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Acesso e uso de informações concorrencialmente sensíveis como teoria do dano concorrencial em integrações verticais e conglomerais: o que analisar?

Para além da existência de mecanismos de prevenção ao acesso e uso de informações concorrencialmente sensíveis no contexto do próprio acordo da operação, o Cade já aprovou atos de concentração com fundamento no fato de que havia legislação específica que vedava a troca de informações sensíveis no setor.

2/10/2023

Conforme mencionado nos seis artigos anteriores,1 que trataram do conceito de integrações verticais e conglomerais, do seu fluxo de análise pelo CADE e das principais teorias do dano, passamos agora para o aprofundamento de uma das principais preocupações relacionadas a esses tipos de operações: acesso e uso de informações concorrencialmente sensíveis.

A versão preliminar do chamado “Guia V+” do CADE consolida as melhores práticas e procedimentos usualmente adotados pela autarquia na análise de efeitos não horizontais em atos de concentração.2 Como se trata de uma análise voltada para relações verticais e conglomerais, os estudos concentram-se no potencial lesivo à concorrência a jusante (ou seja, no elo seguinte da cadeia produtiva) e na cadeia à montante (ou seja, no elo anterior da cadeia produtiva).

O acesso e uso de informações concorrencialmente sensíveis é uma das hipóteses possíveis de fechamento de mercado, classificado na categoria de teorias do dano de efeitos não coordenados/unilaterais.3 A análise dessa teoria do dano compreende a verificação se a entidade resultante da operação pode, por meio de uma integração vertical, obter acesso a informações concorrencialmente sensíveis relativas às atividades a montante ou a jusante dos seus concorrentes que não estavam disponíveis para pelo menos uma das partes antes da operação. Isso porque, após uma operação vertical, a empresa integrada/verticalizada pode vir a ter acesso a informações de seus concorrentes (ao menos daqueles que já eram clientes/fornecedores de uma das partes antes da operação).

(Imagem: Divulgação)

Essa é também a preocupação da autoridade antitruste do Reino Unido, para quem a obtenção de informações sensíveis sobre rivais (e.g., preços; vendas específicas; ofertas; especificações técnicas de produtos; planos de inovação) pode permitir que as empresas envolvidas na operação venham a competir de forma menos acirrada no mercado (e.g., podem cobrar preços apenas marginalmente mais atrativos que seus rivais, em vez de preços bem mais baixos). De forma parecida, a Comissão Europeia acrescenta que o acesso a informações concorrencialmente sensíveis pelas empresas envolvidas em uma integração vertical pode colocar os concorrentes em desvantagem competitiva, inibindo sua expansão ou até mesmo a entrada em determinados mercados.

O Guia V+ sinaliza que a análise que visa a identificar as situações em que o compartilhamento poderá ser prejudicial à concorrência deve ser pautada por parâmetros como: estrutura do mercado; tipo de informação compartilhada e sua relevância concorrencial4; nível de desagregação; contemporaneidade/historicidade do dado; se a fonte da informação é pública ou privada; se a disponibilização da informação é ou não compartilhada; e a frequência/periodicidade do acesso/uso da informação.

Esse tipo de análise ocorreu, por exemplo, no Ato de Concentração de formação da joint-venture “Juntos Somos Mais”, envolvendo Tigre, Gerdau e Votorantim. A SG/Cade verificou, porém, que desde o início da operação foi apresentado o “Acordo de Investimento e Outras Avenças”, em que as Requerentes “preocuparam-se em estabelecer parâmetros que visam impedir a troca de qualquer informação concorrencialmente sensível entre elas por meio da NewCo, já que, acima de tudo, a troca de informações concorrencialmente sensíveis entre empresas é punível pelo Cade nos termos da Lei Federal nº 12.529/2011. A partir do exposto, a constituição da NewCo, por ora, não suscita preocupação concorrencial no que tange à troca de informações concorrencialmente sensíveis entre as Requerentes.”.5

No mesmo sentido, a SG/Cade também afastou preocupações com o acesso e o uso de informações concorrencialmente sensíveis no âmbito do Ato de Concentração envolvendo Axionlog / BFFC / CiaTC / Giraffas / Halipar / Outback / Bramex / Rei do Mate / 4all, referente à criação de joint-venture para o desenvolvimento de plataforma de pedidos online de comida e operações de foodservice. Novamente, as medidas tomadas pelas empresas previamente à operação foram consideradas relevantes para a SG/Cade: “Além disso, a própria plataforma a ser desenvolvida pela 4All, continuam as Requerentes, será construída com tecnologia que impedirá que acionistas e futuros contratantes tenham acesso às informações concorrencialmente sensíveis uns dos outros. De acordo com as informações apresentadas, o sistema adotado pela plataforma permitirá a implementação de restrições de acesso e controle sobre o fluxo de dados, por meio da autenticação de usuários, criptografia e anonimização dos dados. A plataforma ainda contará com mecanismos de monitoramento, que registrarão todos os dados acessados pelos usuários. Por fim, as Requerentes estabeleceram uma política de portas abertas ao CADE, para que esta Autarquia possa monitorar as atividades da joint venture sempre que julgar necessário.”.6

Por sua vez, no Ato de Concentração envolvendo Stone e Linx7, uma das teorias do dano estava relacionada à obtenção de acesso privilegiado, por parte da Stone, de dados estratégicos e informações sensíveis dos clientes da Linx, o que poderia gerar vantagens competitivas indevidas no mercado de meios de pagamento. A SG e o Tribunal do CADE avaliaram que diversas particularidades do setor afastavam a eventual obtenção de vantagem competitiva. Primeiro, as informações gerencias eram relativamente limitadas, envolvendo dados como lista de adquirentes que prestam serviço a um cliente; o volume transacionado e os recebíveis nessa adquirente; e as taxas cobras. Foi verificado que essas informações, além de outras, são disponibilizadas para todos os agentes do mercado pelo Open Banking, mediante autorização do estabelecimento. Além disso, o acesso a esses dados via Open Banking tem o potencial de melhorar a eficiência e a competitividade nos mercados de produtos financeiros. Dessa forma, o CADE concluiu não ser necessário a aplicação de remédios que limitassem o uso e acesso dessas informações.

No Ato de Concentração Magalu/Hub8 havia preocupação destacada sobre a possibilidade de a Magalu Pagamentos obter acesso à base de dados bancários da Hub, configurando um exemplo de "data-driven merger", e, assim, extrair vantagens competitivas indevidas em relação a seus concorrentes, incluindo o Mercado Pago. O Tribunal do CADE considerou que havia robustas salvaguardas de natureza contratual, legal e regulatória que impediam o compartilhamento de dados de rivais entre Hub e Magalu Pagamentos. Observou-se na oportunidade que o compartilhamento desses dados configuraria descumprimento das obrigações impostas pela regulamentação do Banco Central às instituições financeiras e de pagamentos, como a Hub, assim como violação de cláusulas contratuais de confidencialidade e dos princípios e regras estabelecidos pela Lei Geral de Proteção de Dados. Portanto, ainda que não tenha havido investigação aprofundada da relevância competitiva dos dados, restou evidenciado que sua transferência para a Magalu Pagamentos encontraria barreiras legais e contratuais difíceis de serem contornadas pelas duas empresas (Hub e Magalu Pagamentos).

Importante mencionar que, para além da existência de mecanismos de prevenção ao acesso e uso de informações concorrencialmente sensíveis no contexto do próprio acordo da operação, o Cade já aprovou atos de concentração com fundamento no fato de que havia legislação específica que vedava a troca de informações sensíveis no setor.9

A mesma lógica apresentada sobre a lente das integrações verticais segue quanto às integrações conglomerais.

Em resumo, pode-se apresentar o seguinte quadro consolidado com os principais elementos de análise quando do aprofundamento da teoria do dano de efeitos não coordenados/unilaterais de acesso e uso de informações concorrencialmente sensíveis:

(Imagem: Divulgação)

O caso mais recente do Cade que enfrentou, de modo central, esse tema do acesso e uso de informações concorrencialmente sensíveis no âmbito de integrações verticais foi em sede do Ato de Concentração envolvendo Sulamérica e Rede D’Or. Em seu parecer, a SG/Cade relatou a manifestação de diversos terceiros interessados, preocupados com o acesso às informações sensíveis de concorrentes, mas sinalizou que as informações poderiam ser descaracterizadas como sensíveis e, mesmo se o fossem, não “há evidências que indiquem tais agentes mitigaram a capacidade de competir de grupos não verticalizados que não teriam acesso a esse conjunto de informações.”. Já no Tribunal do Cade, essa teoria do dano foi detalhadamente analisada, tendo-se, ao final, aprovado a operação sem restrições.10 Não obstante, a título de advocacia da concorrência, foi recomendada à ANS a edição de norma específica sobre o tema de fluxo de informações entre agentes verticalizados no setor de saúde suplementar, a exemplo do que já aconteceria em outros mercados regulados.

Nos próximos artigos, continuaremos avaliando nas teorias do dano em integrações verticais e conglomerais.

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1 (1) ATHAYDE, Amanda. Fusões verticais e conglomerais: O que são e como isso pode impactar a atuação das empresas no Brasil? Portal Migalhas, 22.8.2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/392130/fusoes-verticais-e-conglomerais-o-que-sao-e-como-impacta-as-empresas. (2) ATHAYDE, Amanda. Fluxo de análise concorrencial de fusões verticais e conglomerais: o que muda? Portal Migalhas, 28.8.2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/392490/fluxo-de-analise-concorrencial-de-fusoes-verticais-e-conglomerais. (3) ATHAYDE, Amanda. Teorias do dano concorrencial em integrações verticais e conglomerais: quais os riscos? Portal Migalhas, 4.9.2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/392957/teorias-do-dano-concorrencial-em-integracoes-verticais-e-conglomerais. (4) Fechamento de mercado de insumos como teoria do dano concorrencial em integrações verticais e conglomerais: o que analisar? Portal Migalhas, 11.9.2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/393212/fechamento-de-mercado-de-insumos-teorias. ATHAYDE, Amanda. (5) Fechamento de mercado de clientes como teoria do dano concorrencial em integrações verticais e conglomerais: o que analisar? Portal Migalhas, 18.9.2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/393687/teoria-do-dano-concorrencial-em-integracoes-verticais-e-conglomerais; (6) ATHAYDE, Amanda. Elevação de custo de rivais como teoria do dano concorrencial em integrações verticais e conglomerais. Portal Migalhas, 25.9.2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/394061/elevacao-de-custo-de-rivais-como-teoria-do-dano-concorrencial.2  Contribuições podem ser apresentadas na plataforma Participa+ Brasil. Acesso em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/guia-v

3 Dentre os (1) efeitos não coordenados/unilaterais estão aqueles que podem ser decorrentes da atuação de uma única empresa, individual e unilateralmente. Seria o caso de analisar se a empresa resultante da operação, com posição dominante, poderia implementar determinadas práticas comerciais que teriam o efeito de prejudicar o mercado. Recorda-se, como exemplo de práticas unilaterais, a exigência de exclusividade, a recusa de contratar, a discriminação, a criação de dificuldades à atividade de concorrentes, dentre outros.

4 De acordo com o Guia para Análise da Consumação Prévia de Atos de Concentração Econômica do Cade as informações concorrencialmente sensíveis são informações específicas (por exemplo, não agregadas) e que versam diretamente sobre o desempenho das atividades-fim dos agentes econômicos. Conforme o referido Guia, essas informações englobam dados específicos sobre: custos das empresas envolvidas; nível de capacidade e planos de expansão; estratégias de marketing; precificação de produtos (preços e descontos); principais clientes e descontos assegurados; salários de funcionários; principais fornecedores e termos de contratos com eles celebrados; informações não públicas sobre marcas e patentes e Pesquisa e Desenvolvimento (P&D); planos de aquisições futuras; estratégias concorrenciais, etc. CADE. Guia para Análise da Consumação Prévia de Atos de Concentração Econômica do Cade. 2015. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/gun-jumping-versao-final.pdf

5 Ato de Concentração Juntos Somos Mais – Tigre, Gerdau e Votorantim. 08700.002327/2018-78.

6 Ato de Concentração Axionlog / BFFC / CiaTC / Giraffas / Halipar / Outback / Bramex / Rei do Mate / 4all. 08700.006662/2020-60.

7 Ato de Concentração n° 08700.003969/2020-17 - STNE Participações S.A. (¨STONE") e a Linx S.A. (¨LINX")

8 Ato de Concentração nº 08700.000059/2021-55 – Magalu Pagamentos Ltda. e Hub Prepaid Participações S.A.

9  Por exemplo, no Ato de Concentração SBF e Centauro/Nike. 08700.000627/2020-37 e no Ato de Concentração Compass e Petrobrás/Gaspetro.  08700.004540/2021-10.

10 Ato de Concentração Sulamérica e Rede D’Or. 08700.003959/2022-35. Voto Gab 6, Conselheiro Luiz Augusto Hoffmann. “Ante o exposto, considerando as teorias de dano ventiladas e sopesando as argumentações das Recorrentes vis-à-vis os demais aspectos pertinentes, ao meu ver, não há elementos que justifiquem uma intervenção do CADE neste momento sobre este ponto, sob pena até mesmo de inviabilizar possíveis eficiências decorrentes da operação que seriam benéficas ao consumidor, tendo em vista: (i) a padronização das rubricas e informações que devem ser trocadas entre OPS e estabelecimentos médico-hospitalares e os esforços de reduzir a assimetria de informação, em observância ao Padrão TISS, da ANS; (ii) haver parâmetros amplamente disponíveis a todos players do mercado que norteiam a precificação de componentes importantes do mercado (e.g., Brasíndice; SIMPRO); (iii) as dificuldades práticas de replicação de condições comerciais para outros agentes econômicos; (iv) o fato de haver diversos agentes verticalizados no setor que já possuem informações de diferentes OPS e hospitais, mitigando o potencial do uso pelas Requerentes das informações adicionais obtidas como instrumento para obtenção de vantagem anticompetitiva para prejudicar rivais; (v) os desenvolvimentos nas modalidades de contratação entre OPS e prestadores de serviços médico-hospitalares, com aumento de modalidades menos sujeitas à troca de informações sensíveis; e (vi) o risco de se prejudicar ou inviabilizar eficiências resultantes das integrações verticais ora examinadas.”.

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*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.

© 2023. Direitos Autorais reservados a PINHEIRO NETO ADVOGADOS.

 

Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I - Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.

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