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A invasão de domicílio no crime de tráfico de drogas sob a ótica do STF

É necessário que se estabeleça um standard probatório mínimo e claro, pois, conforme entendimento do ministro Rogério Schietti no HC 598.051/SP, é alta a quantidade de provas ilegais obtidas em razão de invasão ao domicílio alheio, contudo, incontáveis ainda são as situações que agentes estatais ingressam em domicílio e nada encontram.

27/10/2023

O debate sobre a invasão de domicílio nos crimes de tráfico de drogas não é inédito na pauta judicial. No ano de 2021, a Sexta Turma do STJ, ao analisar a matéria por meio do HC 598.051/SP, gerou um intenso debate sobre a medida invasiva nos crimes de tráfico de drogas.

Acontece que o entendimento do STF sobre o assunto ia em sentido diametralmente oposto. Em 2015, por meio do julgamento do RE 603.616/RO, o Plenário do STF assentou que "a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita - mesmo em período noturno - quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorria situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”.

A questão parece ser extremamente complexa por inúmeros fatores, mas o principal parece se resguardar no fato de que o assunto gera uma interpretação subjetiva entre leis processuais penais e direitos fundamentais.

Quanto aos direitos fundamentais, o princípio constitucional da inviolabilidade do domicílio, presente no artigo 5º, inciso XI, da Carta Magna de 1988, determina que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”1. (grifo nosso)

Vale enfatizar que, ao contrário do que se dá em outros direitos constitucionais, o direito da inviolabilidade do domicílio não se infere para um único indivíduo, mas, em sua grande maioria, a vários ao mesmo tempo.

Conforme Portal de Estatística do Estado de SP, a densidade domiciliar em São Paulo (3,22 habitantes por domicílio) assemelha-se à média nacional (3,33 hab./dom.) e ao conjunto dos demais Estados (3,36 hab./dom.). A existência de domicílios com até três moradores foi maior em São Paulo do que nos demais Estados, enquanto a daqueles com mais de cinco moradores foi menor. Expressiva, também, foi a proporção de domicílios com apenas um morador (12,3%), tanto em São Paulo quanto no país2.

Coadunando com o argumento, mesmo que de maneira indireta, o ex-Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, em seu livro “Todo Dia é Segunda-Feira”, conta que na fatídica “tomada do Complexo do Alemão”, em 20103, cerca de 30 mil residências foram invadidas para verificar possível existência de drogas4. Ou seja, considerando os dados de densidade dos domicílios mostrados acima, imaginamos que mais de 90 mil cidadãos brasileiros tiveram seu direito violado por mera desconfiança dos agentes estatais.

Quanto aos ditames processuais penais, o artigo 157 do Código de Processo Penal determina que toda prova derivada de inobservância às garantias individuais deve ser considerada ilícita, sendo desentranhada do processo5.

Contudo, o princípio constitucional ora mencionado admite o ingresso em domicílio em 4 (quatro) hipóteses, sendo uma delas o caso de ocorrência de flagrante delito no interior do domicílio.

Sendo assim, a dúvida que fica é: quem determina quando há ou não há fundadas razões para que se possa tornar legítima as provas decorrentes do ingresso em domicílio?

No mês de setembro de 2023, o STF voltou a se debruçar sobre o tema por ocasião do HC 169.788/SP6. Na situação em análise, durante a etapa investigativa, os agentes policiais declararam que estavam realizando uma ronda de rotina quando perceberam um indivíduo que, ao notar a presença da viatura policial, correu para dentro de sua residência. Essa atitude foi considerada "suspeita" teria justificada a entrada dos policiais na casa.

Durante a busca na residência, foram encontrados aproximadamente 300g de maconha. Na fase inquisitorial, o acusado alegou que estava dentro de sua casa, no seu quarto, quando os policiais bateram à sua porta, alegando ter recebido uma denúncia de crime naquela residência. Ele afirmou que abriu a porta e foi detido pelos policiais. Segundo sua declaração, foi agredido na região do rosto, das costas e nas pernas, e uma arma foi colocada dentro de sua boca.

O Ministro Alexandre de Moraes - acompanhado dos Ministros Dias Toffoli e Zanin - entendeu que a fuga para o domicílio configura justificativa para incursão policial no domicílio. Ainda neste sentido, mencionou o supracitado entendimento da Corte proferido em 2015, pelo RE 603.616/RO, para afastar qualquer ilegalidade por ausência de fundadas razões.

Em nossa opinião, tal entendimento carece de materialidade, porque não seria razoável conferir a um servidor público tamanha discricionariedade para, a partir de uma avaliação exclusivamente subjetiva e, em regra, enviesada, entrar de maneira forçada em residência para verificar se há ou não algum cometimento de crime.

Entendemos que o ingresso sem consentimento em domicílio só pode ser legitimado caso existam razões circunstanciais fáticas que possam comprovar que, no intervalo de tempo entre o fato e a obtenção da ordem judiciária, ocorra a “destruição do corpo de delito”.

É necessário haver uma distinção clara entre situação de flagrante e situação de urgência. No caso trazido à baila parece ser apenas uma situação de flagrante, pois o lapso temporal entre o fato e a obtenção do mandado de busca e apreensão não haveria a destruição do corpo de delito, qual seja, quase 250 quilos de maconha.

É necessário que se estabeleça um standard probatório mínimo e claro, pois, conforme entendimento do ministro Rogério Schietti no HC 598.051/SP, é alta a quantidade de provas ilegais obtidas em razão de invasão ao domicílio alheio, contudo, incontáveis ainda são as situações que agentes estatais ingressam em domicílio e nada encontram.

Considerando que essas medidas drásticas não acontecem em bairros nobres, onde também há tráfico de drogas, acreditamos que a fixação do Tema 2807 tem alvo; e ele é negro, pobre e mora em qualquer periferia do País.

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Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Acesso em 9/5/23. 

2 Informação obtida no site da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados - SEADE, no Portal de Estatísticas do Estado de São Paulo. Densidade Domicílio SP-BR Acesso em 10/5/23.

3 “Ocupação da Vila Cruzeiro e Complexo do Alemão: Em novembro de 2010, a polícia do Rio de Janeiro ocupou as favelas do Complexo do Alemão e a Vila Cruzeiro. A cobertura rendeu o prêmio Emmy ao 'Jornal Nacional'.” Memórias Globo. Acesso em 10/5/23.

4 BELTRAME, José Mariano; SILVA GARCIA, Sérgio Henrique da; Todo Dia é Segunda-Feira. Rio de Janeiro: Sextante, 2014, p. 141.

5 Parafraseado do artigo 157 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).

6 Trata-se de Habeas Corpus impetrado ao STJ, o qual foi indeferido liminarmente pelo Ministro relator, com fundamento na Súmula 691/STF.

7 “A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”

João Paulo Martinelli
Advogado Criminalista, Consultor Jurídico e Parecerista; Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra; Autor de livros e artigos jurídicos; Professor.

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