julho de 2023, ganhou notoriedade a trágica notícia do desabamento de parte de um prédio residencial na região metropolitana de Recife/PE que deixou 14 mortos, apesar do local estar interditado, mas sendo ocupado por famílias.
Além do desabamento em Recife, no ano de 2023, a população já foi surpreendida também com os deslizamentos de terras em diversas áreas em São Sebastião/SP no Feriado de Carnaval, interferindo no fornecimento de energia elétrica e serviços de telefonia, sendo decretado inclusive estado de calamidade pública.
Em análise aos acontecimentos citados, verifica-se a quantidade de brasileiros que vivem em áreas de riscos, como em encostas, próximos às linhas férreas, linhas de transmissão, faixa de domínio de rodovias e gasodutos, dentre outros.
O déficit habitacional é, certamente, um dos grandes problemas que assolam a população brasileira e é considerado relevante pauta de discussão que acompanha a oferta e cumprimento de políticas públicas e programas governamentais.
Neste sentido, a constante procura por habitação, atrelada à quantidade de áreas e domicílios desocupados em território brasileiro, motiva muitas pessoas a procurarem moradia em locais inapropriados e que, muitas das vezes, representam riscos, inclusive de morte. É esse o exemplo da ocupação irregular de morros íngremes, margens de rios, construções abandonadas e interditas e até mesmo em áreas destinadas à passagem de torres de transmissão de energia elétrica.
De acordo com levantamento realizado pelo IBGE no Censo Demográfico 2022, o Brasil atingiu a marca aproximada de 203.000.000 de habitantes, o que amparou o crescimento do número de domicílios em 34% em relação ao ano de 2010, diz o Portal Agência de Notícias IBGE1. Entretanto, como dito, muitas pessoas que possuem condições socioeconômicas precárias acabam buscando alternativas habitacionais inadequadas, fazendo com o que déficit habitacional cause, assim, outro problema pior: ocupações irregulares em áreas de risco.
E ainda que o déficit habitacional seja um alarmante transtorno enfrentado pela população brasileira, há de se ressaltar que não se deve permitir a utilização de áreas de risco, seja qual for a finalidade.
Reiterando o exemplo de ocupações irregulares próximas às torres de energia, convém pontuar que as áreas destinadas à passagem de linhas de transmissão de energia elétrica possuem diversas restrições impostas à sua utilização justamente para evitar o risco de eletrocussão e indução elétrica a que as pessoas que tramitam no local estão submetidas, o que pode levar até a morte.
Destaca-se que a energia elétrica que chega a residências regulares é, normalmente, de 110V ou 220V, enquanto que as torres do sistema de transmissão de energia elétrica podem transmitir desde 230kV a 440 kV.
Ou seja, os riscos às ocupações irregulares são inegáveis e, além de tudo, qualquer acidente que aconteça nas proximidades dessas ocupações têm consequências fatais.
Além dos riscos inerentes às ocupações irregulares próximas às torres de transmissão de energia elétrica, importante mencionar as ocupações em prédios abandonados, outro comum tipo de ocupação irregular, que usualmente se tratam de edifícios abandonados por seus proprietários durante a realização das obras, na maioria das vezes por falta de recursos dos proprietários ou das construtoras.
Não se pode ignorar os diversos riscos fatais a que os ocupantes de prédios abandonados estão expostos, uma vez que, por se tratarem de obras inacabadas, inexiste qualquer tipo de regularização necessária e que autorize pessoas a habitar nestes edifícios.
Neste sentido, foi o que infelizmente ocorreu, em 2018, no incêndio em prédio do Largo do Paissandu na Capital de São Paulo – que possivelmente foi causado por um curto-circuito –, pois, apesar do prédio abrigar ocupações irregulares desde 2003, bastou um único acidente para que os moradores perdessem todos os seus pertences e ocorresse a morte de um dos ocupantes.
Por outro ângulo, retornando às ocupações irregulares próximas às torres de transmissão de energia elétrica, em caso de acidente advindo de ocupação irregular, além das consequências fatais a que os ocupantes estariam expostos, milhares de pessoas ficariam sem o devido acesso à energia elétrica, inclusive hospitais, escolas, delegacias e outros tipos de serviços essenciais que são prestados à população e precisam efetivamente do fornecimento de energia elétrica.
Importante trazer à baila que o serviço de transmissão de energia elétrica é essencial a toda a população, sendo que os imóveis onde se instalam as linhas de transmissão só por isso já atendem a sua função social, ao passo que se prestam ao fornecimento de energia elétrica.
E isso também se dá quando há a ocupação em outras áreas cuja ocupação igualmente é proibida em razão da afetação para a prestação de serviços públicos que oferecem riscos, como em beiras de estradas, ferrovias, proximidades de gasodutos e sobre tubulações de água e esgoto.
Eventuais invasões nesses locais destinados à prestação de serviços públicos sem a observação às regras de construção podem causar, portanto, não só acidentes fatais, mas também a interrupção do fornecimento de determinado serviço a toda uma região, como, por exemplo, blecautes, falta de combustíveis, bloqueios de rodovias e ferrovias.
Não é preciso muito para entender que a ocupação irregular desses lugares não importa só no risco para quem é o ocupante, mas pode comprometer o deslocamento de determinadas regiões, bem como o funcionamento de hospitais, escolas, repartições públicas ou o abastecimento de água, tratamento de esgoto, bem como o fornecimento de alimentos da população, sem contar as indústrias e comércios que podem ficar sem energia, insumos e matérias primas, além de reduzir o acesso a produtos de consumo diário.
Isso sem contar que ocupações em áreas próximas a serviços de risco, como a passagem de gasodutos podem acarretar explosões na área onde instaladas, caso produzida alguma atividade indevida pelos seus ocupantes, com consequências fatais às pessoas que lá residem, e igualmente às pessoas que não residem ali propriamente, mas que podem ser prejudicadas dependendo das consequências de eventual acidente, devendo prevalecer o direito à incolumidade pública em contrapartida ao direito à moradia.
Ocorre que, em muitas ocupações irregulares, há uma conivência perversa do Poder Público, que releva todos esses riscos citados por diversos fatores (políticos, inclusive) , deixando de lado que todos os anos temos épocas de chuva, por exemplo, e que essas chuvas são sempre acompanhadas de enchentes, deslizamentos e acidentes que atingem a população que mora nas encostas dos morros.
A perversidade dessa atuação do governo se dá justamente em saber da repetição periódica desses desastres chamados “naturais”, mas sem tomar providências para evitar as consequências nessas áreas indevidamente ocupadas, cujo risco é mais do que conhecido. E mais, muitas vezes não há somente uma mera omissão das autoridades, mas quase que um incentivo, com a formalização de logradouros, instituição de outros serviços básicos de luz, água, energia, coleta de lixo, transporte coletivo etc.
Contudo, é dever dos entes estatais (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) previsto no art. 23, inciso IX da Constituição Federal promover os programas de construção de moradia e de melhoria das condições habitacionais, sendo que os arts. 30, inciso VIII e 182 atribuem como responsabilidade das prefeituras executarem políticas de desenvolvimento urbano, bem como enfrentarem o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.
Nesse aspecto, vale destacar que o Estatuto da Cidade instituído pela lei 10.257/01, impõe que se evitem a “deterioração das áreas urbanizadas” e a “exposição da população a riscos de desastres” (art. 2º, VI, alíneas f e h), sendo, portanto, uma atribuição preventiva e mitigadora e não remediadora, como se tem visto ultimamente.
Tanto é que a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil - PNPDEC disposta na lei 12.608/12, tem como objetivo além de determinar que os municípios promovam medidas de prestação de socorro e abrigos provisórios, mas principalmente, reduzam os riscos de desastres, estimulem e monitorem o ordenamento da ocupação do solo urbano e rural.
Não à toa, o TJ/SP, no julgamento da Apelação nº 9155181-07.2001.8.26.0000, já condenou a Municipalidade de São Paulo na obrigação de fazer para remover ocupantes de área de risco, com cominação de multa em caso de não atendimento à ordem judicial, sob a justificativa de que cabe ao Município promover programas de moradias e a melhoria das condições habitacionais/saneamento básico para combater a pobreza e a marginalização das pessoas menos favorecidas.
Neste caso, os moradores da Favela “Alto da Alegria” estavam alojados em casas e barracos irregulares que foram construídos em morros íngremes e, assim, estavam reféns da própria sorte para que as suas moradias não fossem destruídas por conta de deslizamentos de terras provocados por chuvas, por exemplo.
Neste sentido, assim foi o entendimento do STJ no julgamento do REsp 303605/SP, que condenou o Estado e o Município de São Paulo a desfazer um loteamento clandestino e devolver a área ao estado anterior.
Em seu voto, o Ministro Humberto Gomes de Barros ressaltou que o Poder Público, ao tomar conhecimento do loteamento irregular, deveria ter implementado medidas concretas para impedir a ocupação irregular, até porque a área esbulhada era de proteção a mananciais hídricos que, à época, abasteciam a grande São Paulo.
Infelizmente, basta uma visita a todos os grandes centros urbanos para que se perceba que não é isso que ocorre, faltando a adoção de medidas concretas e substanciais dos nossos políticos para atingir a finalidade da lei.
Assim, não se ignora o déficit habitacional e o problema de moradia enfrentado no país, sobretudo nas grandes cidades, no entanto, é evidente que as ocupações irregulares em áreas de risco representam uma grande ameaça à vida não só de quem as ocupa, mas também a um número muito maior de pessoas que podem ser prejudicadas caso seja permitido pelo Poder Público esse tipo de ocupação, bastando um único acidente nestas áreas para configurar danos fatais e irreparáveis.
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1 País tem 90 milhões de domicílios, 34% a mais que em 2010. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37238-pais-tem-90-milhoes-de-domicilios-34-a-mais-que-em-2010#:~:text=Em%202022%2C%20havia%2090%2C7,de%2026%25%20no%20mesmo%20per%C3%ADodo. Acesso em: 05 nov. 23.