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A cláusula take or pay nos contratos de fornecimento de gases

A cláusulaTake or Pay em contratos estabelece uma "regra de consumo mínimo", onde o comprador se compromete a adquirir uma quantidade determinada de produtos ou serviços, mesmo que não os consuma integralmente, conforme definido pela lei 10.312/01. Essa prática, comum em contratos empresariais de longa duração, reflete a liberdade contratual e a gestão de riscos.

14/11/2023

De uma forma simples, estabelecer uma cláusula take or pay num contrato significa dizer que as partes instituíram uma “regra de consumo mínimo” do objeto estipulado no pacto. Nessa situação, o comprador assume a obrigação de adquirir uma quantidade mínima de determinado produto ou serviço do vendedor, por certo período, mesmo que esta não seja integralmente consumida.

Neste sentido, a lei 10.312/01, com a redação alterada pela lei 12.431/11, definiu a cláusula take or pay dispondo que “a pessoa jurídica vendedora se compromete a fornecer, e o comprador compromete-se a adquirir, uma quantidade determinada de gás natural canalizado, sendo este obrigado a pagar pela quantidade de gás que se compromete a adquirir, mesmo que não a utilize1. Noutras palavras, enquanto o comprador assume o risco de a procura pelo gás reduzir, o vendedor assume o risco de sofrer prejuízo decorrente de eventual aumento do preço."

Com efeito, frente a prática habitual da realização de negócios com o uso desta ferramenta no instrumento contratual, pode-se concluir que se trata de uma cláusula socialmente típica, a qual materializa a liberdade contratual2, representando a vontade das partes no negócio jurídico engendrado. Por oportuno, cabe anotar que os contratos empresariais são instrumentos de gestão de riscos3, o que é especialmente observado em contratos de longa duração consubstanciados por obrigações de trato sucessivo4, tal como se apresentam os contratos que contém a cláusula take or pay.

Normalmente, a cláusula take or pay é utilizada nos contratos que envolvem o fornecimento de gases (industriais e medicinais) e energia elétrica, pelo que se observa que a redistribuição dos riscos faz todo sentido nessa hipótese, haja vista que ambos os interesses comerciais ficam tutelados, se por um lado o vendedor é protegido do risco relacionado à falta de demanda, o comprador garante o preço e o fornecimento mínimo. Outrossim, importa destacar que a cláusula take or pay também tem o condão de garantir a remuneração mínima dos altos investimentos realizados pelo fornecedor, tais como o desenvolvimento do produto ou serviço, a infraestrutura e a logística, de maneira a manter níveis de fluxo de caixa adequados à operação contratada. Noutro lado da moeda, como já exposto, o comprador se beneficia do preço mais competitivo, bem como de um fornecimento mínimo do produto ou serviço, o que também garante sua operação, reduzindo o risco de não ter o fornecimento quando tiver necessidade.

Sobre o tema, pode-se pensar que a cláusula take or pay configuraria enriquecimento ilícito, já que o vendedor pode promover a cobrança do comprador mesmo que não haja consumo integral. No entanto, tal questionamento não deve prosperar porque, além do contrato empresarial ser paritário5, não há qualquer ilicitude no estabelecimento de um valor mínimo com o escopo de possibilitar o desenvolvimento do negócio sem prejudicar o vendedor. Por outro prisma, também poder-se-ia argumentar que a cláusula take or pay possui natureza jurídica de “cláusula penal6, o que não possui coerência, visto que a incidência da cláusula não guarda relação com o descumprimento da obrigação, mas com o estabelecimento de um pagamento mínimo a fim de garantir um fluxo de caixa para desenvolvimento do negócio, tratando-se tão somente de um mecanismo de alocação de riscos. 

Nesse contexto, importa dispor sobre dois casos recentes julgados pelo STJ. O primeiro caso versava sobre uma ação de declaração de nulidade de duplicatas e de inexigibilidade de débitos em que o comprador alegava que o vendedor emitiu duplicatas de forma indevida, já que nenhum produto fora recebido7. Não obstante a sentença ter julgado improcedente o pedido considerando válida a emissão das duplicatas em virtude da existência de uma cláusula contratual prevendo o consumo mínimo, o tribunal paulista reformou a decisão sob o entendimento de que a duplicata somente poderia ser sacada na hipótese de compra e venda ou de prestação de serviços, o que não se caracterizaria no caso por conta da referida cláusula. Ao julgar o recurso especial, a relatora Ministra Nancy Andrighi destacou que o contrato de fornecimento de gases é um contrato de compra e venda e esclareceu que o estabelecimento da cláusula take or pay não altera a natureza do negócio jurídico firmado entre as partes8. Com efeito, foi dado provimento ao recurso especial interposto pela vendedora, sendo salientada a possibilidade de emissão de duplicatas relativas aos contratos de fornecimento de gases que possuem este dispositivo contratual.

Já em relação ao segundo caso, ao julgar o REsp 2.048.957/MG9, o STJ proferiu outra decisão importante relacionada à cláusula take or pay. O caso relatado tratou de uma relação contratual em que a compradora do produto (gás) deixou de pagar o valor devido à vendedora porque não estava mais consumindo-o. Em 1ª instância, o juiz manifestou o entendimento de que a cláusula take or pay seria ineficaz, por gerar enriquecimento ilícito à empresa vendedora. Por conseguinte, em sede recursal, a Câmara julgadora decidiu pela validade da cláusula take or pay, porém manteve a condenação, sob o entendimento de que a vendedora deveria entregar a diferença do gás que a compradora não teria consumido.

A relatora do Recurso Especial, Ministra Nancy Andrighi, proferiu voto reformando o acórdão do tribunal mineiro, entendendo que a empresa vendedora tem o direito de cobrar o valor da quantidade mínima convencionada independentemente do consumo efetivo. Nessa linha, ao analisar o pacto ajustado no que toca ao seu modo de cumprimento, foi destacado que estes tipos contratuais “se caracterizam, geralmente, como de prestação continuada, e exigem do fornecedor a manutenção de uma estrutura complexa.” Alinhado a isso, considerando a função da cláusula take or pay, foi sublinhado que a alocação de riscos entre as partes e a garantia de receitas para o vendedor são os principais objetivos da cláusula. Ainda nessa linha de raciocínio, a decisão menciona que, por óbvio, só incidirá a cobrança estipulada na cláusula take or pay se não houver consumo mínimo, pois, do contrário, a cláusula não produzirá efeitos. Em sede de conclusão, a Ministra explicou que nos contratos sob a égide da cláusula take or pay “o comprador assume o risco da demanda e, em contrapartida, será beneficiado com um preço menos oneroso.”.

Portanto, observa-se que o STJ já se manifestou acerca de algumas questões que envolvem a cláusula take or pay no contrato de fornecimento de gases, podendo-se deduzir as seguintes conclusões: i) a cláusula take or pay não desnatura o contrato de compra e venda, possibilitando a emissão de duplicatas; ii) a relação contratual estabelecida trata de uma obrigação de prestação continuada, a qual necessita que os riscos sejam alocados de forma a possibilitar que o vendedor consiga assegurar uma receita mínima para manutenção e desenvolvimento do seu negócio, haja vista o alto investimento necessário para tanto.

Percebe-se, assim, que, atualmente, a tendência do STJ, ao julgar casos de contratos de fornecimento de gases com a estipulação da cláusula take or pay, é de confirmar a sua validade e eficácia no ordenamento jurídico brasileiro, reduzindo as chances de demandas com discussão a respeito da possibilidade de cobrança do consumo mínimo em negócios desta natureza e, por consequência, trazendo segurança jurídica e maior estabilidade nas operações industriais de produção e fornecimento de gases.

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1 Art. 1º, §4º da Lei n. 10.312/2001.

2 FORGIONI, Paula Andrea. Contratos Empresariais: teoria geral e aplicação. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 53.

3 “Daí afirmar-se que o conceito de risco contratual relaciona-se diretamente com o de equilíbrio, tendo em conta que as partes estabelecem negocialmente a repartição dos riscos como forma de definir o equilíbrio do ajuste. Ao se perquirir a alocação de riscos estabelecida pelos contratantes, segundo a vontade declarada, o intérprete deverá atentar para o tipo contratual escolhido e para a causa concreta do negócio. Cada tipo contratual possui critérios de repartição do risco previamente estabelecidos em lei. Entretanto, as partes poderão modelar a alocação de riscos do negócio, inserindo na sua causa repartição de riscos específica e incomum a certa espécie negocial.” (BANDEIRA, Paula Greco. O contrato como instrumento de gestão de riscos e o princípio do equilíbrio contratual. Revista de Direito Privado, v. 65, p. 195–208, 2016, p. 2)

4 “Quanto ao momento em que devem ser cumpridas, as obrigações classificam-se em: (...) c) de execução continuada, periódica ou de trato sucessivo, que se cumpre por meio de atos reiterados, como sucede na prestação de serviços, na compra e venda a prazo ou em prestações periódicas, etc.” (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 2: teoria geral das obrigações. 1 Ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 178.)

5 “Ademais, na esfera de relações contratuais empresariais, é pertinente frisar que a Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) reforça a livre iniciativa(arts. 1º, caput, e 2º, I), realça a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas (art. 2º, III) e evidencia a autonomia privada (art. 3º, V), restando assentado que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras positivadas apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto aquelas de ordem pública (art. 3º, VIII).” (TERRA, Aline de Miranda Valverde; NANNI, Giovanni Ettore. A cláusula resolutiva expressa como instrumento privilegiado de gestão de riscos contratuais. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 31, n. 1, p. 135-165, jan./mar. 2022. DOI: 10.33242/rbdc.2022.01.006.)

6 Código Civil - Art. 408. Incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora.

7 STJ, 3ª T., REsp 1.984.655/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 29.11.2022.

8 “O cálculo do montante devido com base na cláusula take or pay não quer dizer que não houve uma efetiva compra e venda. Na realidade, existe um contrato de compra e venda, mas, em determinada época, em razão de o consumo de produto ou serviço ter sido inferior ao mínimo disponibilizado, o preço devido foi calculado nos moldes do previsto na cláusula take or pay.” (Trecho do voto da Ministra Nancy Andrighi,, STJ, 3ª T., REsp 1.984.655/SP).

9 STJ, 3ª Turma., REsp 2.048.957/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 18.4.23

Alan Sampaio Campos
Mestre em direito civil-constitucional pela PUC-Rio. Pós-graduado em direito civil-constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogado.

Rodrigo Gonçalves Freitas
Advogado na Safer Advogados.

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