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O novo regime jurídico das concessões previstas no art. 42, § 2º, da Lei 8.987

A Lei 11.445, que entrou em vigor em meados de fevereiro de 2007, modificou o regime aplicável às concessões outorgadas antes do início da vigência da Lei 8.987, disciplinadas pelo art. 42 deste diploma legal.

24/5/2007


O novo regime jurídico das concessões previstas no art. 42, § 2º, da Lei 8.987

Cesar A. Guimarães Pereira*

A Lei 11.445 (clique aqui), que entrou em vigor em meados de fevereiro de 2007, modificou o regime aplicável às concessões outorgadas antes do início da vigência da Lei 8.987 (clique aqui), disciplinadas pelo art. 42 deste diploma legal.

a) o regime anterior

Em sua redação original, o art. 42 da Lei 8.987 estabelece que as concessões outorgadas antes da vigência desta lei “consideram-se válidas pelo prazo fixado no contrato ou ato de outorga”. Vencido o prazo, o poder concedente deveria realizar sua licitação (art. 42, § 1º). Havia também disciplina específica para “as concessões em caráter precário, as que estiverem com prazo vencido e as que estiverem em vigor por prazo indeterminado”: estas permaneceriam válidas pelo prazo necessário para fazerem-se os “levantamentos e avaliações indispensáveis à organização das licitações”. Este prazo seria de, no mínimo, 24 meses (art. 42, § 2º).

b) o art. 42, § 2º, da Lei 8.987 e sua aplicação jurisprudencial

Quando da edição da Lei nº 8.987, MARÇAL JUSTEN FILHO apontou a invalidade do art. 42, § 2º (Concessões de Serviços Públicos, Dialética, 1997, p. 369/374). Na ocasião, destacou-se que, conquanto a nova lei não pudesse disciplinar atos aperfeiçoados antes da sua vigência, era incabível a previsão de manutenção de concessões precárias anteriores. A situação era agravada pela circunstância de que o dispositivo previa apenas um prazo mínimo para a regularização (24 meses), mas não um máximo. O máximo seria estipulado pelo art. 38 da Lei nº 9.074 (em 60 meses -clique aqui), mas este dispositivo foi vetado.

O fato é que o dispositivo nunca foi reconhecido judicialmente como inconstitucional. Mais do que isto, a solução foi aplicada em inúmeros setores, por meio de atos legislativos e infralegais. Os arts. 19 e 20 da Lei 9.074, atinentes ao setor elétrico, prevêem a prorrogação de concessões por 20 ou até 35 anos. O art. 20 da lei é especialmente relevante porque vincula essa prorrogação de até 35 anos ao “prazo suficiente para a amortização dos investimentos”. No âmbito do transporte rodoviário, foram editados os Decretos nº 952/93 (clique aqui) e 2.521/98 (clique aqui), ambos pressupondo a possibilidade de manutenção da vigência das concessões.

O dispositivo foi aplicado expressamente pelo STJ no REsp 655.207/RJ, consignando-se que “o disposto no art. 42, § 2º, da Lei 8.987/95, ao disciplinar as concessões precárias, entendendo-se como tais as anteriores à lei, outorgadas sem licitação, não autoriza a continuação em caráter de exclusividade” (2ª T., Rel. Min. ELIANA CALMON, j. 16.12.2004). Embora afastando o direito à manutenção da exclusividade na prestação do serviço, considerou-se cabível a prorrogação da concessão na forma do art. 42, § 3º, da Lei 8.987. No mesmo sentido, aplicando o art. 42, § 2º, da Lei nº 8.987 como assegurando a manutenção da concessão sem garantia de exclusividade, confira-se o AgRg na Reclamação nº 1.834/RJ (1ª S., Rel. para o acórdão Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, j. 14.9.2005). O dispositivo também foi invocado, embora com ressalvas, para a solução do REsp 617.147/PR: “É inaplicável o art. 42, § 2º, da Lei 8987/95 aos casos em que o transporte, originariamente efetivado não tem lastro legislativo, posto ser concedido a título precário, com prazo vencido ou indeterminado, senão outorgado sem forma ou figura de direito público” (1ª T., Rel. Min. LUIZ FUX, j. 15.3.2005).

c) a prorrogação de concessões como forma de reequilíbrio contratual

Por outro lado, passou-se a se reconhecer a possibilidade de prorrogação de concessões de serviço público como instrumento para a recomposição da equação econômico-financeira original. Como assinala MARÇAL JUSTEN FILHO, “a prorrogação é compatível com a Constituição especialmente quando todas as outras alternativas para produzir a recomposição acarretariam sacrifícios ou lesões irreparáveis às finanças públicas ou aos interesses dos usuários (...) Por isso, alterou-se o entendimento para aceitar a solução da prorrogação do prazo da concessão como instrumento para produzir a recomposição da equação econômico-financeira original” (Teoria Geral das Concessões de Serviços Públicos, Dialética, 2003, p. 406).

Ou seja, sempre que se reconhecesse a existência de direito do concessionário a uma recomposição patrimonial vinculada ao serviço concedido (p. ex., por conta de reajustes insuficientes de tarifas de transporte, ao longo do tempo), poder-se-ia cogitar da prorrogação como possível solução. Em certos casos, esta solução é adotada de modo individual, para o caso concreto. Mas nada impede que seja implementada de modo coletivo, atingindo todo um setor por meio de uma avaliação razoável do desequilíbrio crônico e sistêmico nele existente. Sob o ângulo da isonomia, é até preferível uma solução generalizada a outra que beneficie concessionários específicos.

d) o acolhimento da tese pela nova lei

Mais do que o texto original do art. <_st13a_metricconverter w:st="on" productid="42, a">42, a redação atual do dispositivo, dada pela Lei 11.445, prestigia exatamente a noção de que a prorrogação excepcional nele prevista relaciona-se com a necessidade dessa recomposição econômica. Matéria publicada no jornal Valor Econômico de 28.2.2007 (“Lei já traz prazos, conclui ministério”) dá conta de que a finalidade dessa alteração legislativa pode ter sido a de instituir um regime de transição para o próprio setor de saneamento. Mas é evidente que a redação da lei é genérica e suas disposição se estendem a todos os setores em que houver concessões subsumíveis ao § 2º do art. 42 da Lei nº 8.987.

e) o conteúdo dos novos parágrafos 1º a 6º do art. 42

As novas condições fixadas pelos atuais §§ 1º a 6º do art. 42 da Lei nº 8.987 são fundamentalmente as seguintes:

(a) Vencido o prazo da concessão, conforme contrato ou ato de outorga, o serviço poderá passar a ser prestado diretamente pelo Poder Público ou delegado mediante novo contrato (§ 1º).

(b) As concessões referidas no § 2º, “inclusive as que não possuam instrumento que as formalize ou que possuam cláusula que preveja prorrogação”, são estendidas até 31.12.2010, desde que atendidas certas condições até 30.6.2009, enunciadas abaixo.

a. Levantamento dos dados necessários para um cálculo de recomposição patrimonial do concessionário, relativamente aos vinte anos anteriores à publicação da Lei 11.445 (item I).

b. Celebração de acordo entre o poder concedente e o concessionário sobre os critérios de cálculo e forma de indenização, apurados com base nos dados referidos acima e “auditados por instituição especializada escolhida de comum acordo pelas partes” (item II).

c. Ato formal de “autorização precária dos serviços”, com prazo de vigência de seis meses, renovável até 31.12.2008, o qual pressupõe o atendimento dos itens “a” e “b” acima.


(c) Se não ocorrer o acordo previsto no item “b” acima, “o cálculo da indenização de investimentos será feito com base nos critérios previstos no instrumento de concessão antes celebrado ou, na omissão deste, por avaliação de seu valor econômico ou reavaliação patrimonial, depreciação e amortização de ativos imobilizados definidos pelas legislações fiscal e das sociedades por ações, efetuada por empresa especializada escolhida de comum acordo pelas partes”.

(d) Nesse mesmo caso, o pagamento da indenização será feito em 4 (quatro) parcelas anuais, iguais e sucessivas, devendo a primeira ser paga até o último dia útil do exercício em que ocorrer a reversão. A indenização deve incluir a (i) parte ainda não amortizada de investimentos e (ii) outras indenizações relacionadas à prestação dos serviços. Tais investimentos devem ter sido realizados com (1) capital próprio ou do controlador, (2) capital derivado de operações de financiamento, ou (3) capital obtido mediante emissão de ações, debêntures e outros títulos mobiliários.

(e) Finalmente, prevê-se que, havendo acordo, a indenização referida no item (d) poderia ser paga mediante as receitas do novo contrato.

f) ineficácia em face de atos jurídicos perfeitos

Em primeiro lugar, deve-se apontar que essa nova disciplina não se aplica às situações já disciplinadas de outro modo por atos jurídicos perfeitos anteriores à edição da nova lei. Assim, por exemplo, uma prorrogação já firmada com base na disciplina anterior, com vigência além de 31.12.2010, não terá seu prazo de duração atingido pela nova lei. Assim também quanto à previsão de prorrogação de concessões atualmente existentes, derivadas do art. 42, § 2º, da Lei 8.987. A referência do § 3º do art. <_st13a_metricconverter w:st="on" productid="42 a">42 a que os contratos que “possuam cláusula de prorrogação” também estão sujeitos ao prazo máximo de 31.12.2010 não é suficiente para impedir, por si só, a prorrogação. Até porque esta pode resultar da necessidade de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro da concessão.

g) condições inconsistentes e arbitrárias

Por outro lado, o novo regime contém, além de diversas inconsistências lógicas e materiais, a estipulação arbitrária de determinadas condições que violam direitos subjetivos dos concessionários.

h) limitação indevida do prazo de recomposição patrimonial

Reconhece-se o direito à recomposição patrimonial. Porém, limita-se a apuração do eventual desequilíbrio ao prazo de 20 anos. Este prazo é arbitrário. Não corresponde a nenhum critério jurídico. O direito de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro é permanente e pode ser exercitado a qualquer tempo, durante a vigência da relação jurídica de concessão. O prazo adequado para o levantamento somente pode ser aferido especificamente em cada caso concreto. Mas seguramente pode haver casos – embora talvez pouco numerosos em termos estatísticos – em que o direito de reequilíbrio pressupõe o exame de fatos anteriores a 20 anos. Nessas situações, a limitação em 20 anos será ineficaz.

i) problemas quanto aos critérios de cálculo da indenização

As regras prevêem o cálculo de uma indenização relacionada com esse desequilíbrio contratual. Não me parece haver necessidade de reparos significativos quanto à definição do que será objeto de indenização: a lei alude a (i) parcela não amortizada dos investimentos e (ii) outras indenizações relacionadas à prestação dos serviços – fórmula que acomoda todas as pretensões do concessionário.

No entanto, há um defeito no que se refere ao critério para a identificação dos investimentos indenizáveis. Alude-se a apenas os investimentos não realizados com a receita da própria concessão seriam indenizáveis. Isto é arbitrário e revela visão economicamente inconsistente. Não há qualquer distinção, para o fim de identificação do direito à amortização plena, entre financiar um investimento com receita da concessão ou obter financiamento bancário e dar em garantia a receita da concessão. O primeiro caso é até mais econômico por não envolver custos financeiros e reduzir o custo final a ser amortizado. Portanto, a lei deve ser aplicada sem essa limitação. Todos os investimentos não amortizados, ainda que realizados com recursos derivados da própria concessão, devem ser indenizados.

j) a previsão arbitrária de parcelamento compulsório da indenização

Também é arbitrária a fixação de um prazo de quatro anos para o pagamento da indenização, com a primeira parcela sendo paga no último dia útil do ano em que houver a reversão dos bens. Ou seja, extingue-se a concessão, o concessionário restitui os bens reversíveis e só no final do ano em que isto ocorrer é que terá direito ao recebimento da primeira (de quatro) parcela da indenização. A regra é inválida pois a indenização deve ser integral e concomitante à reversão, salvo acordo do particular titular do crédito. Não é cabível a imposição de um parcelamento compulsório. Ademais, a previsão de garantia real pode ser ineficaz, tendo em vista o regime dos bens públicos e a circunstância de que o poder concedente submete-se ao regime de precatórios. Mesmo que haja acordo, a garantia deve ser configurada de modo eficaz.

l) a aplicação do § 6º (indenização mediante receita de novo contrato)

Finalmente, a previsão do § 6º deve ser aplicada com temperamentos. O “novo contrato” a que se refere o dispositivo não é o ato de autorização de “prestação precária” dos serviços referido no § 3º, III. Portanto, trata-se ou (i) de novo contrato celebrado de modo regular e ser caráter de precariedade, após licitação, ou (ii) da manutenção da concessão pelo prazo existente entre 30.6.2009 e 31.12.2010 (v. abaixo). Ora, neste novo contrato, já licitado, a receita será precipuamente destinada à remuneração do concessionário pelos novos serviços, não ao pagamento de seus créditos resultantes dos serviços anteriores. Assim, caso se consiga dar emprego prático a esse dispositivo, deve-se estabelecer que haverá uma parcela adicional de receita destinada a essa indenização. Supõe-se que uma solução prática possível para a aplicação do dispositivo seja prever (mediante acordo com o antigo concessionário), no edital de eventual nova licitação, que o vencedor deverá promover o pagamento da indenização. A circunstância de que isto pode conduzir a uma vantagem em favor do antigo concessionário não implica nenhum defeito. Ao contrário, pode revelar até uma hipótese de inexigibilidade de licitação, confirmando a possibilidade de prorrogação da concessão anterior ou de celebração de um novo contrato como a forma mais econômica de solução.

m) a compatibilização dos diversos prazos legais

Mas o novo regime suscita inúmeras outras dúvidas práticas.

Há uma disciplina própria para a situação em que não for celebrado o acordo referido no item § 3º, III, mas não se estipula qual a solução em relação ao prazo. Aplica-se ou não o prazo máximo de 31.12.2010? A orientação que parece resultar da lei é a de se aplicar esse prazo. Porém, pode haver o cabimento da manutenção da concessão como forma de recomposição patrimonial. Essa solução pode levar a uma prorrogação além do prazo máximo estipulado na lei – que não seria oponível neste caso ou porque (i) pretenderia atingir direitos já adquiridos do concessionário ou porque (ii) implica uma solução (extinção da concessão e pagamento da indenização em dinheiro) incompatível com a Constituição, que impõe a adoção da solução mais econômica e proporcional.

Por outro lado, como se conciliam o prazo máximo da autorização para prestação precária (31.12.2008), o prazo máximo para o preenchimento dos requisitos (30.6.2009) e o prazo máximo total para a vigência das concessões antigas (31.12.2010)? Se a edição do ato de autorização pressupõe o prévio preenchimento dos dois outros requisitos, e se estes podem ser atendidos até 30.6.2009, qual o sentido de se prever que o ato de autorização será renovável apenas até 31.12.2008? Não me parece haver uma explicação direta no texto legal para essas dúvidas. Supõe-se que o “cumprimento do disposto nos incisos I e II deste parágrafo”, referido no item III do § 3º do art. 42, corresponda não à conclusão, mas ao início e ao prosseguimento delas.

Por outro lado, também não parece haver resposta para a incompatibilidade entre o prazo de vigência entre o ato de autorização para prestação precária dos serviços (renovável até 31.12.2008 por seis meses, portanto vigente até 30.6.2009) e o prazo máximo de vigência das concessões anteriores (31.12.2010). Imagina-se que o procedimento pretendido pela lei seja o de que, durante o período até 30.6.2009, a concessão anterior seja mantida pelo ato de autorização para prestação precária. Firmado o acordo para indenização (que não prevê, aliás, nenhuma obrigatoriedade de pagamento parcelado), retorna a prestação ao regime não precário próprio da concessão, até o prazo máximo de vigência de 31.12.2010.

n) fundamento e natureza jurídica da prestação de serviços até 31.12.2010

Este procedimento deixa sem explicação o fundamento para que seja mantida a concessão mesmo após firmado o acordo para a indenização do particular. Eventualmente, pode-se adotar como fundamento a própria verificação do desequilíbrio anterior. Neste caso, aplicando-se o § 6º do art. 42, parte da receita desse período adicional (de 30.6.2009 a 31.12.2010) seria utilizada para reduzir a indenização, cabendo ao poder concedente fazer o pagamento do saldo remanescente.

Por fim, a natureza da prestação dos serviços tanto durante quanto após a expiração da vigência do ato de autorização (30.6.2009) continua sendo a de delegação por meio de concessão de serviços públicos. Aplica-se integralmente o regime da concessão, inclusive quanto à responsabilidade e aos deveres do concessionário.

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*Advogado do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados









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