Migalhas de Peso

Entre a chuva e o rei

Que nossas casas sejam permeáveis às chuvas – mas nunca ao arbítrio estatal.

3/10/2023

Imagine a seguinte situação: você está caminhando no seu bairro, tranquilamente, voltando do trabalho ou, por que não, de uma festa. Uma viatura policial emparelha ao seu lado, sem qualquer razão aparente, e inicia uma abordagem – de forma pouco gentil, talvez. Você, não surpreendentemente, se assusta e corre para dentro da sua casa, localizada a poucos metros dali, confiando que, ali dentro, estará a salvo de abusos. Afinal, sempre te ensinaram que, de acordo com a Constituição Federal, a sua casa é seu lar e seu refúgio, seu asilo inviolável. Certo? Nem sempre.

Quase nunca, na verdade – especialmente se você for preto e morar em um bairro periférico. Pesquisa recente realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) revelou que, especialmente nos casos relacionados à Lei de Drogas, a proteção constitucional é lançada às favas: apenas 16% das entradas em domicílio por parte das forças policiais foram precedidas de mandado judicial – o que leva à conclusão de que, em assustadores 84% dos casos, a invasão da residência pelos agentes do estado ocorreu à revelia de ordem, e, portanto, controle prévio, do Poder Judiciário.

É bem verdade que estão contidos dentro desse larguíssimo percentual os casos de flagrante delito – nos quais a entrada em domicílio, independentemente da existência de mandado ou decisão judicial, é autorizada por nosso ordenamento jurídico. Também estão contidas as hipóteses nas quais existiu, ao menos em tese, autorização do morador para a entrada dos milicianos – muito embora seja bastante questionável, para dizer o mínimo, a real capacidade de resistência do cidadão que se encontra sob a mira de policiais fortemente armados.

Nos últimos dois anos, o Poder Judiciário tem voltado suas atenções para tais questões. Em março de 2021, o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento paradigmático cujo acórdão foi capitaneado pelo Ministro Rogério Schietti, decretou a ilicitude das buscas domiciliares realizadas à revelia de elementos objetivos, seguros e racionais que indicassem a real necessidade da diligência. Buscava-se, assim, o fim das violações de domicílio baseadas exclusivamente no famoso “tirocínio” policial, nas malsinadas “denúncias anônimas” e nas famosas “informações de populares” – não raro, apenas subterfúgios para justificar invasões que, de outra forma, seriam absolutamente ilegais. Na mesma decisão, o Tribunal impôs às forças policiais de todo o país a obrigação de utilizar câmeras corporais, as quais deveriam registrar, em áudio e vídeo, o consentimento do morador para o ingresso no domicílio. A decisão dava às corporações o prazo de um ano para implementar a medida, mas acabou sendo cassada muito antes disso: ainda em dezembro daquele ano, o Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, revogou a medida – sob o argumento de que seria descabido que o Poder Judiciário, em análise de caso individual, determinar ao Poder Executivo o aparelhamento de suas polícias. A despeito de sua vida curta, a decisão do STJ rendeu frutos: até o momento, sete estados da federação implementaram as câmeras corporais em ao menos parte de seus batalhões. Vale mencionar, aliás, que, nestes batalhões, a letalidade policial caiu 76,2% entre 2021 e 2022, de acordo com pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Agora, é a vez do Supremo Tribunal Federal se debruçar sobre o tema. Ao analisar, no HC n. 169.788/SP, caso relativamente prosaico – o de indivíduo que, ao ser abordado por policiais, corre para dentro de seu domicílio, o que os milicianos tomam por autorização para entrada -, nossa Corte Suprema testa os limites da proteção constitucional: poderia a mera fuga justificar a invasão domiciliar, em verdadeira positivação do bordão “quem não deve, não teme”? Ou teria o jurisdicionado o direito de não se submeter à abordagem policial, resguardando-se em sua residência?

O Supremo pretende responder essa questão e, atualmente, a Corte está dividida. De um lado, o Ministro Edson Fachin, relator do habeas corpus, concedeu a ordem por entender que a simples conduta de correr em via pública não seria criminosa – e, por isso, não configuraria o estado flagrancial que teria o condão de afastar a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar. Votaram com o relator os ministros Roberto Barroso, Rosa Weber (adiantando o seu voto) e Cármen Lúcia.

Por outro lado, o ministro Alexandre de Moraes abriu a divergência. Para ele, a mera conduta de sair correndo ao avistar viatura policial configuraria “atitude suspeita” – o que bastaria para autorizar a invasão de domicílio pelos milicianos. Acompanharam a divergência os ministros Dias Toffoli, Cristiano Zanin e André Mendonça.

Portanto, o placar do julgamento está empatado em 4x4, mas ainda faltam votar os ministros Gilmar Mendes (que pediu vista dos autos no último dia 25), Luiz Fux e Nunes Marques.

A questão da inviolabilidade do domicílio seria simples sob a ótica protetiva da Constituição, mas ganha áreas de dramaticidade porque, especialmente em casos envolvendo tráfico de drogas, observa-se um fenômeno social, antropológico e jurídico que converte mentes e corações a um sedutor – porém intolerável, dentro da quadra democrática - direito penal do eficienticismo. É como se a simples apreensão de drogas tudo justificasse, inclusive a violação de direitos e garantias individuais. Acontece que, ao menos no Estado Democrático de Direito, os fins jamais justificarão os meios – como, aliás, já nos lembrou o próprio Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do HC n. 148.280. O processo penal e as garantias constitucionais, nesse contexto, ganham destaque, especialmente quando se trata de supressão de direitos fundamentais por órgãos de persecução penal.

Impossível não lembrar, sobre essa questão, da feliz passagem que o Ministro Rogério Schietti trouxe em seu voto no HC 598.051/SP, ao recordar da exortação do Conde de Chatam: O homem mais pobre pode em sua cabana desafiar todas as forças da Coroa. Pode ser frágil, seu telhado pode tremer, o vento pode soprar por ele, a tempestade pode entrar, a chuva pode entrar, mas o Rei da Inglaterra não pode entrar!” 

Por aí se vê a importância daquilo que se decidirá no HC 169.788/SP: se nem sequer o rei da Inglaterra tinha o poder para adentrar às casas de seus súditos, o que se espera é que, na República Federativa do Brasil, o braço armado do Estado tampouco possa, mediante parcos e vazios argumentos, invadir domicílios simplesmente porque alguém “correu” ou “demonstrou nervosismo”. Que nossas casas sejam permeáveis às chuvas – mas nunca ao arbítrio estatal.

Maria Jamile José
Advogada criminalista e mestre em direito processual pela USP.

Naiara de Seixas Carneiro Caparica
Advogada criminalista e especialista em direito penal econômico pela FGV.

Theuan Carvalho Gomes
Advogado criminalista e doutorando em direito pela UNESP.

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