A fraude processual é conceitualmente conhecida como delito contra a administração da justiça, prevista no artigo 347 do Código Penal que, em linhas gerais, é imputada ao agente que pratica algum ato intencional, que visa à alteração da realidade fática, com o propósito de induzir em erro o juiz ou o perito. É o sujeito que tenta enganar a Justiça:
Art. 347 - Inovar artificiosamente, na pendência de processo civil ou administrativo, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito:
Pena - detenção, de três meses a dois anos, e multa.
Parágrafo único - Se a inovação se destina a produzir efeito em processo penal, ainda que não iniciado, as penas aplicam-se em dobro.
Aliás, quando a artimanha é praticada para fins de engodo em processo penal, não é necessária a existência de procedimento previamente instaurado, consumando-se à infração no momento em que ocorre o ato de ludibriar à Justiça:
Para a caracterização do delito de fraude processual, especificamente em relação à conduta descrita no parágrafo único do art. 347 do CP, é despicienda a existência de um procedimento previamente instaurado, diferentemente da conduta prevista no caput do mesmo preceito de regência, o qual veda a inovação artificiosa "na pendência de processo civil ou administrativo [...] com o fim de induzir a erro o juiz ou o perito". (Precedentes).
(RHC n. 53.491/PE, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 10/11/2015, DJe de 27/11/2015.)
Trata-se de crime que se consuma de forma antecipada, sendo desnecessário que a estratagema criada pelo infrator seja capaz de, efetivamente, induzir em erro magistrado ou perito:
A fraude processual é crime comum e formal, não se exigindo para a sua consumação, que o Juiz ou o perito tenham sido efetivamente induzidos a erro, bastando que a inovação seja apta, num primeiro momento, a produzir tal resultado, podendo o crime ser cometido por qualquer pessoa que tenha, ou não, interesse no processo.
(HC n. 137.206/SP, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, julgado em 1/12/2009, DJe de 1/2/2010.)
Importante destacar que o STJ tem reconhecido que a pessoa física prejudicada pela inovação capciosa também pode ser vítima do crime de fraude processual, uma vez que o ato insidioso praticado pelo infrator poderá resultar em efeitos reflexos prejudiciais à sua pessoa:
Muito embora o tipo do art. 347 do Código Penal proteja precipuamente o bem jurídico da administração da Justiça, tendo, por consequência, como sujeito passivo principal o Estado, a doutrina reconhece que o delito também tem como vítima, ainda que em segundo plano, a pessoa prejudicada pela inovação artificiosa, tanto mais em contexto no qual o prejuízo para a vítima é evidente na medida em que a fraude processual lhe imputaria o cometimento de crime (efetuar disparos de arma de fogo contra policiais militares) que jamais existiu.
(CC n. 167.537/RS, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, julgado em 27/11/2019, DJe de 4/12/2019.)
No julgamento do REsp 2.082.894/RJ, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 22/8/2023, DJe de 28/8/2023, onde foi analisada a conduta do agente que, presumindo que a sua linha telefônica estava interceptada pela polícia, simulou conversa em que atribuía a prática de infração penal à terceira pessoa inocente. Foi destacado que a mera imputação de crime a terceiro não tem o condão de inovar o estado de lugar, de coisa ou de pessoa e, portanto, não se subsume ao tipo previsto no artigo 347 do Código Penal. Confira trechos da ementa do referido julgado:
Com efeito, forjar um diálogo para alterar o curso das investigações não altera materialmente o local do crime, nem os objetos que pudessem ter relação com o delito, tampouco as pessoas envolvidas nos fatos. Quanto a esse último ponto, a inovação do estado de pessoa, para que seja típica, consistiria na mudança de aspectos físicos de determinado indivíduo - e não apenas na atribuição de um crime a outrem.
(REsp n. 2.082.894/RJ, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 22/8/2023, DJe de 28/8/2023.)
Em outro caso que concluiu pela atipicidade da conduta imputada a um advogado que estava no exercício de suas funções, foi determinado o trancamento de uma ação penal instaurada com o propósito de averiguar se as palavras utilizadas na defesa do constituinte são capazes de configurar o delito de fraude processual. O eminente relator do caso, Ministro Arnaldo Esteves Lima, com precisão, rechaçou a hipótese acusatória por considerar que a exordial acusatória não descreveu qual seria o elemento constitutivo do tipo, consistente na imputação de fato definido como crime à vítima. Confira trechos do voto exarado por Sua Excelência:
A meu ver, o primeiro requisito elencado não se encontra presente, pois parece-me evidente que afirmação feita em audiência ("seria muito fácil a arrebanhar quatro ou cinco pessoas, tomar seus depoimentos em escritório e indigitar responsabilidade ao seu cliente") não atribuiu a prática de nenhum delito ao promotor, tampouco crime de fraude processual, uma vez que o fato atribuído ao representante do Ministério Público não se subsume no tipo previsto no art. 347 do Código Penal, que prevê:
De fato, parece-me um exagero inferir que o paciente, em sua manifestação, tenha acusado o membro do parquet estadual de inovar artificiosamente, no curso do processo penal, o estado de lugar, coisa ou pessoa, buscando induzir a erro o juiz.
Dessa forma, reconhecida a atipicidade da conduta praticada pelo paciente, pela ausência de elemento constitutivo do tipo, qual seja, a atribuição de fato definido como crime à vítima, escorreita a alegação de falta de justa causa para o prosseguimento da ação penal.
(HC n. 77.184/BA, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 6/5/2008, DJe de 23/6/2008.)
Em caso semelhante que apurou a conduta praticada por advogado no exercício de suas funções, foi reconhecida a flagrante ilegalidade da imputação que atribuiu o crime de fraude processual a causídico que não transcreveu, na sua peça de defesa, todos os fundamentos da sentença que denegou o direito do seu cliente de apelar em liberdade:
Não há como atribuir aos pacientes, advogados, a prática do delito de fraude processual (art. 347 do Código Penal) somente por não terem transcrito, na inicial de habeas corpus impetrado na origem em favor de terceiro, todos os fundamentos da sentença que havia negado o direito de o paciente apelar em liberdade, se, na mesma ocasião, instruíram o pedido com a cópia integral do referido ato processual. Portanto, inviável afirmar que agiram "artificiosamente", bem como flagrante a ausência do especial fim de agir de induzir a erro o juiz a que faz menção o tipo.
(HC n. 579.256/SP, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 22/9/2020, DJe de 29/9/2020.)
Por fim, quando a infração penal não for praticada em detrimento de bens, serviços e interesses da União, a competência para processar e julgar o delito de fraude processual será da Justiça Estadual:
No caso, não estão presentes as hipóteses constitucionais para o reconhecimento da competência da Justiça Federal, isso porque os fatos criminos os imputados aos agravantes (falsificar o reconhecimento de firma em documento de transferência de propriedade de veículo - crime do art. 299 do Código Penal) foi praticado em detrimento de serviços e interesses do Estado de São Paulo e o outro delito (fraude processual - crime do art. 347 do Código Penal) teve por finalidade induzir a erro Juízo Estadual, não havendo se falar, portanto, em infração praticada contra interesses de Órgão Federal.
(AgRg no CC n. 195.146/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 9/8/2023, DJe de 16/8/2023.)
Portanto, a fraude processual dependerá da demonstração de que o agente agiu com vontade consciente de enganar a administração da justiça, ainda que o destinatário da prova não tenha se convencido da arapuca feita pelo infrator.