Migalhas de Peso

Reclamação constitucional, processo e identidades laborais

Limitar a discussão a quem tem ou não competência é conferir visão míope à temática e negligenciar todo o movimento de mutação que as formas de trabalho têm sofrido desde o último meio século.

26/10/2023

Instituto genuinamente brasileiro1, sem precedentes em outros sistemas jurídicos, a Reclamação Constitucional assume protagonismo. Com recorrência, o STF está enfrentando celeumas de grande impacto nas relações de trabalho, a exemplo de Terceirização, Contrato de Franquia, Negociado sobre o Legislado, dentro outros.

Historicamente, muitas foram as correntes sobre a natureza jurídica da Reclamação Constitucional ou, simplesmente, reclamação. Apontada como medida administrativa similar à Reclamação Correicional ou Correição Parcial, como direito de petição, recurso, sucedâneo recursal, incidente ou verdadeira ação, a Reclamação pode ter o seu cabimento justificado na Teoria dos Poderes Implícitos, precedendo à sua previsão em lei2.

A divergência doutrinária quanto à natureza da medida transborda para os Tribunais. O entendimento do próprio STF não é unínosso. O ponto convergente admite, no entanto, que a Reclamação se apresenta como medida de cunho jurisdicional. Tome-se, como exemplo, a posição contida na Reclamação 831, que assim dispõe: “Como quer que se qualifique – recurso, ação, ou medida processual de natureza excepcional, (...). Todos os institutos de natureza jurisdicional.”

A Constituição possibilita plenamente o manejo da Reclamação Constitucional (v.g. artigos 102, l, 105, f e 111-A, §3º). O CPC, em seu artigo 988, §1º, prevê a possibilidade de utilização da ação em qualquer tribunal para: (i) preservar a competência do tribunal; (ii) garantir a autoridade das decisões do tribunal; (iii) garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e decisão do STF em controle concentrado de constitucionalidade; e, (iv) garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demanda repetitiva ou de incidente de assunção de competência.

De acordo com a súmula 734, do STF, o limite temporal para a propositura da ação é o trânsito em julgado da decisão. Até que esse ato-fato processual ocorra, a Reclamação pode ser proposta, ante a ausência de prazo para tanto, de acordo com a jurisprudência dominante do STF. Imperioso destacar que, proposta a Reclamação, se vier a ser julgada procedente, a decisão produzirá efeitos em relação à decisão ou ato impugnado, ainda que tenha ocorrido – neste intervalo – o trânsito em julgado. Nas palavras de CLAUDIO BRANDÃO, a coisa julgada ficará sob condição legal resolutiva, vinculada ao julgamento da ação.

Segundo recente pesquisa desenvolvida pela USP2, em que se analisou 303 ações relativas à competência da Justiça do Trabalho no STF, verificou-se que 88 delas são Reclamações Constitucionais, das quais, apenas 15% foram julgadas improcedentes pelo STF. As ações versam processos relativos a trabalhadores de plataformas, motoristas autônomos de cargas, parceiros em salões de beleza, corretores de imóveis, médicos, representantes comerciais e advogados associados.

O TST encontra-se no mesmo patamar do STJ, sendo, de igual modo, Corte de Precedentes no que se refere à interpretação e aplicação da legislação trabalhista. É, portanto, a Corte competente para dar a última e definitiva palavra sobre o tema, ressalvada a competência constitucional do Supremo.

O STF – em linha com os tempos atuais amplamente afetados pelos novos e diversos contornos do Direito do Trabalho – aduz que a interpretação conjunta dos precedentes permite o reconhecimento da licitude de outras formas de relação de trabalho que não a relação de emprego regida pela Consolidação das Leis do Trabalho, como na Terceirização, mas não se limitando a ela. A Corte, desta feita, firma posicionamento no sentido de que é possível a existência de modelos alternativos de relação de trabalho.

Em caso concreto, o ministro Luiz Fux, na RCL 54.738, afirma que: “o plenário do STF já decidiu em inúmeros precedentes o reconhecimento de modalidades de relação de trabalho diversas das relações de emprego dispostas na CLT”3.

Na Rcl 56.285, o Ministro Barroso4 pontuou que o contrato de emprego não é a única forma de se estabelecerem relações de trabalho; um mesmo mercado pode comportar alguns profissionais que sejam contratados pelo regime da CLT e outros profissionais cuja atuação tenha um caráter de eventualidade ou mais autonomia. Desse modo, são lícitos, ainda que para a execução da atividade-fim da empresa, os contratos de terceirização de mão de obra, parceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica, desde que o contrato seja real, em obediência ao princípio do contrato realidade, visto que prevalecerá a situação de fato sobre o ajuste formal, quando não coincidentes.

Nas Reclamações Constitucionais, em que se discute vínculo empregatício, vê-se reiteradas situações em que não há prova de vício de consentimento no pacto formalizado e, ainda, que a parte contratada possui flagrante hipersuficiência, nos termos da lei, com ênfase à capacidade intelectual.

Nesta senda, o julgado na ADPF 324 e a tese do tema 725 RG justificam a procedência de Reclamação Constitucional para afirmar a licitude do fenômeno da contratação de pessoa jurídica unipessoal para prestação de serviço à empresa tomadora de serviço, destacando-se não apenas a compatibilidade dos valores do trabalho e da livre iniciativa na terceirização do trabalho assentada nos precedentes obrigatórios, como também a ausência de condição de vulnerabilidade na opção pelo contrato firmado na relação jurídica estabelecida a justificar a proteção estatal por meio do Poder Judiciário5.

Atravessando diversas posições sobre o cenário de decisões proferidas pelo STF, com repercussão no ecossistema trabalhista, é fato que a Reclamação Constitucional se revela meio processual hábil e plenamente eficaz para garantir o cumprimento de precedentes com efeito vinculante e, por conseguinte, a uniformização jurisprudencial.

Certo é que a Reclamação Constitucional vem se consolidando como instrumento estratégico de prestação jurisdicional tempestiva, efetiva e adequada, na medida em que visa a segurança jurídica mediante reforço emanado pela Corte Suprema.

No entanto, o STF vem sofrendo duras críticas de parte da Justiça do Trabalho em relação às decisões proferidas em sede de Reclamação Constitucional. Com a devida vênia, dos que pensam em contrário, parece faltar o questionamento sobre o que tem levado a Corte Suprema a proferir referidas decisões.

A resposta, ao nosso ver, passa pela recalcitrante postura de parte da Justiça do Trabalho em aceitar o quanto decidido no Tema 725 de Repercussão Geral e na ADP 324, dentre outras decisões da Corte Suprema.

Sob essa óptica, não é razoável fazer da regra, exceção (licitude de outras formas de contratação que não a CLT); e da exceção, a regra (o reconhecimento de fraude).

Em arremate, é fundamental que a Justiça do Trabalho amplie os horizontes e admita as discussões acerca das novas formas de relações do trabalho, tal qual decidido pelo STF, sob pena de continuar sendo judiciariamente disciplinada por esta Corte.

Limitar a discussão a quem tem ou não competência é conferir visão míope à temática e negligenciar todo o movimento de mutação que as formas de trabalho têm sofrido desde o último meio século. O receio da precarização, aquela vivenciada nos moldes da Revolução do século XIX, não pode paralisar quem tem legitimidade para mudar o curso da história. Em linhas finais, correr à revelia é cegar para a realidade posta.

---------------

1 DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Reclamação Constitucional no Direito Brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2000. p. 385-429

2 MENDES, Gilmar Ferreira. A reclamação Constitucional no Supremo Tribunal Federal: Algumas Notas. Revista Oficial do Programa de Mestrado em Direito Constitucional da Escola de Direito de Brasília – Instituto Brasiliense de Direito Público, Porto Alegre, n. 12, abr./jun. 2006. p. 1

3 Julgamento da Rcl 54.738

4 Julgamento da Rcl 56.285/SP

5 Rcl nº 58.301AgR-segundo, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, DJe de 3/5/23

Ronaldo Ferreira Tolentino
Sócio da Ferraz dos Passos Advocacia.

Simony Braga
Advogada e sócia titular do escritório da Fonte, Advogados.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Rigor científico e sustentabilidade: O impacto da decisão do STF no futuro da saúde suplementar

15/11/2024

Black Friday – Cuidados para evitar problemas e fraudes nas compras

15/11/2024

O Direito aduaneiro, a logística de comércio exterior e a importância dos Incoterms

16/11/2024

Pense no presente para agir no futuro

15/11/2024

Encarceramento feminino no Brasil: A urgência de visibilizar necessidades

16/11/2024