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"Gravidez não é doença": as desigualdades de gênero em nosso sistema de justiça

O episódio de ontem serve de advertência quanto aos compromissos éticos em prol da igualdade entre homens e mulheres que já foram abraçados pelo sistema jurídico brasileiro.

11/10/2023

No dia 10 dessa semana, chegou a conhecimento público, por meio de vídeo que circulou nas redes sociais, o teor de uma audiência que ocorrera na mesma data. O processo que se relatava trazia um pedido de adiamento do julgamento em razão da gravidez da advogada. Mais precisamente, a advogada pedia nova data porque, a depender do resultado que fosse ser dado ao seu processo, o direito à sustentação oral seria exercido por ela. Pois nem bem a desembargadora relatora do processo havia começado a explicar de que se tratava a situação, foi interrompida pelo presidente:

- Excelência, eu queria ser bastante prático. Há um pedido: vossa Exa. defere ou nega?

- Não, eu vou deferir o pedido, vou deferir...

- Vai adiar o julgamento?

- Exa., ela pediu sustentação oral, ela está, ela acabou..., pelo menos eu estou tomando conhecimento agora pela secretária...

- Evidente, como já dizia Magalhães Barata, que foi governador do Pará, “gravidez não é doença, adquire-se por gosto”.

- Sim, Exa., não é doença, mas é um direito, né? Que a...

- Mas ela não é parte no processo, ela é apenas advogada no processo.

- Ela tinha pedido sustentação oral, Exa.

- Mandava outro substituto. Isso é a coisa mais simples que tem.

- Bom, eu, eu...

- São mais de 10 mil advogados em Belém e acho que todos têm as mesmas qualidades e qualificações que a Dr. Susane Teixeira. Mas a senhora vota... Aliás, eu nem voto nesse processo. Portanto, tudo o que eu falar aqui, esqueçam que eu falei. Vossas Exas. é que decidem. Desembargador Paro, Desembargadora Valquíria; Desembargadora Alda: também calada está, calada permanecerá. 

A sessão se desenvolve tendo como desfecho o deferimento do pedido principal feito pela advogada em nome dos interesses do seu representado. Como o resultado era de provimento, os votantes decidiram pelo não adiamento. Até aí, não é difícil compreender a lógica: é de praxe que se desista da sustentação oral nos casos em que o magistrado adianta, ali mesmo, durante a audiência, que se convenceu do pleito. Provavelmente, se presente, informada de que a decisão seria de provimento, a própria advogada renunciaria à sustentação, economizando tanto o tempo dos magistrados quanto as suas energias.

Mas aquela cena atraiu a atenção da comunidade jurídica por representar as múltiplas camadas de opressão a que as mulheres são sistematicamente submetidas quando buscam exercer as suas profissões. De uma só vez, a atuação que foi-nos possível conhecer por vídeo, atingiu tanto a desembargadora relatora, quanto a advogada do caso. A primeira, pelas diversas interrupções (manterrupting) e “explicações” (manexplaining) rispidamente impostas; a segunda, pela resistência ao adiamento do feito para que suas prerrogativas, enquanto advogada, fossem integramente preservadas. Em pouco mais de quatro minutos, o magistrado – da Justiça Trabalhista – desconsidera duas profissionais mulheres, que tão-somente pretendiam desempenhar seus respectivos ofícios.

O episódio tem timing (com o perdão pelo uso de mais um termo em inglês). Ele aconteceu no exato dia em que se celebra o Dia Nacional da Luta Contra a Violência à Mulher e na mesma semana em que a Real Academia de Ciência da Suécia anunciou o Prêmio Nobel de Economia desse ano.

Claudia Goldin, pesquisadora da Universidade de Harvard (EUA), ganhou a conceituada premiação “por ter avançado nossa compreensão dos resultados das mulheres no mercado de trabalho”. Através de análise de dados relativos a mais de duzentos anos da sociedade estadunidense, Goldin conclui que a vida profissional das mulheres foi (e ainda é) historicamente alterada pela maternidade, notadamente a partir da chegada do primeiro filho. Sociedades tradicionalmente patriarcais distribuem papeis sociais conforme o gênero, entendendo-se caber às mulheres o cuidado dos filhos.

À consequência disso, são as mulheres que se ocupam da rotina dos filhos, sobrando aos homens – e não às mulheres – tempo para dedicar aos projetos e tarefas que, em seus trabalhos, são interpretadas como sinais de alto rendimento, de sério compromisso deles com o crescimento de suas carreiras. Para este cenário que culmina com maior desenvolvimento profissional dos homens, em detrimento do das mulheres, vai dizer Goldin, importa menos o investimento em educação e formação que elas porventura tenham feito e mais a decisão de ter ou não ter filhos. Foi pela maternidade – e não por qualquer superioridade masculina para as funções desempenhadas – que, historicamente, sedimentaram-se as diferenças laborais entre homens e mulheres.

Os resultados alcançados por Goldin são fundamentais, pois, a partir de detalhada pesquisa, já não se pode dizer frases como “maternidade não é doença”. Porque, em que pese não o seja mesmo, sabemos que ela, injustamente, prejudica profissionais mulheres e privilegia profissionais homens. Ao sinalizar a maternidade, longe de qualquer sorte tratamento especial, as mulheres tentam é não ficar pra trás.

O episódio de ontem serve de advertência quanto aos compromissos éticos em prol da igualdade entre homens e mulheres que já foram abraçados pelo sistema jurídico brasileiro. A lei 13.363/16 (Lei Julia Matos) incluiu o art. 7º -A, IV, À Lei 8.908/1994 e alterou o art. 313, inciso IX do CPC para prever a hipótese de suspensão do processo em razão do parto. O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ (Resolução 492/2023) fala da atenção para se perceber desigualdades estruturais que afetem todos os sujeitos processuais, incluídas advogadas e – por que não? – , colegas magistradas também. 

Não por outra razão, constatada a manifesta desconsideração destas referências normativas por ocasião da audiência do TRT8, teria sido oportuno que, no pedido de desculpas do presidente (que, tal como a gravação da sessão, também ganhou circulação nas redes), tivesse assumido o compromisso com medidas efetivas para a implementação da perspectiva de gênero naquele tribunal, perante toda a sociedade. Em tempo da publicação deste artigo, também veio a público a notícia de instauração de processo disciplinar no CNJ em face do desembargador. Merece registro, portanto, o olhar atento da Instituição às desigualdades de gênero que devem ser enfrentadas como um problema de todas e também de todos.

Janaina Matida
Professora de Direito da Universidad Alberto Hurtado (Chile), Doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha), Assessora de Ministro do STJ, Co-coordenadora da Rede Latino-americana de Epistemologia Jurídica.

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