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O direito ao erro no serviço público

Muitos servidores ou particulares, por serem honestos e terem a “consciência limpa” de que não fizeram nada de errado, confiam no julgamento dos outros e terminam por serem responsabilizados e apenados com o mesmo rigor que aqueles que agem de maneira intencional para lesar a Administração Pública.

27/10/2023

Quando eu vos indago se o servidor tem o direito de errar, eu não estou aqui fazendo qualquer apologia ou sendo leniente a condutas ímprobas ou ilegais. Não se trata disso, inclusive, é justamente por não se tratar de uma conduta ímproba ou ilegal que estou a falar em erro.

O erro, ao contrário da culpa em sentindo amplo, é um comportamento (ou até mesmo uma omissão) não intencional, algo não quisto pelo servidor. Ocorre que, temos uma verdadeira intolerância ao erro na Administração Pública. No nosso discurso até falamos que devemos analisar a intenção do gestor público, mas, na prática, isso pouco ou nada importa.

Os órgãos de controle (que são tantos e sobrepostos), a cada dia têm nos mostrado que nenhum servidor público comete erro no Brasil, uma vez que quando são implicados, suas condutas são amoldadas ao tipo sancionatório e os fatos, desconsiderados. Eis porque falamos em apagão das canetas, infantilização da Administração Pública (Bruno Dantas) e Direito Administrativo do Medo (Rodrigo Valgas).

Pedro Dionísio cita como exemplo um ordenador de despesa de uma Universidade Pública Federal, que em sua atuação administrativa, está sujeito à fiscalização de, pelo menos, quatro órgãos controladores, sendo eles:

(i) do Tribunal de Contas da União, na forma do artigo 71, ll, da Constituição da República; (ii) da Procuradoria Federal junto à respectiva instituição, conforme disposto no artigo 10 da lei Federal 10.480/02; (iii) do Ministério Público Federal, frente ao que dispõe o artigo 37, l, da lei Complementar 75/93 e, finalmente, (iv) da Controladoria-Geral da União, nos termos do artigo 51, l, da atual Medida Provisória ne 870/19.1

Novamente, não estou sendo leniente aos atos desviantes, os quais devem ser combatidos. Eu falo por aqueles que, sem intenção, respondem e são apenados com o mesmo rigor, com a mesma pena que aqueles que cometem atos com intenção, diga-se, dolo. E isso ocorre, novamente, porque as circunstâncias as quais o equívoco foi cometido são desprezadas. O que se leva em consideração é tão somente se aquela conduta infringiu norma sancionatória em abstrato. Ao que parece, levar em consideração os fatos que levaram ao erro é tido como um verdadeiro afrouxamento nos mecanismos de combate à ilegalidade (vide Nota Técnica Conjunta 1/18 – MPF)2

Chama a atenção, num primeiro momento, que para enfrentar o que rotula de incerteza e imprevisibilidade decorrentes do aumento de regras sobre processos e controle da administração, o PL tenha, precisamente, se socorrido de termos abertos, passíveis de ampla margem para interpretações e subjetivismos. Nesse sentido, as referências expressas a modo proporcional e equânime, interesses gerais, ônus ou perdas anormais ou excessivos (art. 21), orientações gerais da época (art. 24), segurança jurídica de interesse geral (art. 25), solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais (art. 26), prejuízos anormais ou injustos (art. 27) e interpretação razoável (art. 28).

O mero passar de olhos sobre o texto não deixa dúvidas de que a norma, mais do que disciplinar a atuação do administrador público, impacta, de forma direta e imediata na atuação dos órgãos de controle da Administração Pública (na esfera federal, exemplificativamente, CGU, TCU, unidades de controle interno e CADE) e Poder Judiciário, pois impõe condicionantes às decisões deles emanadas. O PL toca profundamente na motivação do ato judicial e, por conseguinte, no princípio da persuasão racional.3

Os art. 22, caput e §1º e art. 28, da LINDB, bem lembrado na nova obra de Sundfeld, preveem que “as autoridades controladoras considerarão as dificuldades reais e obstáculos vivenciados pelo agente, bem como as circunstâncias práticas que limitaram sua atuação”. Tais dispositivos, de fato, vieram em boa hora para proteger o gestor bem-intencionado, “dispondo que ele somente poderá ser responsabilizado caso tenha agido com dolo ou incorrido em erro grosseiro”4

Art. 22.  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.(Regulamento)

§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.   

Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

Mas a previsão legal não é o bastante. E, por conta disso, é importante que você, gestor público ou particular que contrata com o Poder Público, procure suporte técnico-jurídico quando estiver passando por determinada situação que poderá resultar, mesmo que remotamente, em responsabilização. O conselho se faz necessário na medida em que muitos servidores ou particulares, por serem honestos e terem a “consciência limpa” de que não fizeram nada de errado, confiam no julgamento dos outros e terminam por serem responsabilizados e apenados com o mesmo rigor que aqueles que agem de maneira intencional para lesar a Administração Pública.

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1 DIONISIO, Pedro de Hollanda. O Direito ao Erro do Administrador Público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2019. p. 25.

2 DIONISIO, Pedro de Hollanda. O Direito ao Erro do Administrador Público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: Mundo Jurídico, 2019.

3 https://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr5/notas-tecnicas/docs/Nota%20Tecnica%201_2018.pdf

4 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo: o novo olhar da LINDB. Belo Horizonte: Fórum, 2022.

Wenner Melo
Procurador-Geral do Município. Advogado full service. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional (ABDPC).

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