No mês de junho de 2023, o governo da Dinamarca anunciou que faria a devolução ao Brasil de um manto sagrado do povo indígena Tupinambá, levado daqui no século XVII e que se encontra no Nationalmuseet, de Copenhague, desde 1689.
O anúncio foi amplamente comemorado pela comunidade brasileira, sobretudo os povos indígenas, entre eles, os atuais Tupinambá de Belmonte, Tupinambá de Olivença e outros.
O manto é um artefato cultural que possuía um significado sagrado para os Tupinambá. Hoje já não mais o utilizam nos seus ritos e o exemplar que se encontra na Dinamarca é um patrimônio de inigualável valor simbólico, remetendo-lhes não apenas a uma memória remota do seu próprio passado histórico, mas por manter viva uma dimensão fulcral da existência humana, a dignidade.
E o que vem a ser o processo de repatriação de artefatos culturais e restos mortais e por que ele não é tão simples e singelo em sua execução?
Este é um tópico que vem ganhando importância no mundo jurídico e na sociedade como um todo. Trata-se de um processo complexo e multifacetado que envolve a devolução de itens de valor cultural e histórico às comunidades de origem. A questão levanta debates sobre direitos culturais, propriedade intelectual, ética e moral.
Para entender a necessidade do processo de repatriação dos bens culturais, é necessário, primeiramente, compreender os processos que levaram esses bens para fora do seu território de origem.
A maioria dos casos de solicitação de repatriação de bens e artefatos culturais diz respeito a bens subtraídos compulsoriamente ou mediante atos de dominação empreendidos durante o processo de colonização ao qual foram submetidos os povos ameríndios, africanos e asiáticos, quando as potências colonizadoras frequentemente saqueavam, compravam ou tomavam emprestados artefatos dos povos conquistados. Esses artefatos frequentemente encontraram seu caminho para museus e coleções particulares em países colonizadores.
Contudo, mesmo durante o século XX, em função das guerras e conflitos, muitos artefatos e objetos culturais foram pilhados e deslocados, o que levou a grandes debates sobre a devolução desses bens após o término das hostilidades. Nesse contexto é que nasceu a chamada Convenção de Haia — cujo nome oficial é Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado —, da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), estatuída em 14 de maio de 1954. O Brasil é signatário do tratado internacional desde 1958. A convenção objetivou, na sua formulação, prevenir o tráfico ilícito de bens culturais e incentivar a devolução de artefatos culturais a seus países de origem, incentivando a conscientização dos povos sobre os direitos de propriedade cultural.
Nas décadas de 1960 e 1970, pode-se dizer que houve incremento com a preocupação global sobre a importância da preservação do patrimônio cultural e da devolução de artefatos culturais às comunidades de origem. Movimentos sociais, ativismo e um crescente interesse em questões de direitos humanos e direitos culturais começaram a influenciar as atitudes concernentes à repatriação.
A Convenção de Paris (1970)
A Convenção de Paris de 1970 — oficialmente "Convenção sobre as Medidas a serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedade Ilícita de Bens Culturais" —, foi adotada pela Unesco em resposta à demanda por solução contra o tráfico ilícito de bens culturais. Esta convenção estabeleceu as bases para regulamentar o comércio e a transferência de bens culturais entre países.
Os principais avanços e características da Convenção de Paris de 1970 incluem:
. Proibição do Tráfico Ilícito: A convenção proíbe a importação, exportação e transferência de propriedade ilícita de bens culturais, criando uma base legal para combater o contrabando e o comércio ilegal desses objetos.
. Definição de Propriedade Ilícita: Define o que constitui propriedade ilícita, abrangendo bens que tenham sido roubados, saqueados, contrabandeados ou exportados ilegalmente de seus países de origem.
. Requisitos para Documentação: Os países signatários devem exigir documentação adequada para a importação e exportação de bens culturais. Isso ajuda a rastrear a proveniência dos objetos e a prevenir a circulação de bens ilicitamente obtidos.
O tratado de 1970 representa um marco de convencionalidade fulcral na prevenção ao tráfico ilícito de bens culturais, porém não abordou diretamente a repatriação de artefatos culturais que já haviam sido removidos de seus países de origem nos períodos que se convencia chamar, em História, de neocolonialistas e imperialistas (séculos XIX e XX).
Em que pese toda a importância da Convenção de 1970, a repatriação do manto Tupinambá, no caso brasileiro, não se deu em cumprimento a uma norma de direito internacional, mas em virtude do trabalho afincado da diplomacia brasileira iniciado em 2020, quando o recém-nomeado embaixador do Brasil na Dinamarca e Lituânia, Rodrigo de Azeredo Santos, visitou o Nationalmuseet.
As tratativas culminaram na doação do objeto ao Brasil. Aqui ele ficará sob a guarda do Museu Nacional, órgão vinculado à UFRJ e cuja sede, no antigo Paço da Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão (RJ), se encontra em reconstrução após o trágico incêndio de 2018.
Por outro lado, o processo descortina um movimento em nível global pelo retorno de relíquias, artefatos culturais e peças arqueológicas a suas comunidades de origem, abrindo espaço ao debate mais amplo, relacionado ao Direito às Origens, à Ancestralidade, à Memória e à Verdade.
Alguns avanços a esse respeito já foram observados pelo mundo, como no caso da devolução de um conjunto de artefatos pelo Museu Britânico às Ilhas Haida, no Canadá, ocorrida em 2018 ou a repatriação, em 2016, para a Nova Zelândia, de esqueletos Maori que se encontravam em museus dos Estados Unidos e do Reino Unido. No ano passado, a Alemanha devolveu 20 bronzes do Benim para a Nigéria e os Países Baixos anunciaram que devolverão mais de 400 artefatos levados da Indonésia durante o período colonial.
No caso Maori relatado, há que enfatizar o quanto é sofrível aos povos indígenas e tradicionais saberem da existência de restos mortais depositados em lugares outros que não aqueles de sua topografia sagrada reservada às necrópoles e aos santuários. Em mínimo exercício de alteridade, imaginemos que nossos avós e bisavós não estivessem nos jazigos e túmulos de nossas famílias, e sim expostos em museus, como peça de exibição permanente ou temporária! Os restos mortais são, como se aprendia pela antiga doutrina civilista de base romana, res sacrae, e jamais deveriam ter sido tratados como res comune.
Apesar de avanços em termos de sensibilização da comunidade internacional quanto à importância da repatriação de bens culturais, ainda subsistem diversas dificuldades, que são jurídicas sobremaneira. Mas em tudo deve-se ter por horizonte o imperativo categórico kantiano, segundo o qual devemos desejar ao outro aquilo que ansiamos para nós mesmos.
Também em junho de 2023, o Brasil conseguiu, após mais de uma década de disputa, garantir a repatriação de cerca de 600 artefatos indígenas brasileiros que haviam sido emprestados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) à França e que deveriam ter retornado ao país em 2009.
Apesar de todo empenho por parte do Estado brasileiro em recuperar os artefatos culturais dos seus povos, ainda são inúmeros os itens espalhados por diversos museus e coleções na Europa, o que ensejará redobrados esforços diplomáticos e institucionais de modo geral.